30 - O mundo real
Não respondi a pergunta que a vancouverite me fizera, preocupado em não dizer nada de errado. Summer me seguiu, apesar de eu não saber ao certo onde levá-la. Ela provavelmente percebeu isso, pois não me fez nenhuma pergunta. Sequer tentou iniciar uma conversa, mas iniciou uma cantoria murmurada. A música era repleta de frases que eu não conseguia entender, provavelmente porque deveriam ser bem interpretadas. E eu não estava tendo tempo para interpretar nada, mas posso dizer com certeza que eram versos muito bonitos. Por algum tempo apenas deixei Summer cantar, apreciando sua voz. Gosto muito quando canta, mas ainda não estava pronto para deixar isso claro. Talvez isso mostrasse o que eu não queria: segundas intenções. Então disse:
— Você acha essa música pertinente para o momento?
— Não sei, decide você. — Ela sorriu e tocou meu nariz, como se estivesse procurando um pretexto para me tocar. Achei fofo, mas não comentei. — Eu estou cantando uma música do Owl City.
— Nossa, que novidade... — Ri, balançando a cabeça. Se não fosse seu artista favorito, quem seria? Às vezes eu queria ser o artista favorito de alguém, só que não sabia se isso seria de todo bom. Talvez se tornasse uma obsessão ruim. — Quando você não está ouvindo ele?
— Quando estou ouvindo você. — Brincou, fazendo-me rir. — O nome da música é "The Real World".
— Eu percebi quando você cantou sobre "o mundo real se importar" com você, ou algo assim.
— No caso, não se importar.
— Desculpe, não entendi metade da música. — Suspirei, pensando em como tenho dificuldade de chegar na interpretação correta das coisas. Sempre achei que isso não tinha relação nenhuma com a dislexia, então é um problema completamente meu.
— Você precisa prestar atenção e fazer sua imaginação voar. — Summer sorriu e parou de frente para mim, visivelmente animada. Segurou meus ombros e sua posição me obrigou a olhar em seus olhos. — Imagine como é o mundo sem tudo o que você vê de ruim. — Seus olhos brilhavam, provavelmente com a imaginação de seu mundo. Um mundo tão lindo e colorido, tão diferente do mundo real. "Se eu desaparecesse, o mundo real se importaria?". Se eu pintasse as paredes de Toronto com a cor dos olhos de Summer, o mundo real se importaria? E se eu fizesse isso em Vancouver também?
— Só imaginando mesmo! — Imagino que meus olhos devem ter brilhado igual.
— É disso que a música trata.
— De um mundo imaginário?
— De um lindo mundo imaginário, quase palpável de tão real que parece ser... Bem, isso se você se envolver de verdade na música. — Soltou-me e voltou seu olhar para a paisagem ao redor. Eu estava muito ligado em suas palavras. Havia algo nelas que me mantinha hipnotizado. Quase como magia. — Um mundo maravilhoso para escapar do mundo real.
— Um mundo inexistente.
— Será mesmo? — Summer arqueou a sobrancelha e me deu um olhar significante. — Você precisa me levar ao lugar que mencionou ainda hoje?
— Não. — Estranhei a pergunta, mas não hesitei em responder. Algo me dizia que ela estava com pensamentos bons, então não tinha do que temer, certo? — Por quê?
— Eu te acho muito descrente, Ethan Pearce.
— E qual a relevância disso para o assunto?
— Isso é muito relevante.
— Ah é?
— É.
— E por quê? — Cruzei os braços e ela me imitou. Segurei-me para não rir.
— Porque você não acredita em um mundo bonito.
— Esse mundo não é palpável.
— O mundo da escrita me mostra o contrário. — Summer deu um sorriso enorme.
— E você escreve muito?
— Quando estou falando com você, não. — Repetiu a mesma frase de momentos antes, fazendo-me rir. — Quase o tempo todo.
— Mas você disse que ouve música o tempo todo, então como é possível isso?
— Bem, eu mais ouço música do que escrevo, porque não consigo escrever andando ainda, mas... — A canadense colocou o dedo na bochecha, parecendo pensar em como articular a frase. Deixando claro que "articular" é um termo que ela própria usa. — Posso te explicar de uma forma quase poética?
— Não prometo entender. — Dei de ombros.
— Escrever sem ouvir música é como tomar banho sem água para mim.
— Então essas são suas coisas favoritas no mundo?
— Algumas. O mundo é muito belo.
— O mundo real?
— Sim. — Ela deu uma risadinha com minha descrença. Bem, talvez eu seja mesmo cético.
— Desde quando?
— Desde que me conheço por gente.
— Duvido!
— Duvida?
— Uhum.
— Então acho que podemos fazer uma aposta. — Summer me olhou com um desafio. Ela sabe que não consigo evitar desafios.
— Diga.
— Se eu te provar que o mundo real é muito bonito, você terá que me mostrar seu verdadeiro eu.
— E se eu ganhar? — Perguntei, temendo a condição dela. Eu tenho medo desse tal "verdadeiro eu".
— Escolha.
— Posso escolher isso quando ganhar.
— Se ganhar! — Deu ênfase.
— Certo. — Revirei os olhos, duvidando que ela conseguisse me mostrar que o mundo é mesmo tão belo e sem tantas coisas negativas.
— Pronto para ver as melhores coisas do mundo?
— Pronto. — Não estava, mas não ia deixar isso tão evidente.
Summer sorriu e pegou minha mão, puxando-me com pressa pela rua, rumo ao destino que ela imaginara. A chuva tinha acabado, então Summer teve mais um fato a seu favor.
***
Acordei ao som de Scar Tissue, do Red Hot Chili Peppers, minha banda favorita. Não estranhei o fato, pois essa era a música que eu sempre deixava como alarme. O que estranhei mesmo foi a dor nas costas e a inexistência de um colchão fofinho abaixo de mim. Não parecia estar deitado na cama do hotel. Nem no sofá do hotel. Nem no tapete do hotel. Nem no hotel, de fato. Pisquei algumas vezes para acostumar minha visão com o cenário ao redor, mas não consegui reconhecer muita coisa. Estava virado para meu lado direito e conseguia ver apenas alguns móveis. Movimentei-me e senti algo se mover ao meu lado. Algo não, alguém. Engoli em seco e virei para o lado contrário, logo vendo que havia uma garota ao meu lado, de costas para mim. Arregalei os olhos.
O que diabos acontecera na noite anterior?
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