Corte
♠Todas as palavras em itálico ou marcadas com asterisco* tem explicação no final do capítulo.♣
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— Olhem! O dragão da corte chegou. — Uma senhorita sussurrou para o grupo de amigas quando viu a loura que adentrava o salão.
A mulher recém chegada trajava um vestido simples de cor azul, escuro e profundo, sem decotes ou outros atrativos para os olhos de possíveis pretendentes, mas com corte de primeira linha. Sinal de que tinha dinheiro e nenhuma vontade de se exibir. Usava uma bengala como apoio porque era coxa. Os cabelos louros estavam arranjados em um coque simples com cachos pendentes nas laterais do rosto. O que chamava mais atenção na face não era o azul aquoso da íris que aparecia, mas o preto tapa-olho que cobria uma das órbitas.
Aquela era Ofélia Weirtz, dona de um império de negócios. Tão rica quanto rígida e ríspida.
Ofélia era ridicularizada pelas costas, mas contava nos dedos quem a enfrentasse cara a cara. Sua rede de relações era tão poderosa quanto sua presença imponente. Em pouco tempo se tornou impossível ficar indiferente diante daquela mulher. Mesmo assim muitos caçoavam dela.
Ao lado da temida e ofendida Ofélia Weirtz, vinha sua irmã, Mirtes Weirtz. Era muito jovem, mas já contava um sem número de pretendentes. Os cabelos de Mirtes não eram tão louros quanto os da irmã, na verdade tinham cor castanha muito clara e os olhos eram de cor azul escura e não aquosa, mas os traços de ambas não negavam o parentesco próximo.
A mais nova - diferente da mais velha e tutora - se comportava como uma gazela acuada. Mirtes se divertia dançando em bailes, porém não gostava da maioria das pessoas que a eles frequentavam. Principalmente porque essas pessoas falavam mal de sua amada irmã sem nem mesmo saber metade da história dela.
Para Mirtes, Ofélia era um mundo de segurança e aconchego. Aquela que se sacrificou para que ambas pudessem ser livres.
— A talzinha Mirtes Weirtz é intragável também. — Comentou uma segunda mocinha, cheia de inveja.
Quisera ela que tantos lhe fizessem a corte como faziam a Mirtes, que então contava somente treze anos de idade. Diferente dela, Mirtes não estava interessada neles, preferia inverter sua situação com a que reclamava.
— Se aborrecerdes com tão pouco, terá rugas. Logo desistem de fazer a corte a ela já que a irmã não quer entregá-la tão cedo. — Uma terceira menina do círculo comentou de maneira peçonhenta.
— Vocês têm essa necessidade de desvalorizar a pobre. Não sejam invejosas, reparem no lindo vestido de Mirtes. — Disse uma quarta menina, de nome Tereza Lobato.
Todas já tinham analisado em silêncio ao belíssimo vestido cor de rosa que Mirtes usava. Era claro, rodado, com o busto trabalhado em singelas rendas da terra. As mangas nos braços eram curtas e levemente bufantes. No pescoço, a menina trazia um delicado pingente de coração, um diamante que pendia em uma corrente de ouro. Os cabelos estavam arranjados em um penteado alto, sofisticado, ornado com pentes nas laterais.
Enquanto Ofélia calçava uma simples sapatilha preta e trazia discreto camafeu na gola do vestido fechado, Mirtes levava nos pés mimosas sapatilhas de cor rosa, bordadas em pedras e fios de ouro.
As irmãs terminaram de entrar no salão e foram alcançadas por um homem alto, que tinha cabelos pretos e marcantes olhos verdes. Ele pegou a mão de Ofélia e beijou-lhe as costas com suavidade.
— Fico feliz que nos tenha dado a honra de sua presença, Ofélia. — Azarado sorriu sarcástico. Sabia o quanto ela odiava aquelas ocasiões sociais.
— Faço pelos negócios. — A mulher respondeu um pouco azeda.
Ao lado de Azarado estava uma deslumbrante jovem senhora, vestida em bordô e ornada de jóias. O cabelo não estava em coque, mas em um arranjo com metade do volume preso em um rabo de cavalo, no todo que pendia foram feitos cachos largos. Ela riu do mau humor de Ofélia enquanto abraçava a amiga.
