Passeio Público
Marcel era do tipo de homem que prometia e cumpria, por isso, no dia seguinte, à tardinha, quando a luz do sol já se amainava anunciando que em poucas horas a noite se faria presente com toda sua graça e elegância, o homem com sua bengala, chapéu e veste alinhada atravessou o portão da frente da casa das Weirtz.
Já tinha enviado um bilhete para que Mirtes se preparasse, portanto, era esperado. Subiu os degraus da frente da casa até chegar à porta. Bateu na madeira com a bengala, que para os senhores era acessório de moda, e logo foi atendido. Aquele devia ser um dos dias nos quais Ofélia fechava a casa para não receber visitas.
Um senhor que trabalhava ali pediu o chapéu e a bengala de Marcel para que ele pudesse guardar. Era um homem branco, contratado da claramente abolicionista dona da casa. Havia toda sorte de empregados em suas propriedades, portanto, por mais que fosse chocante para muitos, ali não era diferente do resto. Muitos escravos de ganho queriam trabalhar para ela, entretanto quase sempre os donos não deixavam.
Os escravos de ganho eram aqueles que o senhor colocava para trabalhar em outros lugares a fim de trazer dinheiro exterior para seus bolsos. Muitas vezes tais escravos podiam ficar com o valor excedente e formar seu pecúlio, sua poupança, com a qual comprava a própria liberdade. Os senhores escravagistas não queriam que seus escravos fossem para a casa de uma abolicionista e ficassem com a cabeça cheia de idéias que podiam gerar sérias revoltas.
Ver aqueles pretos que viviam livres e recebendo salários, era um meio de alimentar esperanças aos corações dos que sofriam com as opressões dos brancos cortesãos. Todavia, o fato de não deixar que trabalhassem para Ofélia também suscitava alguma revolta, uma vez que ela pagava um bom valor por qualquer serviço, e não apenas alguns tostões. Os senhores que não se importavam com isso logo se viam obrigados a alforriar os trabalhadores, porque trabalhando para Ofélia as pessoas não demoravam a ter condições de se verem livres. Muitas dessas, depois, iam trabalhar para ela.
Ofélia e Sorte conduziam os negócios com maestria e, vendo que a Inglaterra se industrializava empregando trabalhadores livres, ambas estudavam possibilidades de fazer o mesmo por ali.
Apesar de todo o sucesso do café, os Olivares investiam principalmente na criação de gado inspirando Ofélia a ir pelo mesmo caminho, contudo, quando a mulher esteve em viagem pela Europa, viu que poderia empregar mais pessoas e fazer fortuna com isso, se abrisse uma fábrica de algo. Assim que retornou ao Brasil discutiu isso com a amiga, que concordava.
Mas era um negócio que demandava muito estudo e tempo para ser acertado. Ofélia fazia muita fortuna por não comprar e vender escravos, mercadoria que já era tratada praticamente como contrabando. Sem esse ônus e fornecendo uma das matérias primas mais essenciais do país, tinha uma vida financeira muito estável.
Quando Marcel entrou na sala, viu Ofélia sentada em um dos sofás e Mirtes no outro. A menina estava arrumada para o passeio e investia seu tempo em um bonito bordado, muito bem feito, que ela praticamente já finalizava. Tinha talento para o arremate. A irmã mais velha lia o Jornal do Commércio com seu Lorgnette parado na frente dos olhos. Estava séria, e não olhou para cima sequer um segundo.
— Senhor Desfleurs! — Mirtes o cumprimentou com entusiasmo.
— Boas tardes senhoritas Weirtz. — Marcel as cumprimentou.
Mirtes, ansiosa para o passeio, saiu para catar sua sombrinha de renda e o chapéu. O vestido branco de babados tinha um tecido que parecia suave e fresco.
— Boa tarde. — Ofélia abaixou o jornal e olhou primeiro para a irmã que quase saltava até o teto, tamanha a empolgação. Depois olhou para Marcel.
Sentiu o ar escapar dos pulmões ao ver o homem parado ali. Alto, com um sorriso largo e amistoso. Os olhos castanhos brilhavam e o cabelo estava bem penteado. O cheiro de loção pós-barba se espalhara suave pelo ambiente. Ofélia engoliu sem seco olhando para a pele suave do rosto dele, caprichosamente barbeada.
