Apogeu
Ouço passos pesados e desconformes, abafados pela frágil porta que me separa do mundo exterior.
O mundo lá fora.
Recheado de sua sonoridade, de sua vitalidade, um turbilhão de rostos e sentimentos, mesclado com sinestesias recorrentes que turvam nossas memórias, tornando-nas fajutas. Há tempos que não me lembro com clareza de uma noite. Tenho feixes de lembranças. Ambientes cetrinos à meia luz, garrafas vazias, silhuetas e vultos que emanavam pequenas nuvens cinza, opulentas, tornando minha respiração intrincada. Lembro-me dele. De sua presença suntuosa, passada desapercebida por todas aquelas sombras. Menos uma.
Rapidamente viro-me para o lado oposto da entrada, puxando o fino lençol para que me cubra até a cintura. Fecho os olhos com força, na falha tentativa de fingir sono profundo. Ouço o som da chave errar a fechadura diversas vezes, até que o ranger das dobradiças velhas finalmente ecoa pelas paredes do pequeno quarto.
A porta é fechada com força. O cheiro de álcool entorpece meu nariz, que reconhece também o odor daqueles cristais brancos que se transformam em filetes de neve.
Sinto o peso de seu corpo ao lado da cama. Um fio de excitação transpassa-me. Lembro-me de tudo que eu havia preparado para aquela noite. A noite em que eu havia me dado por farta.
— Não adianta... fin-fingir que está dor-dormindo... — Ele balbucia, trôpego. Meus dedos começam a formigar, como se soubessem o que deviam fazer de forma autônoma.
Ele puxa o lençol turquesa com força. Eu permaneço incólume. Ele gira meu corpo e passa suas pernas entre minha cintura.
Abro meus olhos devagar.
Tudo acontece em câmera lenta.
Mordo os lábios, enquanto meus dedos firmam-se ao redor daquele cilindro grosso de vidro vazio, que está em cima do criado, ao lado da cama. Ele se estilhaça de encontro ao crânio dele. Gotas de sangue respingam em meu rosto, obrigando-me a fechar os olhos novamente. O peso sob o meu corpo, depositado bruscamente, me causa ânsia.
Empurro-o para o chão, caindo sob um tapete, como planejei.
Levanto, desviando do cadáver e dos pequenos cristais de vidro que antes formavam a garrafa. Observo-o. Seu rosto está manchado com aquele mesmo líquido viscoso, apesar do cheiro ser forte, ele me agradava. Deixava-me serena. Sua barba grisalha, junto com os fios no topo de sua cabeça, estavam desgrenhados. Suas roupas, uma regata anilada e uma calça jeans comum, estavam úmidas. Sua virilidade, aquilo que eu mais apreciava, havia esvaído-se. Talvez fosse pelo seu semblante estagnado. Havia uma expressão de impotência, o que não me aprazia em nada. Passo o mão em seus bolsos, reconhecendo aquele chaveiro de bola de bilhar. Enrolei-o com o tapete e cuidei para esconder sua face.
Vou até a minha mala surrada, depositada em cima do vaso sanitário daquele banheiro sebento. Procuro dentre minhas roupas sujas algo para vestir. Escolho um vestido escarlate, para o caso de acontecer algum acidente com o transporte do cadáver. Olho-me no pequeno espelho. Estou magra e pálida, nada resta do que fui um dia, antes de tudo acontecer. Confesso a mim mesma, solitária, que sinto falta daquela época. Apenas por um segundo.
Recolho o resto dos meus pertences que estão espalhados pelo quarto e enfio dentro da mala. A facilidade com que a arrasto pelo chão do quarto faz-me sentir um solavanco no estômago. Tudo que tenho está aqui, em minhas mãos.
Abro a porta e repouso a mala do lado esquerdo. Mantenho-a aberta, a fim de manter o cômodo ventilado.
Pego o fino cobertor que estava sob a cama. Está visivelmente manchado por diferentes fluidos humanos. Porém, não me causa nenhum tipo de repulsa. Eu me concentro em terminar meu serviço de forma calma e precisa. Além de que, poucas coisas me enojam nesse mundo.
Enrolo-o com todos os lençóis e cobertores que pude encontrar. Ainda acho que não é o suficiente. Mas isso não me preocupa. A coisa que mais almejo é deixar aquele quarto asqueroso. As suas paredes magenta estavam esfoladas e cheias de rabiscos. Não havia como abrir a janela, já que a mesma era tapada com tábuas, cobertas por um plástico negro simulando uma cortina abjeta. Os armários estavam cheios de mofo e as toalhas, todas bolorentas. Tudo que estava naquele quarto era repulsivo. O espelho do banheiro era coberto de números de telefone e marcas feitas com batom rubro.