— Não fique amuada, Ofélia. Pobre de Mirtes se essa nuvem de desgosto não parar de pairar sobre vossas cabeças. — Sorte advertiu.
— Já estou acostumada, Vossa Graça. — Disse Mirtes enquanto Azarado lhe beijava a mão.
— Quantas vezes precisamos advertir que não nos chame assim? — Azarado revirou os olhos. Não gostava que Mirtes fosse formal, pois se sentia como tio dela.
— Mil perdões. Tenho uma irmã que diz para não tomar liberdades com os tais nobres ou farão disso uma dívida. — Mirtes brincou com o que Ofélia sempre dizia.
— Estou profundamente ofendida. — Sorte colocou uma mão sobre o peito fingido que sentia um golpe no coração. E depois deslizou a outra mão sobre a barriga protuberante.
Fazia cinco anos que se casara com Azarado e apenas então engravidou. Isso levou a família Olivares a chegar à conclusão de que Adália demorou a engravidar porque a semente de Pedro não era tão fértil.
— Onde estão o conde e a condessa? — Ofélia perguntou. Os Olivares iam a todos os bailes quando estavam na corte.
— Bem atrás de vocês. — A voz de Pedro Olivares, conde de Pedra Negra, soou detrás de Ofélia.
Todos se voltaram para o casal Pedro e Adália, irmão e cunhada de Sorte Olivares e Almeida, marquesa de Diamantais. O grupo trocou cumprimentos.
— Líria e Álvaro ficaram em casa? — Mirtes perguntou dos gêmeos, filhos do casal de Pedra Negra.
— Sim, não pretendemos nos demorar por aqui. — Pedro respondeu.
— Sempre que quiser pode nos visitar, Mirtes. Há dias que não nos dá essa honra. — A miúda condessa de cabelos castanhos avermelhados reforçou o quanto era querida a presença de Mirtes em sua casa. Sempre que tinha oportunidade fazia isso. Os gêmeos gostavam dela.
— As lições têm me tomado muito tempo, senhora Adália. — Mirtes justificou seu sumiço.
— Vês isto, Sorte? — Azarado deu um leve cutucão em Sorte e projetou um bico. — Sua família merece ser tratada com intimidade enquanto nós somos tidos como "nobres que cobram favores".
— Oh Adália, ouço o zumbir de inveja vindo de certas pessoas. — Pedro implicou por brincadeira e todos riram.
Ofélia se sentia bem com a presença deles. Eram dos poucos que não a chamavam de Dama de Ferro, e dos raros que de fato conheciam sua história. Agradecia todos os dias pelo perdão que Sorte lhe concedera ao terrível pecado de roubar-lhe o pretendente. Não era ruim pelo pretendente, mas pela traição com sua amiga. Tudo terminara bem para eles no final.
Quase todos estavam presentes ali, a mulher observou. Faltava uma pessoa, e Ofélia não queria perguntar daquele indivíduo em especial, pois podiam começar os alcovites. Ainda assim, enquanto os amigos conversavam, discretamente procurou por ele na multidão, entre todos os grupos de moças, onde naturalmente ele estaria.
Seu charme arrebatador sempre as atraía, assim como o sotaque.
A tentativa de encontrá-lo acabou sem sucesso nos resultados, por isso se voltou intimamente mais incomodada para a conversa dos amigos.
Enquanto isso, de um canto do salão, ele a admirava. Embebido em sua beleza. Estava convencido de que mesmo em trapos, Ofélia seria capaz de se sobressair. Ele observou que ela olhava para as mulheres inquietas em círculos de conversa, procurando por alguém.
Ele não tinha certeza de quem Ofélia buscava, contudo sentiu-se um pouco enciumado. Devagar se aproximou pelas costas da mulher e chegou a boca perto do ouvido dela.
— Espero que estejas procurando por mim, fleur. — Sussurrou ao pé do ouvido de Ofélia, deixando-a ruborizada e arrepiada.
— É apenas impressão, senhor Marcel. Eu somente avaliava os convivas. — Ofélia tentou disfarçar. De fato ela buscava por ele e até ficou decepcionada quando não o encontrou.