— Sente-se. — Ela convidou.
— Ah, muito obrigado, Ofélia. — Marcel dispensou um agradecimento enquanto se sentava.
Ela corou por ter sido chamada pelo primeiro nome, principalmente porque achava o sotaque dele adorável. Acabou não o repreendendo.
— Sabe minha cara, você pode me chamar de Marcel também. Já nos conhecemos a tempo o suficiente para que isso soe natural o bastante. — Ele foi direto e sério.
Ofélia se sentiu tão inquieta que chegou a tirar o tapa-olho. E em uma rara ocasião desde que chegara ali na corte, Marcel conseguiu ver o rosto dela por completo. Ambos o olhos opacos de sofrimento e azuis tão pálidos que gritavam a tristeza e solidão que havia naquele coração padecido. Ofélia tinha aquele olhar triste desde mais moça, colocado ali pelo próprio pai que era um agressor físico e psicológico.
— Tudo bem, Marcel. Não despenderei tempo com recusas púdicas. — Ela concordou em tom seco. — Essa fase de minha vida já passou.
— Não preciso que seja púdica, Ofélia. — Marcel devolveu com firmeza gentil enquanto sustentava o olhar dela. — Você sabe bem que esse teatro de costumes que é a sociedade, para mim de nada serve.
— Que seja. — Ofélia desviou o olhar para o chão porque sentiu uma súbita vontade de chorar.
Por que a franqueza de Marcel sempre lhe soava tão calorosa? Era como um abraço sincero que sempre mexia com seu coração.
— Ofélia querida, um dia você terá que admitir que gosta de mim tanto quanto eu gosto de você. — O homem lançou as palavras enquanto olhava para um anel que trazia no dedo a ele delegado. — Então iremos descobrir se isso é amor.
As palavras fizeram o coração de Ofélia dar um salto no peito e ela olhou para o homem, completamente desarranjada. Marcel tinha acertado em cheio e sem aviso algum. Ela sequer tinha palavras para responder.
— Não se preocupe. — Ele olhou e sorriu. O sorriso mais lindo e arrematador que alguém poderia ter. Aquele que fazia tremer as pernas de muitas mulheres, fazendo com que elas perdessem o fio da meada de seus pensamentos. — Eu vou esperar o tempo que você precisar para aceitar isso. E quando você estiver pronta, apenas me dê um sinal.
Ofélia chegou a colocar uma mão trêmula sobre o coração. Quase caiu na tentação de dizer que o queria naquele momento, todavia se controlou.
Mas ela viu, nos olhos dele, que ele tinha sentido a intensidade de suas emoções. Aquele olhar confiante de quem sabia exatamente o que dizia. Ele sorriu e jogou um beijo com a mão. Ofélia não foi capaz de evitar abrir os primeiros botões do vestido que ia até o pescoço, o ambiente se tornara insuportavelmente quente.
Marcel sorriu novamente. Um sorriso terrível de tão descarado.
— Já estou pronta. — Mirtes apareceu com todos os acessórios e Ofélia ergueu o jornal abruptamente, agradecendo mentalmente por a irmã ter interrompido. Escondeu o próprio estado atrás das folhas amareladas.
— Não volte tarde. — A irmã mais velha pediu.
Mirtes olhou desconfiada na direção de Ofélia cuja voz soara trêmula.
— Estarei bem, seremos breves. — Foi tudo que a mocinha falou.
Marcel se levantou e ofereceu o braço para a mais jovem.
— Está muito bela, mademoiselle Mirtes. — Elogiou a menina e viu os olhos dela brilharem.
— Acha mesmo, senhor Marcel? — Ela perguntou cheia de felicidade e Ofélia estreitou os olhos para as páginas do jornal.
Como Marcel tinha todo aquele poder de encantar as pessoas? Que carisma avassalador era aquele?
— Comme une fleur, Mirtes. — Ele piscou um olho e a menina sorriu. Nascia uma bonita amizade. — Podemos ir? Um coche nos espera.
Tratava-se de uma carruagem pequena que Marcel tinha comprado para ter como se locomover sem precisar dos carros de aluguel. Claro que seu coche acabava marcado, e todos sabiam sua movimentação devido à presença de tal carro, mas ele não fazia nada demais da vida.