Havia também uma pequena caixa de papelão, que ficava em cima de um dos armários. Seu conteúdo era asqueroso, incluindo desde filmes libidinosos e fotos de mulheres nuas até objetos para relações sexuais. Estavam todos largamente usados, a julgar pelas superfícies deterioradas.
Com muito custo, arrasto o corpo pelo chão acarpetado do quarto até o corredor. Ao passar nele, ouço o berreiro de crianças, gritos e gemidos abafados pelas mesmas janelas vedadas, dando-me a impressão de que cada porta guardava um universo inteiro, muito díspar do meu.
Chego até a porta dos fundos, onde há um balde com algumas vassouras ordinárias. Abro a porta.
O sol da aurora queima minha pele plácida, aquecendo-a de forma agradável. Continuo o caminho, acompanhada pelo rolo de lençóis.
Alcanço o seu carro ocre. Acredito que ele não se importará se eu usá-lo por algum tempo. Abro o porta-malas e deposito o corpo, arfando. Fecho-o.
Caminho até o quarto novamente. O cheiro de mofo surrupia o cheiro da morte. O odor daquilo tudo era análogo com o interior de um armário velho, no qual algum animal ferido alojava-se permanentemente. Não difere tanto de antes, afinal. Fecho a porta, ouvindo-a ranger pela última vez.
As rodas da minha mala arrastam-se silenciosamente pelo carpete do corredor, como se ela flutuasse. Meu estômago reclama novamente.
Entro no carro. Pego a mesma chave de bilhar emporcalhada, que estava no bolso da calça jeans. Examino-a. Está gasta. Tudo o que eu olho está velho e usado, desde os papéis que estão no porta-luvas, assim como o maço de cigarros que está em cima do painel. Há também um terço, pendurado no retrovisor interno. Pude ver a pequena cruz de madeira, simbolizando a sua religiosidade descrente. Pego os seus pertences do carro e enrolo dentro de um papel, deixando o maço em cima do banco do passageiro.
Giro as chaves na ignição.
Dirijo muito tempo pela estrada sozinha, em silêncio. Minha mente vagueia dentre meus pensamentos avulsos.
Lembro-me do meu estado de entorpecimento quando nossos olhos se cruzaram. Seu olhar era denso, impedindo-me de desviá-lo. Ele saiu do recinto, fazendo-me um sinal para que o acompanhasse. Eu o segui sem hesitar.
Encontro a bifurcação de terra.
Entro à direita, na trilha coberta pela árvore centenária que está na beirada da estrada. Continuo dirigindo, enquanto encaro minhas unhas vermelhas, lascadas nas pontas. Isso deixava-me incomodada, contudo, mantê-las intactas irritava-me ainda mais.
Passam-se longos minutos onde o cenário permanece o mesmo: a velha estrada de terra, a vegetação insossa e as cercas de madeira marcando territórios abandonados há muito tempo. Havia também o ruído de pássaros, ao longe, encobertos pelo barulho que o carro obsoleto fazia.
Ele se encostou no mesmo carro que eu dirijo agora, girando as chaves nos dedos, enquanto observava meu caminhar débil, afetado pelo contínuo uso de fármacos infames. Lembro-me de entrar no carro, sentindo o seu odor poeirento, misturado com o cheiro do seu dono. Lembro-me da sensação da sua mão pousada em minha perna fina, enquanto todo o ambiente ao meu redor rodopiava.
Enfim, vejo a porção de água cerúlea. Piso no freio abruptamente, despertando da minha ilusão. Desço do carro, meus sapatos sujos se sujam ainda mais.
Arrasto o corpo até a beira daquele lago, esquecido por seus conterrâneos. Recordo-me de quando viajava para cá, junto de meus pais e avós. De como era divertido, de como eu não compreendia os transtornos que corroíam nossos frágeis laços familiares.
Abro os lençóis.
Vejo o rosto daquele homem pela última vez. Tento abstraí-lo, para que se instale em minha memória para sempre. Eu o amara profundamente. Mas isso era necessário. Sua face ficara ainda mais canhestra, a sua epiderme, antes acobreada, havia sido afetada pelas mazelas do óbito.
Deposito um beijo em sua face frígida. A morte tem um gosto edulcorado.
Miro o horizonte, encoberto de pradarias negligenciadas. Quanto mais meus olhos prendiam-se àquela vista, mais eu senti-a me sozinha, inválida e misantrópica. O sol castiga cada pedaço de solo, vegetação ou água. Aquece-os sem cessar. Apesar do corpo de água, o ambiente é ressequido e quase sufocante.
Caminho pela margem do rio, recolhendo diversas pedras grandes. Coloco-as delicadamente ao redor do cadáver, junto com o bolo de pertences que recolhi de seu automóvel. Por fim, amarro os lençóis novamente.
Arrasto o corpo pela última vez, com ainda mais dificuldade, até o ponto do rio em que pude lançar-me. Empurro-o com força, vendo o emaranhado de lençóis afundar disforme.
Permaneço na água amena. Olho para o horizonte amplo novamente, deixando minhas últimas memórias junto àquele homem.
Relembro seus cabelos grisalhos, de sua cabeça recostada em meu tronco, enquanto nossos corpos respiravam em sincronia. Lembro-me da sensação de ternura que eu tinha em meu corpo, algo que me aquecia, impedindo-me de deixá-lo. Eu passaria a minha vida inteira deitada em seu obro, sentindo o bálsamo que emanava de sua nuca. Por fim, recordo com pesar das noites em que ele me deixara, atrás dos efeitos estupefacientes, atrás de novas pernas finas, com vestidos novos, apenas para despi-los e compartilhar tudo o que eu mais amava nele com outras. Aquilo degradava-me, deixava-me inconsolável. Brigas saturadas de fúria, mescladas com conjunções corporais. Eu não conseguiria levar aquilo adiante. Eu tive de pará-lo.
Caminho até o carro, com meus passos deselegantes. Pego o maço que guardei em minha mala.
Percorro a beirada do lado até um dos vales que o cercam, floreados. Repouso meu corpo combalido na grama fresca, sentindo uma mescla de aflição e serenidade. Olho para o céu, sentindo a claridade queimar meus olhos escuros. Meu rosto torna-se úmido, enquanto filetes de um líquido salubre percorrem toda a sua extensão. Presto meu luto silencioso e solitário, sabendo que ninguém mais notará a ausência daquele homem.
Passo algum tempo mirando o grande volume anilado sobre a minha cabeça, tentando decidir o que fazer a seguir. Sinto minhas pálpebras pesarem, até o momento em que não pude contê-las.
Adormeço.
Há anos não adormecia com tamanha qualidade. Ao despertar, sinto-me renovada, como se a sorte estivesse do meu lado, finalmente. Levanto-me e caminho até o velho carro, sentindo uma queimação por dentro, um formigamento que percorre meu corpo freneticamente. Parece que a minha vida real começará a partir desse momento, desse momento em que eu deixei tudo para trás, e esse tudo era perfeitamente simbolizado por aquele cadáver.
Olho para o rio. Uma brisa balança meus cabelos e meu vestido. Há um cheiro de terra no ar. Fecho meus olhos e suspiro, sozinha.
Já dentro do carro, sigo pela Veterans, até a Interestadual 15. Paro algum tempo em St. George, para comprar algumas porcarias comestíveis em uma conveniência de um posto nojento. Atravesso Utah e entro em Nevada, finalmente. Alguma música calma exala do rádio, fazendo-me ficar sonolenta. A monotonia da estrada e o silêncio perpétuo em minha mente contribuem para que minhas pálpebras tornem-se tão pesadas a ponto de eu não conseguir mais controlá-las. Encosto o automóvel em Riverside, procurando por um hotel.
Piso no freio, quando avisto no letreiro neon que anunciava "Dynasty." Embaixo, informava: 14 dólares a noite. Alcanço minha mala no banco do passageiro. Há seis dólares e alguns chicletes. Reviro os olhos.
Estaciono na vaga em frente ao quarto 4. Desço e ando até uma porta de madeira, chamada de recepção. Há uma idosa, com o pés em cima de uma mesa de centro pequena. O ambiente é limpo, decorado modestamente: duas poltronas, numa das quais a senhora está adormecida, embaixo, um tapete bege, carpete bege, cortinas bege, todos em nuances levemente dessemelhantes. Um balcão e um quadro com dez pregos, seis deles com chaves, enumerados de um a dez.
— Boa noite, senhora. — Desperto-a de uma soneca.
— Oh, boa... boa noite minha cara. — Ela se torce na poltrona, levantando-se com dificuldade. Com passos vacilantes, ela se enfia atrás do velho balcão de mármore.
— Vai querer um quarto? — Ela diz, colocando um óculos meia lua com um cordão que o prende atrás do pescoço.
— Por favor.
— Muito, muito bem.
A senhora indica um livro grande e amarelado em cima do balcão. Entrega-me uma caneta e pede para que eu assine meu nome na primeira linha livre.