Azarado e Sorte trocaram olhares significativos, assim como Adália e Pedro. Mirtes apenas deu um sorriso discreto e brilhante. Todos enxergavam a verdade, menos Ofélia e Marcel. Às vezes tinham vontade de se intrometer, entretanto as circunstâncias eram delicadas. Ofélia tivera o coração massacrado muitas vezes e sua reconstrução não seria simples.
Marcel Desfleurs cumprimentou a todos. Já havia alguns meses que estava na corte do Rio de Janeiro, hospedado com o casal de Diamantais. Viajara até ali com Ofélia, porém, até então só se encontravam em ocasiões sociais nas quais ela ia. Ele a estudava todas as vezes em que a via, por isso se demorava na iniciativa, era um estrategista.
Só que não era tão simples acompanhar a vida dupla de Ofélia. Além disso, estava pessoalmente lidando com os negócios de interesse dos Desfleurs. Aumentando a própria fortuna e a da irmã, Clementine, que ainda vivia enfurnada no interior com seu marido Ícaro e o filho Émile.
— Como dói meu coração sem a atenção da flor mais bela do salão. — Marcel reclamou olhando para o teto e Ofélia bufou.
— Tem aqui toda minha atenção, monsieur. — Marcel abaixou o olhar para ver a dona da voz e da mão que, com ousadia, agarrou-se em seu braço.
Era Honorinha Cunha, viúva jovem muito requisitada nos salões. Ocorria que o marido dela morrera de uma febre muito forte pouco tempo depois de se casarem e ela ficou viúva aos vinte e poucos anos. Tinha olhos castanhos muito expressivos e cachos naturais nos cabelos brilhantes. Baixa, magra, o tipo favorito da maior parte dos homens da corte.
Contudo, Honorinha tinha seus gostos pessoais e isso dificultava a vida de muitas pessoas, por vezes até mesmo destruía alguns lares. Sim, era ela amante dos casados. Suas presas mais fáceis e também as favoritas. A maioria dos homens não se casava por amor, porque se vendia pelos negócios. Não era difícil atrair aqueles corpos sedentos de pecado e cheios de hipocrisia para os lençóis de sua alcova. Todavia, os casados eram sua presa favorita, porém não a única. Fazia ela muito gosto pela companhia dos estrangeiros.
Visto que não poderia ter aquele a quem mais desejava, o marquês de Diamantais, Honorinha se cansou de jogar seu charme em vão e decidiu investir no segundo alvo da lista: Marcel Desfleurs.
Não entendia qual era o problema de Marcel. Estava sempre entre as moças, era galante e não se fazia de difícil, no entanto, mal conseguiam uma dança vinda dele. Era o pretendente perfeito, charmoso, com traços muito agradáveis aos olhos, alegria contagiante e a bolsa cheia de dinheiro.
— Vossas Graças. — Honorinha cumprimentou os Diamantais e os Pedra Negra. Depois dirigiu o cumprimento àquelas que para si não tinham nada de mais ou de menos. — Senhoritas Weirtz.
Todos cumprimentaram de volta. Enquanto isso, Marcel aproveitou para soltar o braço.
— Sinto por desapontá-la, madame Cunha, mas já prometi essa dança à adorável senhorita Weirtz. — Marcel saiu pela tangente.
— Pensei que reclamavas de estar abandonado pela mais bela do salão, não sabia que dançarias com outra que não eu. Acaso sou feia? —A mulher disse em tom de brincadeira, porém seu olhar afiado exigia uma resposta sincera.
Marcel abriu um meio sorriso saliente, pegou uma das mãos da mulher e beijou.
— É tu uma flor que faz inveja ao mais viçoso dos lírios. — Elogiou enquanto firmava sustentava o olhar da mulher. O coração dela disparou ao ponto de fazer com que colocasse a mão livre sobre o peito que subia e descia com intensidade. — Entretanto, precisarei me desculpar porque protegerei o botão de rosa que ainda irá desabrochar para deslumbrar aos olhos dos casadouros.
Marcel soltou a mão de Honorinha e pegou a de Mirtes, que olhou um tanto desconsertada.
Ofélia parecia ter uma nuvem carregada sobre a cabeça, que só clareou quando Marcel se afastou de Honorinha. Apesar de tentar manter a pose distante, mal conseguia controlar a respiração raivosa. Não queria se envolver com Marcel, mas também não suportava a ideia de que outra o tivesse.
