Virando o jogo
Marcel estava em um dos quartos trocando de roupa e saindo do personagem quando Honória entrou e trancou a porta atrás de si, guardando a chave entre os seios. Marcel bufou ao vê-la, se amaldiçoou mentalmente por não ter trancado a porta ele mesmo. De toda forma seria rápido, por isso não se importara. Aliás, nunca poderia prever que a mulher estava ali, já que não a tinha visto antes.
— O que deseja, mulher? Não se cansa? — Questionou com indiferença.
— Jamais me cansarei de você, Marrrrrcel. — Honória tentou imitar o sotaque francês de Marcel, mas a sonoridade saiu estranha, dura.
— Senhor Desfleurs. — Marcel a corrigiu enquanto guardava as roupas da apresentação dentro de uma bolsa de couro, a qual pegaria depois.
Honória andou na direção do homem e passou uma mão em suas partes íntimas, como uma carícia devassa. Marcel revirou os olhos, mas não de desejo. Estava impaciente.
— Não me obrigue a ir às vias de fato. — Avisou enquanto sem cerimônia pegava a chave de volta.
Honorinha sentiu o corpo arrepiar ao ver que o aborrecia e mesmo assim ele colocava a mão entre seus seios.
— Pois não me importo. — Ela o abraçou, mas Marcel saiu andado em direção à porta enquanto obrigava-a a se mover também.
O francês não respondeu, apenas destrancou a porta e pretendia sair mesmo que para isso precisasse atropelar a mulher, no entanto ela foi mais esperta e conseguiu, com o jeito que tinha, e conhecimentos sobre a anatomia masculina, empurrar ele até a cama e montar Marcel.
Perdendo a paciência, Marcel a empurrou de cima de si sobre o colchão, contudo ela não se moveu porque no último instante enganchara suas pernas por debaixo das coxas do homem.
— Não a quero. — Marcel disse com seriedade enquanto travava o maxilar.
— Isso faz com que eu goste ainda mais do senhor. — A mulher disse enquanto desabotoava as roupas do francês.
— Você é doente. — Ele fingiu indiferença e virou o rosto para o lado, de modo que não precisasse olhar para Honória.
— Doente de paixão pelo senhor, veja como estou afogueada. — A mulher ergueu a mão desfalecida de Marcel e passou sobre o próprio corpo.
— Tenho asco de ti. — Ele disse cada uma das palavras com clareza.
— Tendo asco ou não, faremos uso dessa alcova para nossas intimidades. Sei que não te custa. — A mulher esfregou a área da genital sobre a de Marcel e ele se concentrou para que o sangue não se agrupasse no quadril.
— Eu não quero bater em uma mulher! — O homem foi incisivo e deu um chacoalhão em Honória. Ela riu de prazer.
— Quero que me bata, sentirei prazer. E isso ainda te tornará condenável. — Ela debochou.
— Não vou bater em uma mulher. — Marcel fechou os olhos e cruzou os braços sobre o peito.
Deixaria que ela abusasse de seu corpo, ele aguentaria, porém não bateria nela. Isso deixou Honória descontente, já que ela queria justamente aquilo, que ele demonstrasse seu lado mais monstruoso, algo que na visão dela também era o mais excitante.
— Você vai... — Honorinha o mordeu no braço dele por sobre o tecido.
— Ele não vai, mas eu vou. — Ofélia disse já entrando no quarto e puxando Honorinha pelos cabelos.
A surpresa fez Honória se desprender de Marcel e Ofélia a jogou no chão. O homem se sentou na cama e viu Ofélia acertar um chute nas costelas da adversária, e depois desencapar a bengala, que na verdade era como uma espada curta e fina semelhante a um florete. Ofélia colocou a lâmina pontuda encostada na garganta de Honorinha antes que ela tivesse tempo de se levantar, depois sacou uma arma que estava escondida na saia do vestido e apontou para a mulher.
Marcel estava completamente espantado com aquela agilidade e sangue frio. Tinha visto muitas facetas de Ofélia, só que particularmente a ameaçadora assassina nunca fora conhecida de perto.
— Você não terá coragem... — Honorinha desafiou, e a resposta de Ofélia foi um sorriso maldoso.
— Covardia é uma palavra que não existe mais na minha vida. — Ofélia replicou. — Sabe qual o real motivo de me chamarem de Dama de Ferro? — A outra não respondeu. — Porque meu pai tentou me matar e eu sobrevivi, mesmo que ele tenha tentado acabar comigo, ainda estou inteira. Mas graças a mim ele está mofando no fundo de uma prisão sem ambos os braços, e eu não tenho remorso algum por isso.
Ofélia cuspiu no chão.
— Se você quiser este homem — Ofélia apontou para Marcel —, terá que sobreviver a mim. Está disposta?
À contragosto e humilhada Honória fez que não.
Ofélia deixou que a mulher se levantasse e acompanhou com o olhar enquanto ela saía do quarto.
— Ainda abandonou a porta aberta, folgada. — Reclamou enquanto guardava a arma de fogo e o florete. Depois se voltou para Marcel. — Você está com uma aparência péssima.
— Essa louca quase me força a fazer o que não queria. — Marcel esfregou a mão na própria face.
Ofélia fechou a porta e se aproximou do homem que ainda se sentia perturbado. Suas duas únicas alternativas anteriores eram terríveis, dadas as condições.
— Você é minha heroína. — Ele sorriu para Ofélia.
— Nesse momento posso ser até mais que isso. — Ela cruzou os braços.
