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Esta mesma nova noite


Mirtes foi recebida por uma Camila apreensiva, que sabia o quanto a moça ficava mal quando precisava esperar sozinha em casa. Marcel apenas observou enquanto a jovem trabalhadora entregava o recado deixado por Ofélia.

— Sinto muito, Mirtes. Sei que não gosta de ficar sozinha em seu lar. — Camila falou enquanto apertava as mãos de maneira nervosa. Ela mesma não ficaria ali, pois ia para a própria casa descansar depois do exaustivo dia que tivera.

A casa de Camila era um lugar modesto, mas preferia viver lá, em seu próprio espaço.

— Não tenha preocupações sobre isso, Camila. Não é como se fosse a primeira vez que fico sozinha aqui. — Mirtes sorriu para tranquilizar a moça. — Ademais não há tantos perigos assim.

— Irei preparar seu banho antes de voltar para minha casa. — A servente avisou. — Seu jantar ainda está quente na cozinha. Foi preparado há pouco.

— É melhor que eu tenha minha refeição então. Obrigada, Camila. — Mirtes agradeceu enquanto retirava as luvas. Ter alguém preocupado consigo era sinal de ser amada, o coração estava cheio de gratidão por aquilo.

Camila abaixou a cabeça para Mirtes e Marcel, depois saiu.

A mocinha suspirou.

— Bem, acho que tenho a casa toda para fazer o que for de meu interesse. — Tentou soar espirituosa. — Obrigada pela tarde agradabilíssima, senhor Desfleurs.

— Sabe Mirtes, tenho duas excelentes propostas para si. — Marcel tirou o próprio chapéu e colocou em um suporte junto com sua bengala.

A moça olhou subitamente interessada.

— A primeira é enviarmos alguns convites e iniciar uma festa dentro em pouco. — Mirtes recebeu essa perspectiva com espanto e Marcel riu. — E a segunda é eu ensinar a você como fazer doce de leite. Aprendi na fazenda de Dona Bianca, quando você ainda era pequena.

— Eu me lembro que quando nos mudamos para lá vocês já tinham partido com Sorte! — Mirtes era criança ainda, mas as lembranças da epoca foram muito marcantes.

— Sim. Pois bem, se quiser aprender a fazer o doce, agora é o momento oportuno. — Ele ofereceu. Faria qualquer coisa para que ela não passasse aquela noite sozinha na casa escura e silenciosa.

— Claro, eu gosto muito de doce de leite. — Mirtes sorriu entusiasmada enquanto batia palmas rápidas de agitação. — Podemos fazer uma compota para Ofélia, ela gosta mais que eu.

— Verdade? — Marcel guardou aquela informação.

— Sim! — Mirtes replicou inocente. Não tinha percebido ainda o quanto aquele tipo de conhecimento era crucial para quem sabia usar.

— Pois vá trocar suas vestes. Não queremos que estrague seu vestido bonito. —Ele recomendou com as mãos na cintura.

— Tem razão, senhor Marcel. — Mirtes já ia saindo a toda velocidade quando Marcel a segurou pelo braço enquanto ria.

— Guie-me até a cozinha, por favor. — Pediu de bom humor e depois soltou o braço da menina.

— Desculpe-me, quase esqueço. — A mocinha riu de uma maneira que denunciava sua pouca idade.

Mirtes guiou o francês até a cozinha e foi para o quarto trocar de roupa enquanto ele acendia o fogão à lenha. Era um processo um pouco demorado, mas tinha prática, por isso, logo as lenhas queimavam na boca do fogão, abaixo da chapa de ferro. O homem vasculhou a cozinha até encontrar o açúcar e o leite fervido. Passou sabão em volta de um tacho de bronze para que o carvão do fogão não grudasse, lavou as mãos e esperou por Mirtes.

Logo a senhorita apareceu trajada um vestido marrom, simples, provavelmente dos que usava na fazenda ou para brincar no quintal. Sem o chapéu e as presilhas, estava com o cabelo longo todo solto.

— Pode me ajudar a prender meu cabelo, senhor Marcel? — Ela pediu enquanto ele se levantava. O homem concordou com a cabeça e pegou a fita de cetim que ela estendia. — Sempre que venho para a cozinha faço coque.

— Você vem muito para cá? — Ele perguntou ao mesmo tempo em que ela arrumava os fios longos no penteado citado.

— Sim, quando Ofélia não está em casa é comum que eu venha. — Mirtes respondeu.

Quando ela terminou de arrumar o cabelo, Marcel o prendeu com a fita, finalizando com um laço perfeito.

— Está firme? — Ele questionou mesmo sabendo que estava.

Já tinha feito aquilo muitas vezes pela irmã, por Maria Belinha e por algumas mulheres com quem já tinha se deitado.