— Falava de senhorita Mirtes. — Honorinha olhou para a menina e riu com alívio não disfarçado. — Pensei que falavas da outra.
Honória olhou direto para a bengala de Ofélia.
A mulher de tapa-olho quis acertar aquela madeira na cabeça da abusada que se referia a ela com desdém. Claro que não tinha esse direito, sabia que era chacota também por não dançar mais. Sempre que tentava se frustrava por não ter mais a graciosidade, a coordenação e o equilíbrio de outrora, quando flutuava como uma pluma nos braços dos cavalheiros que a conduziam. Sempre mancava muito e até mesmo tropeçava.
Ofélia engoliu em seco se sentindo humilhada. As amigas, Sorte e Adália, iam interferir para defendê-la, o próprio Marcel pensou em reagir, no entanto, outra pessoa foi mais rápida.
— Senhorita. — Todos olharam para Mirtes que tinha enlaçado o braço de Marcel com o próprio. — Desculpe senhora, — a mocinha deu ênfase na palavra — creio que nunca fomos apresentadas, então prefiro que me chame de senhorita Weirtz. Não quero que pensem que qualquer pessoa tem intimidade para me chamar pelo primeiro nome.
— Ora, quanto atrevimento. — Honorinha respondeu sem pensar, sentindo-se ferida por uma criança corrigir sua postura. — Posso chamá-la como bem me aprouver.
— Temo que não. — Foi Azarado quem replicou com sua voz grave. — Devemos todos cuidar da honra de uma jovem senhorita, não é mesmo? Se em suas virtudes ela deseja ser respeitada, então será considerada.
Honorinha olhou para o marquês, dividida entre dar uma resposta mordaz e continuar a fitar os olhos verdes que refletiam o brilho dos lustres.
Marcel engoliu em seco. Pensou em retrucar, mas uma mulher que controlava vários homens pela cabeça mais fraca era demasiado perigosa. De desfalques financeiros até morte, tudo estava ao alcance. Não que fosse um covarde, mas se ela mirasse nas irmãs Weirtz ele jamais se perdoaria. Todavia contra o marquês ela não tinha poder, principalmente porque o casamento dele era muito sólido, assim como suas posições financeiras e políticas.
— Meu amor, tenho sede. — Sorte passou a mão no rosto tenso do marido, fazendo com que olhasse para ela. — Traga uma limonada para mim.
— Não me demoro. — Azarado abriu para ela seu sorriso mais largo e apaixonado antes de sair cortando a multidão atrás da tal limonada.
— Que solícito. — Honorinha disse admirada.
— Sim, meu marido é. De fato, um excelente marido. — Sorte chamou a atenção dela e sorriu enquanto passava uma mão sobre o ventre. — Tanto quanto sou uma boa esposa. Estou certa de que um dia terás tu um pretendente que esteja tão à sua altura quanto Azarado está da minha.
Ofélia não conseguiu segurar o sorriso. Sorte era feroz, não à toa colocava os negócios sempre para frente.
— Já começa a próxima dança, melhor se apressarem. — Pedro Olivares falou para Marcel e Mirtes. Também sorria faceiro pela defesa da irmã, orgulhando-se da instrução que ela tivera em casa.
Adália pensava o mesmo que o marido, e que Sorte teria sido uma condessa de força política sem igual, mas coube a ela, pelas picardias do destino, estar um nível acima da posição de condessa e ser marquesa.
Marcel levou a menina para o salão onde começaram a dançar com graça sem igual. Ofélia ficou orgulhosa porque a irmã brilhava de contente. Ria, na verdade, dançando lindamente sob o arrojo do homem.
E Mirtes não ria à toa. O francês a cumprimentava pela coragem e prometeu à menina uma ida ao Passeio Público, com a garantia de que nenhum moleque de calças curtas a incomodaria.
Honorinha apenas saiu sem se despedir de ninguém.
Pedro, Sorte, Adália e Ofélia foram para uma sala ao lado do salão, onde podiam se sentar. A grávida não suportava ficar tanto tempo em pé sustentando o peso da barriga. Logo Azarado a encontrou e se uniu à típica conversa sobre a economia por aqueles dias.
E o evento seguiu sendo apenas mais um baile da corte, nada demais.
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Fleur: Flor.
Monsieur: Senhor.
Madame: Senhora.
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