— Agora estou instigado a descobrir o que mais a senhorita Weirtz pode ser. — O homem parecia desafiar com o olhar enquanto sorria matreiro. O simples fato de Estar perto de Ofélia já tinha restaurado seu humor.
A mulher se aproximou, posicionando os joelhos entre as pernas de Marcel que ainda estava sentado no colchão. Ofélia, sem cerimônia alguma, emoldurou o rosto do francês e o beijou. Ele ficou surpreso e parado, mas logo reagiu dando passagem para a língua dela enquanto a firmava com as duas mãos nas laterais do corpo seguro por um espartilho. Ofélia enfiou os dedos das mãos pelos cabelos de Marcel enquanto sentia arrepios causados pelo toque dele.
A mulher o empurrou sobre o colchão e aproveitou que ele ainda tinha abertos os botões da roupa para beijar o peito do homem. Com uma mão habilidosa de experiência ela desatou a gravata da veste dele. Marcel outra vez se deixou parado sobre o colchão, contudo de prazer. O francês soltou um gemido rouco e fechou os olhos sentindo os lábios da mulher percorrerem o caminho mais perigoso de todos, aquele que levava até sua virilha.
De repente os lábios dela sumiram de sobre si e voltaram com um beijo em sua boca. Aquele beijo que fez acender uma fogueira no homem. Quando ele estava prestes tomar o controle, Ofélia o abandonou ali.
Marcel abriu os olhos de repente, sentindo o pesar do abandono.
— Sente-se melhor? — Ofélia questionou enquanto alinhava as vestes.
— Milhões de vezes pior, senhora. Volte aqui e termine o que foi começado. — Marcel disse enquanto acenava para o próprio peito desnudo.
— Creio que não será possível. — Ofélia riu. — Minha irmã está sem companhia.
O francês bufou.
— É tu uma megera! — Reclamou enquanto arrumava a roupa.
— Não o farei novamente. — Ofélia deu de ombros.
— Não repita isso, mon coeur. — As palavras saíram quase como uma súplica. — Amo as megeras.
— Todas? — Ofélia ergueu uma sobrancelha enquanto estreitava os olhos.
— Apenas aquela para a qual declamarei uma poesia a seguir. — O homem foi atrás do pente que usara pouco antes quando tinha trocado de roupa.
Ofélia cruzou os braços e esperou.
— Derminda, esses teus olhos soberanos/ Têm cativado minha liberdade;/ — Marcel falava cada verso como se estivesse a ponto de morrer e ao mesmo tempo penteava os cabelos. — Mas tu cheia, cruel, de impiedade/ Não deixas os teus modos desumanos.// Por que gostas de causar dores e danos?/ Basta o que eu sofro, tem de mim piedade!/ Faze a minha total felicidade,/ Volvendo-me esses olhos mais humanos.// Já tenho feito a última fineza/ Para ameigar-te a rija condição;/ És mais que tigre, foi baldada empresa.// Podem meus ais mover a compaixão/ Das pedras e do tronco a dureza,/ E não podem abrandar um coração?
— Não seja dramático, Marcel. — Ofélia já estava com a mão na maçaneta da porta para abrir. — Nem cite o senhor Bonifácio, não me dou com essa figura.
— Apenas alguém como ele para expressar a maldade de uma senhora. — Marcel replicou.
— Pois se Derminda fosse obrigada a encará-lo, o Bonifácio, meus préstimos seriam para que ela resistisse até a morte. — A mulher era ácida em seu posicionamento.
— Ofélia... — Marcel chamou antes que ela saísse.
— Sim. — Ela olhou para trás.
— Eu sei que você me ama e vai dizer que me deseja em sua vida. Considere-se proposta em casamento. — O francês deu uma piscadela. — Quando resolver ser positiva a nosso respeito, avise-me para que eu faça o pedido com pompa.
— Não podemos ficar juntos. Você tem uma vida pela frente. — A mulher resmungou.
— Pela frente vejo a morte somente, já que morro duas vezes a cada dia. Uma vez por viver, outra vez por amar.
As palavras do homem foram ouvidas, mas Ofélia não ficou para desenvolver o assunto. Em seu íntimo começava a se convencer de que podia ficar com Marcel.
Quando retornou ao salão, encontrou um burburinho. A notícia da morte de escravocratas chegou aos ouvidos daqueles que ali estavam. Muitas pessoas se lamentavam pesarosas, mas Ofélia só conseguia sentir asco. Eles se ressentiam da morte daqueles que carregavam nas mãos o sangue de centenas de africanos e brasileiros, mas não se ressentiam pela morte dos pretos. Não fez questão de esconder sua satisfação com a notícia, mas achou melhor levar Mirtes dali.
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Improvisado poema de Américo Elysio. Américo Elysio era pseudônimo de José Bonifácio. Bonifácio foi uma das figuras importantes da história do Brasil, tanto na política quanto como escritor. Deixou algumas obras muito apreciadas. Em Improvisado, Bonifácio compara o objeto de sua afeição a Derminda, uma musa fria e cruel. Segundo a historiadora Mary del Priore, para entrevista no jornal O Globo, onde falou sobre seu livro As Vidas de Bonifácio, o homem não era tão ilustre quando a história retratou. Em sua epoca tinha má fama e o que fazia parecer mais culto que os políticos do Brasil era o fato de ter estudado na Universidade de Coimbra. Ainda segundo a historiadora, o homem fez sua própria fama de herói ao se auto-entrevistar no jornal "Tamoyo", que era dele mesmo.
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