Escrevo algum nome falso sem criatividade, por conta da minha sonolência demasiada.
— Senhorita Liz? Mas que belo nome! — A velha sorri, com todos os seus dez dentes.
Sorrio de volta. Ela me entrega a chave do quarto 4.
Meus passos vacilantes levam-me até o quarto. Tranco a porta e deito na cama, dormindo rapidamente.
De repente, o sol começa a elevar a temperatura do quarto. As cortinas protegem-me dos raios que incidem, ainda fracos. Espreguiço-me lentamente, aproveitando, após tantos anos, uma noite em que finalmente acordo sozinha.
Procuro na minha mala algumas daquelas coisas que comprei na conveniência. Sobrou apenas um salgadinho ordinário.
Após comer, levanto e troco de roupas. Vou até o banheiro, olho-me no espelho. Meus olhos possuem, logo abaixo, longas bolsinhas lilás, exibindo minha falta de sono prolongada. Meus cabelos estão desalinhados e quebradiços, sem brilho algum. Molho os fios com um pouco de água da torneira e tento arrumá-los. Olho-me novamente. Minhas sobrancelhas estão repletas de falhas, com fios rebeldes brotando por toda parte. Minha pele está áspera, com um odor de mofo.
Abro o pequeno armário no canto do banheiro e vejo um tubo de pasta de dente usado e um sabonete minúsculo. Pego a pasta de dente e uso-a em meu polegar, esfregando em meus dentes. Pego o sabonete e tomo um banho. Coloco-me um dos meus vestidos rasgados.
Fecho a porta do quarto, do lado de fora. Não sinto-me limpa desta forma há um bom tempo.
Eu e minha mala traçamos o caminho até a recepção. Porém, quem está lá desta vez é um homem, um homem jovem. Ele conta um pequeno bolo de dinheiro, com notas de no máximo 10 dólares.
— Bom dia, senhorita. — Seus olhos piscam ardilosamente, demorando-se em mim.
— Bom dia. — Ajeito meus cabelos atrás da orelha, sentindo-me incomodada com o cheiro forte de sua colônia masculina.
— São 14 dólares.
Faço um movimento de olhos rápido ao redor do local, tentando pensar em alguma forma de pagar o que resta. Estendo os seis dólares a ele.
— Está faltando.
— Eu sei que está. Mas eu, não tenho mais.
— Isso não me interessa. Quero o resto.
— Acontece que eu não tenho, já disse-lhe! — Minha voz soa um tanto falha, por conta dos olhos do homem em mim. Aqueles olhos estavam horripilando-me.
— Então encontre outra forma de pagar-me. — Ele mostrou os dentes amarelos, numa tentativa aterrorizante de sorrir. Sua língua umedece os lábios.
Fixo meus olhos no chão. Sinto meus pelos arrepiarem-se por baixo de meu vestido.
Em um instante, a recepção é tomada por outro aroma forte de colônia masculina desta vez, quase viciante. Atrás de mim, entra um homem alto, não tão jovem, com cabelos grisalhos, arrumados em perfeita ordem. Havia uma barba um tanto grande também, quase toda grisalha. Um terno azul-marinho com finas listras, sapatos engraxados e acompanhado de um outro homem, com um terno preto e óculos escuros.
— Bom dia, senhorita. — Sua voz melodiosa pronunciou-se, enquanto demorou os olhos nos meus, de uma maneira tão terna que senti como se estivesse consolando-me.
Ele andou até a beirada do balcão. Conversou com o homem de dentes amarelos, que cobrou os catorze dólares dele. O homem grisalho retirou um pequeno bolo de dinheiro, feito com notas altíssimas. Ele entregou cinquenta dólares ao homem.
— O senhor quer troco? — O dono do hotel indagou, acariciando de forma horrível a pequena nota em sua mão.
— Não. Quero que cobre a minha e a dessa bela moça. — Ele sorriu para mim. Eu permaneço inexpressiva.
— Ela já pagou. — O homem do hotel protestou, mostrando seu descontentamento em perder meu pagamento.
— Tenho certeza de que ouvi o contrário. Desconte ambas. — Pela primeira vez sua voz soou ríspida. Ele olhou para o homem atrás dele, forte e preparado para uma situação de divergência.
— Então está bem. Como quiser, senhor. — Mais uma vez o sorriso amarelo.
O senhor grisalho virou-se para mim.
— Gostaria de tomar um café?
O homem onipotente entrou em um grande carro negro, comprido. Ele abriu a porta, sorrindo para mim.
— Entre.
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