Mirtes e Marcel saíram da casa e entraram no coche. Em pouco tempo andando pelas ruas de calçamento irregular alcançaram a Rua do Passeio. Quando chegaram, Marcel ajudou Mirtes dando a mão para que ela descesse do carro em segurança.
A menina tinha em seu rosto um sorriso tão largo que era impossível de esconder.
A praça do Passeio Público ficava próxima à praia da Glória, era um parque ajardinado extremamente bonito em estilo neoclássico, e era para lá que as pessoas iam por diversos motivos, sobretudo quando queriam exibir algo. As roupas, os cônjuges, as mercadorias a serem vendidas, seus enormes egos. Em suma, era um local onde as pessoas comumente se socializavam fora de suas casas.
— Gosta tanto assim do Passeio? — Marcel perguntou e depois sorriu para a mocinha que abriu a sombrinha de tecido fino e segurou no braço do acompanhante.
— Eu acho bonito, apesar disso não tenho tantas oportunidades de vir aqui. — Ela confessou sem pesar.
— Por quê? — O homem questionou de maneira despretensiosa enquanto passavam pelo portão do Passeio.
— Irei confidenciar ao senhor, mas não quero que me interprete mal, muito menos que pense coisas ruins acerca de minha irmã. — Mirtes impôs sua condição.
— Jamais farei mal julgamento de sua irmã. — Marcel falou enquanto andavam devagar em uma das ruas do parque. De maneira quase inconsciente varreram o local com o olhar, observado as pessoas em suas diversas atividades ao ar livre.
Alguns caminhavam, outros jogavam, faziam piquenique sobre o tapete de relva verde e sob as árvores de copas frondosas.
— Geralmente não peço para que Ofélia me traga. Sei que ela se sente desconfortável em situações públicas. — Mirtes confessou. — Percebo como as pessoas são maldosas, mesmo eu sendo jovem demais para absorver tais coisas.
— Certamente sim. — Marcel reforçou. Já que pouca idade não significava estupidez.
— Pois bem, eu percebo tudo. Sei que o senhor entende que quando eu era mais nova assisti a todos os maus tratos de nosso pai. — Mirtes contava os passos e olhava para o céu azul com poucas nuvens enquanto falava. Seu olhar estava perdido. — Lembro-me claramente dos sacrifícios de Ofélia para me manter o mais longe possível de todas aquelas atrocidades. É certo que eu não entendia bem, mas as lembranças permaneceram aqui — ela apontou um dedo para a cabeça. — E aqui. — Apontou o mesmo dedo para o coração.
— Entendo perfeitamente, Mirtes. — Marcel inspirou profundamente o ar puro do parque. — Minha irmã Clementine sempre se sacrificou muito por mim, por isso fui obediente durante a vida toda.
A mocinha apertou os lábios e olhou para o chão. Chutou uma pedra que apareceu em seu caminho.
— Sei que é melhor deixar Ofélia pensar que estou protegida de tudo. Não quero que ela se esforce mais para me fazer feliz enquanto tenta fazer minha vida ser normal. — Os olhos da menina marejaram. — Já sou feliz por ter minha irmã.
O homem entendia a completude do que ela queria dizer, porque, por ironia do destino, tinha passado o mesmo com Clementine. Sabia o peso e alívio daquele sentimento de gratidão que Mirtes sentia e de como era se esforçar dia após dia para tentar retribuir o amor para uma alma despedaçada. Visto que era isso que Ofélia era depois de ter passado por tantas experiências traumáticas, uma alma despedaçada que se esforçava para deixar a da irmã inteira.
Por esse motivo ele tinha se demorado tanto para se aproximar de Ofélia. Deixou que ela se acostumasse com sua presença na corte e posteriormente com encontros casuais nas casas dos amigos. Não queria invadir o espaço sagrado onde aquela alma descansava.
Perceptivo, notou que ela já tinha baixado a guarda quando deixara que ele levasse a irmã mais nova para um passeio.
— Creio que, independente de tudo, somos felizes. — Mirtes concluiu. — Eu só queria ver Ofélia não tão solitária.
Marcel sorriu ao abrir o coração com suas poucas palavras seguintes.
