Chamado importante
Os dias se passaram. Bianca, Francisco, Ícaro, Clementine, Adália e Pedro foram embora para suas propriedades interioranas, deixando em Ofélia a sensação de que a corte estava muito menos tragável e divertida. Era uma tarde particularmente muito quente quando Julião surgiu na sala com um recado em mãos.
— Enviaram para entregar em mãos. — o homem disse enquanto entregava o papel selado.
Ofélia olhou para o namorado que se via recostado no outro sofá, tranquilamente continuara a leitura de um jornal. Mirtes saíra para uma visita em casa de Tereza Lobato de modo que estavam ali, na casa da mulher, apenas os dois e o recém chegado Julião.
Ela quebrou o selo e leu a carta. Quando terminou franziu a testa.
— Você já sabia? — Perguntou a Julião.
— Sim, Ofélia. — O homem afirmou.
— Senhor Desfleurs, também foi convocado. — Ofélia chamou a atenção de Marcel que na verdade acompanhava cada detalhe da situação, mas em silêncio.
— Qual a ocasião? — O francês tirou o olhar do papel e o voltou para Ofélia.
— Descobriram que há um navio negreiro prestes a chegar ao Rio de Janeiro. Estão organizando um assalto para tomar a embarcação. — A mulher explicou.
— Como souberam da chegada? — Marcel direcionou a pergunta a Julião.
— Um navio pirata que faz parte de nossa "sociedade" enviou a missiva. — Julião explicou. — Eles pretendem atacar pela popa e pedem que o cerquemos pela proa para render o maldito negreiro.
— Pirata? — Marcel questionou surpreso.
— É uma longa, longa história senhor Desfleurs. — Julião cortou o assunto com educação, mas sem deixar brechas.
Ainda não aceitava que Ofélia o tinha trocado por Marcel, entretanto não tinha o que fazer a não ser juntar os pedaços de seu coração partido e continuar vivendo. Por isso se dedicava a seu segundo maior amor, ou seja, lutava pela liberdade. Se morresse lutando por ela, seria, em seu julgamento, uma morte feliz.
— Quando partimos? — Marcel questionou já se levantando para ir ao próprio lar se preparar.
— Às nove horas da noite. O ataque será na madrugada. O ponto de encontro do grupo do Rio de Janeiro é na praia da Glória e de lá darão as orientações seguintes. — Ofélia explicou.
— Irei para casa me preparar. — Marcel avisou.
— Esperarei a chegada de Mirtes. Pedirei para Sorte e Azarado cuidarem dela já que não chego em casa ainda hoje. — Ofélia explicou sentindo o coração pesar por precisar deixar a irmã. Tudo o que poderia fazer para melhorar a situação era não deixar Mirtes sozinha ali, bem podia pedir para ficarem com ela, mas já tinha dispensado a todos menos as cozinheiras.
— Encontrar-me-ei com você na casa dos Almeida, então. Se formos juntos à praia da Glória irão supor que estamos de namorico em público. — Marcel disse animado e recebeu um olhar enviesado vindo de Julião. — Nem me olhe assim, homem. Nossa união, minha e de Ofélia, não é segredo para ninguém.
— Fala como se já fossem casados. — O homem ergueu as duas sobrancelhas.
— Quem sabe nos casemos amanhã, quando voltarmos dessa aventura. — Marcel sorriu ladino. — Vamos Julião, anime-se! Em nosso casamento podemos apresentar a você todas as moças que estiverem interessadas em um bonitão sério, tenho certeza que não irá faltar pretendente.
O descaramento de Marcel era tamanho que Julião riu.
— Promessa é dívida, Traseiro Branco. — O preto avisou a Marcel e Ofélia sorriu ao ouvir o apelido novo.
— Veja mon coeur, já somos amigos! — Marcel falou para Ofélia e abraçou Julião, que o olhou com estranhamento.
Marcel o soltou enquanto sorria.
— "Mon coeur"? — Julião perguntou para qualquer um que se dignasse a responder. Não sabia francês, mal lia e escrevia.
— Significa "meu coração". — Marcel explicou de boa vontade e passou um braço pelos ombros do homem. — Posso ensinar a ti algumas palavras bonitas em francês. As moças dos dias de hoje adoram um homem que sabe desenvolver bom flerte.
Ofélia estreitou os olhos e cruzou os braços.
— Menos minha amada Ofélia. — Marcel emendou. — Ela não é mulher de cair nesses truques baratos.
Julião gargalhou, o som retumbou pela sala.
— Ela gosta da cor azul, doce de leite e se quiser que ela se case com você basta prometer que fica dentro que casa por toda a eternidade. — Julião confidenciou em tom baixo e riu.
— Qual, que ciumenta é minha Ofélia! — Marcel colocou uma mão sobre o coração como se tivesse tomado uma punhalada ali. — Eu não sabia dessa valiosa informação.
— Não sou ciumenta. — Ofélia disse sem se alterar.
— Claro que não. — Marcel concordou sem firmeza. — Mas por via das dúvidas, se você se casar comigo, prometo que nunca mais sairei de sua alcova.
Julião gargalhou novamente achando muita graça da situação e Ofélia revirou os olhos.
— Um par de paspalhos. — A mulher resmungou.
— É dos paspalhos que ela gosta. — Marcel disse enquanto cutucava a costela de Julião.
— Quanto mais paspalho, melhor é. — Julião retrucou com sua sabedoria da prática.
Mirtes chegou já à tardinha e Ofélia avisou para ela que precisaria ficar com Sorte e Azarado. A menina pareceu um pouco triste, mas nada disse. Somente arrumou algumas roupas em uma mala de mão e deixou que a irmã a levasse até a casa dos amigos.
Quando as Weirtz chegaram lá, Marcel já estava presente e tomava uma dose de alguma bebida de cor âmbar. Sorte, sentada no sofá, comia algo de aparência estranha.
— O que é isso? — Mirtes perguntou chegando mais perto para olhar dentro da vasilha.
— É jaca amassada com manga. — Sorte explicou de boca cheia. — Fiquei com vontade de comer isso e o gosto está excelente. Vocês aceitam?
Sorte ofereceu a mistura para as irmãs Weirtz que lançaram um olhar duvidoso na direção da tigela que a marquesa tinha em mãos.
— Não, obrigada. — As irmãs responderam ao mesmo tempo e olharam para Azarado.
— Não me culpem, por favor. — Os olhos dele demonstraram divertimento. — Ao menos dessa vez ela quis frutas. Sentem-se.
O homem apontou para o sofá e as irmãs se sentaram.
— Já houve outras vezes? — Mirtes questionou curiosa para aprender mais sobre o processo de gestação que terminava no nascimento de uma criança.
Marcel riu. Até pouco tempo antes ele morava com os marqueses e viu Sorte comer algumas coisas que pareciam nada apetitosas.
— Pense, pequena Mirtes, que antes da mistura de jaca com manga minha esposa quis comer uma de minhas camisas. — Azarado revelou.
Sorte gargalhou enquanto Mirtes olhava chocada.
— Parecia saborosa. — A marquesa se defendeu.
Mirtes passou a mão discretamente sobre o próprio ventre enquanto pensava se um dia teria vontade de comer camisas, quando ficasse grávida.
Ofélia sorriu enquanto fingia não ver a ação da irmã.
— Azarado, meu amor, peça algo para as meninas comerem. — Sorte pediu ao marido e ele obedeceu de pronto.
— O jantar está quase pronto, portanto, é apenas um aperitivo para abrir o apetite. — Sorte avisou.
— Que gentileza, não carece de jantarmos. — Ofélia dispensou educadamente.
— Fale por si, mon coeur. Eu quero jantar. — Marcel sorriu em provocação.
— Não me faça essa desfeita, Ofélia! — Sorte ralhou.
A mulher aceitou jantar por ali, e foi uma ocasião agradável de socialização entre amigos até que ela e Marcel partiram rumo à praia da Glória. Até lá foram normalmente como um casal de namorados passeando pela cidade, mas quando encontraram o contato, se afastaram da vista de todos. Ambos, no meio da mata, trocaram as roupas por outras pretas, para dali seguir até o próximo ponto de encontro.
Chegaram a um lugar deserto. Um trecho de areia praticamente desconhecido que só ficava visível por alguns dias do ano. Ali, cheios de coragem, subiram em um bote que os levou para alto mar, seguidos de outros botes pretos e guiados por pessoas que estavam igualmente cobertas por capas negras como o escuro daquela noite quase sem lua.
Um navio preto e de velas de mesma cor esperava por eles. Sua popa tinha o grande entalhe de uma criatura mítica, uma fada.
— Esse é o Fada dos Mares. — A voz de quem remava um dos botes soou baixo no silêncio e Marcel imediatamente a reconheceu. — Ele também é um navio pirata.
— Antônia? — Marcel questionou mesmo sabendo que era ela.
A mulher tirou o capuz preto de sobre a cabeça.
— É um prazer revê-lo, senhor Desfleurs. — Antônia sorriu com os olhos marejados e sua voz soou emocionada.
— Estou surpreso. — O homem confessou.
— Sua irmã me deu dinheiro para vir para a corte e procurar um médico de loucos, mas eu resolvi comprar uma casa e investir o restante na luta de resistência. — Antônia contou. — Isso me ajudou bastante. Conheci outras pessoas, e a bordo do Fada dos Mares naveguei por muitas águas vivendo uma vida com a qual nunca tinha sonhado antes. Senti-me renovada, cheia de esperanças.
— Fico feliz por você, Antônia. — O homem disse com sinceridade. — São poucas as pessoas que realmente conseguem recomeçar.
— Sempre serei grata pelo dia no qual sua irmã me deu uma nova chance. — Antônia frisou.
Não houve mais tempo para conversarem, pois chegaram ao navio e o restante das horas foram usadas para montar uma estratégia ofensiva que oferecesse risco mínimo para a vida dos tripulantes.
Ofélia ficara na artilharia e Marcel se posicionou com aqueles que entrariam no navio adversário para rendê-lo. Fariam tudo em alto mar, por isso era mais complexo do que parecia.
As pessoas estavam apreensivas. Alguns faziam piadas ou brincadeiras jocosas para aliviar a tensão, outros cantavam baixinho para que suas vozes não fossem ouvidas em um lugar distante no mar.
Ofélia e Marcel encontraram um lugar onde tiveram privacidade para trocar beijos ardentes e cheios de promessas silenciosas, depois se separaram. Em meio à madrugada, quando o céu é mais escuro, o Piedade de Nosso Senhor, navio de tráfico negreiro, apareceu no horizonte.
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