— Sim, ficou muito bem feito. — Ela se admirou. — Estou pronta! Vejo que o senhor já completou quase todo o processo.

Marcel pegou o tacho de bronze e colocou sobre a chapa de ferro. Depois entregou uma colher de pau, que tinha cabo comprido, para que Mirtes mexesse no tacho.

— Vamos começar. — Ele pegou o açúcar e despejou uma quantidade no fundo do tacho enquanto Mirtes mexia.

Depois o homem pegou a colher e movimentou até o açúcar se tornar líquido dourado e grosso, o caramelo. Em seguida passou a colher para a mocinha e despejou o leite dentro do tacho. O açúcar quente cristalizou ao entrar em contato com o leite frio, mas logo que o leite começasse a ferver ele derreteria.

— Pode deixar que mexo a partir daqui. — Marcel pegou a colher de pau novamente. — É bem simples agora. Basta movimentar a colher porque ele sobe e derrama se ferver.

— Acho que consigo fazer sozinha. — Mirtes olhava para o doce com olhos compridos de vontade. Apesar de ralo, já tinha bonita cor dourada característica.

— Com certeza sim, porém em menor quantidade porque seus braços ainda são pequenos e perto do fogão é muito quente. — Ele avisou.

Mirtes olhou para os braços dele que estavam com os punhos da camisa puxados até os cotovelos.

— O importante é que sei. — Ela deu de ombros.

— Vá jantar. — Marcel acenou com o queixo para as panelas cheias de comida. Ele as tinha colocado sobre a mesa de madeira. Eram de ferro, manteriam a temperatura por um bom tempo.

— Irei esperar por você. — Mirtes respondeu.

Ele sorriu. A mocinha era como a irmã, tinha o coração generoso.

— Não estou com fome agora. Possivelmente farei minha refeição em casa. — Ele retrucou.

— Então também não estou com fome. — Mirtes não queria comer enquanto ele olhava. Não gostava daquilo. Não fazia isso com ninguém, nem mesmo com Camila.

— Se não jantar, não poderá provar do doce. — Marcel asseverou.

A moça ponderou enquanto entortava a boca e acabou cedendo. Sentou-se em um banco na longa mesa de madeira e comeu enquanto olhava para Marcel que mexia o doce com paciência e ritmo constante.

Os fios do cabelo bem penteado escapavam, caindo sobre a testa.

— Você ainda brinca com bonecas? — Ele questionou ao perceber que era observado.

— Às vezes sim. Tenho todas, entretanto a senhora Camargo, minha tutora, disse que uma mocinha muda de hábitos e não brinca mais com bonecas. — Mirtes disse antes de colocar uma colherada de comida na boca e mastigar.

— Isso é bobagem. — Marcel Bufou. — Você deve aproveitar enquanto tem interesse nessas coisas.

— Verdade? — Ela indagou.

— Sim. — O homem respondeu com simplicidade e colocou uma mão na cintura.

— Eu tenho pena de deixar minha boneca Esmeralda. — Mirtes contou pesarosa. — Gosto muito dela. Foi o primeiro brinquedo que minha irmã deu para mim quando viajamos para a Europa.

— Você gostou da viagem? — Marcel queria entender como Mirtes via o mundo.

— Sim! Foi bem cansativo viajar por um longo tempo no navio e às vezes eu ficava enjoada. Também era estranho andar em lugares onde eu não entendia o que as pessoas diziam, apesar de tudo isso, foi muito divertido. — Ela soltou uma risadinha.

— Quando cheguei aqui também havia muitas expressões que eu não conhecia. — Marcel contou. — Note que apesar de meu sotaque, falo brasileiro cada vez melhor.

— Entendo bem. — Ela concordou.

A conversa amena durou mais alguns minutos, pois a força do calor da lenha fez o doce ficar pronto em pouco tempo. Marcel puxou o tacho de cima da chapa e apagou o fogo. Depois, com uma concha, colocou um pouco do doce em um prato e o mexeu com auxílio de uma colher de sopa, para que ele esfriasse.

Quando o doce esfriou finalmente, ficou perfeitamente cremoso e encorpado.

— Pode comer. — Marcel entregou o prato para Mirtes e ficou somente com a colher.

Já não tinha o paladar afeito aos doces como quando era mais jovem.

— Que delícia! — Mirtes exclamou ao provar a guloseima. — Ofélia amará.

Marcel apenas sorriu.

— Termine logo, já está na hora de dormir. — Ele ordenou. — Já escureceu lá fora.

Mirtes olhou pela porta aberta e viu o escuro. Nesse mesmo momento começou a chover. Assim que a menina terminou de comer e foi se banhar, Marcel tratou de organizar a cozinha. Para depois partir.

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