— Eu também. — Enquanto pensava que, de preferência, gostaria que ela quisesse a si como companhia.
— Podemos ir até a Fonte dos Amores? — Mirtes pediu. Gostava da estrutura bonita da fonte. Tinha a imagem de um querubim e o busto da deusa Diana ali perto. Havia também a escultura de alguns jacarés dentro dela.
— Certamente que sim! — Marcel concordou sentindo que o ânimo da mocinha se renovava. Um vento fresco soprou fraco, os panos do vestido mimoso se agitaram e ela sorriu.
Ambos iam apressar o passo quando, em frente de si, apareceu um rapazola.
Tinha por volta de seus dezessete anos, covinha no queixo e olhos de cor castanho-escura. As roupas finas e de última tendência evidenciavam sua posição social privilegiada.
— Boas tardes. — O rapazinho cumprimentou a Marcel escrutinando-o com o olhar.
— Senhor Desfleurs, — Mirtes tomou a palavra antes que o acompanhante tivesse a chance de mandar o menino às favas — permita que eu apresente Igor Moreira, um conhecido de nossa família.
— Conhecido... — O rapaz repetiu as palavras com orgulho ferido. — Pensei que fôssemos amigos, senhorita Weirtz.
Marcel revirou os olhos.
— Não me atormente hoje, por favor. — Mirtes deu uma resposta seca. — Estou a passeio com o senhor Marcel Desfleurs.
— Mirtes... — O rapazola ia contestar, mas Marcel ergueu uma mão espalmada como sinal para que ele parasse.
— Respeite aos pedidos das damas, garçon. — O homem lançou em Igor um olhar tão gélido que fez com que ele sentisse calafrios. — Seja um cavalheiro, a não ser que não tenha sido instruído de acordo. À l'impossible nul n'est tenu.
O rapazola não gostava muito das aulas de francês, por isso não entendeu completamente o que Marcel quis dizer. Apesar disso, não queria dar o braço a torcer e por isso apenas estreitou os olhos enquanto travava o maxilar. O francês segurou o riso, porém Mirtes não conseguiu. A menina deu uma curta risada.
— Vejam só a hora! — Disse Igor enquanto consultava seu relógio de bolso. — Quase me atraso para meus afazeres. Passar bem, senhor Desfleurs e senhorita Weirtz.
O jovem ergueu o chapéu e mal ouviu a dupla se despedir enquanto se ia.
— Passar bem. — Mirtes e Marcel disseram ao mesmo tempo.
Quando o rapazola já estava longe o bastante, Marcel sorriu torto para Mirtes.
— Um de seus pretendentes, eu suponho. — Provocou enquanto recomeçavam sua caminhada.
— Não sei ao certo. — Mirtes bufou. — Quando estamos longe de outras pessoas, Igor é gentil. Porém, em ocasiões sociais, ele se porta desta forma que o senhor viu. Como um palerma egocêntrico.
— Talvez ele queira impressionar a mademoiselle. — Marcel observou.
— De onde ele tirou tais idéias? Nunca serei impressionada de forma positiva se ele continuar se portando como um arrogante sem estribeiras. — Replicou indignada.
— Compreendo. — Marcel anuiu com a cabeça. — Bem, é melhor que não dispensemos tempo de nossa bela tarde com este rapaz. Avante até a Fonte dos Amores.
— Pois sim. — Mirtes Weirtz concordou.
E se foram até a bonita estrutura.
Jornal do Commércio: Um dos mais famosos jornais do Rio de Janeiro na epoca do Império e depois.
Lorgnette: Par de óculos que tinham uma alça, geralmente usados mais como um ornamento do que como forma de melhorar a visão.
*****************************
Mademoiselle: Senhorita.
Comme une fleur: Como uma flor.
Coche: Carruagem pequena.
Garçon: rapaz.
À l'impossible nul n'est tenu: Um provérbio francês que tem o sentido de que ninguém pode dar o que não tem. A tradução seria algo como "Ao impossível ninguém é obrigado", ou seja, ninguém pode fazer o impossível. Marcel está ofendendo Igor de forma passivo-agressiva.
☆♡☆❤☆♡☆
Obrigada pela leitura!
Me pergunto se eu devia fazer um grupo de WhatsApp para minhes leitores terem com quem falar mal de mim.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro