Bodas
O dia do casamento chegou e a cidade estava em polvorosa. Havia sido anunciado aos quatro cantos que o festejo seria aberto de modo que as pessoas se aglomeraram desde perto da igreja até duas ruas nas redondezas. Todos os lugares estavam enfeitados segundo o gosto e aprovação de Marcel. Havia uma divisão entre a as recepções dos aristocratas e a do povo que, diga-se de passagem, já estava animado àquela altura porque os músicos se dedicavam muito ao canto mais popular e festivo, agitando as pessoas que dançavam eufóricas.
Uma onda de alegria percorria boa parte da população do Rio de Janeiro, assim como uma onda de inveja proporcional. Muitos chamavam os noivos de desvairados e outros se enciumavam de seu poder aquisitivo já que ofereciam um casamento de tão grandes proporções.
De todo modo a alegria suplantava todo o resto. A cada momento houve surpresas agradáveis, como quando, ao saber o povo todo que poderia participar da festa dos noivos, começaram a enviar presentes para a casa de Ofélia, onde os recém casados se estabeleceriam. Havia regalos muito simples como compota de doces ou esculturas em madeira, contudo havia também presentes mais caros, tais quais jóias para a noiva. Alguns dos que enviavam se identificavam e outros não. Ofélia, vendo sua casa cheia de mimos, chegou a chorar de gratidão, porque as pessoas demonstravam seus desejos de que os noivos fossem felizes e nem mesmo o Imperador recebia uma atenção tão positiva.
Os quilombolas também enviaram suas saudações e prendas.
Da fazenda que Marcel tinha comprado, vieram os provimentos para o banquete popular que estavam na casa que o francês tinha alugado outrora, aonde ele ia se arrumar para o casamento. Os convidados de honra estavam divididos entre as casas. Com Ofélia ficaram Mirtes, Camila e Sorte com o bebê Benedicto, que não podia se separar porque precisava do aleitamento materno.
O vestido de noiva de Ofélia foi feito por Camila.
À tardinha, quando o sol ensejava por tocar as águas do mar, Ofélia entrou na Igreja da Glória. O clima era ameno, raios de sol ainda incidiam sobre o oceano, fazendo com que brilhasse majestoso por uma última vez no dia. O arco da entrada da igreja tinha sido decorado com uma centena de rosas que exalavam perfume suave e inesquecível. Passar por ele era como atravessar um portal mágico.
Ofélia entrou no local ao som de um coral acompanhado por orquestra. Vozes angelicais cantavam Ave Maria, canção que não fora escolhida em vão, uma vez que Maria era paciente, tolerante e misericordiosa. Quem poderia melhor abençoar sua união com Marcel? Não apenas isso, mas Maria também representava as mulheres da vida da noiva. Sorte era a misericórdia de Maria, Clementine a perseverança, Mirtes a fé, Adália a resignação, Camila a esperança, e Bianca era a força. A própria Ofélia também era um pouco Maria por sua tenacidade. Sem todas aquelas mulheres ela não teria chegado até ali. A Ave Maria tocou seu coração quando pensou que Maria era filha, mãe e esposa, representando um número incontável de outras mulheres. Havia nela a solidão de conceber um filho que não era de seu marido, mistérios que ninguém na humanidade jamais entenderia, assim como muitas das questões que habitam nos corações de todas as mulheres. Tal qual questões que habitavam o coração da própria Ofélia, e que não podiam ser explicadas.
Marcel, parado em frente ao altar mor, viu Ofélia entrar pela porta da igreja, sozinha, porque não tinha pai e jamais esqueceria que sua caminhada foi em boa parte por conta da própria força. Mirtes vinha na frente, com um vestido rosado, de mangas curtas, bufantes e transparentes. A roupa de saia rodada, com busto bordado em pérolas, fazia com que a menina se parecesse com uma criatura mágica abrindo caminho para que a irmã pudesse passar. Marcel pensou que Ofélia podia não ter um pai para acompanhar, mas tinha a irmã para guiar em seus caminhos. O cabelo castanho claro da mocinha estava arrumado em cachos e ela segurava uma cesta de onde tirava pétalas vermelhas as quais jogava pelo caminho. As pétalas representavam o amor dos noivos.
O francês admirou a noiva que vinha logo atrás em uma caminhada suave apesar da bengala. O vestido de Ofélia não tinha mangas e o corpete acabava no busto. Era branco, acetinado, com saia rodada, armada, e leves pregas no espaço que saía da cintura. As luvas acetinadas iam até acima dos cotovelos e os ombros desnudos estavam cobertos pelo véu. O véu fora prendido em uma tiara de brilhantes e safiras azuis. De perto era possível ver que a tiara era feita de pequenos galhos dourados, como os de roseiras, com pequenos botões de rosa que iam da esquerda e da direita para o centro onde se encontravam em uma rosa desabrochada.
O véu de bordas rendadas tinha dois metros, e a cauda do vestido, mais três metros de comprimento.
Mais belos que todos os ornamentos ostentosos, era a própria Ofélia, cuja face estava serena e feliz. Ver ambos os olhos dela brilhando de felicidade fez com que Marcel chorasse. Era a musa de seus sonhos, a dona de seu coração, mais bela que qualquer deusa, caminhando até o altar com um buquê de flores silvestres em mão. Entre elas havia algumas conchas. As flores do campo representavam o interior de onde se conheceram e as conchas eram sinal do mar, de onde Ofélia renasceu e voltou para os braços de Marcel.
O traje do noivo era azul escuro e seu penteado não passava de simples com um pouco da franja deliberadamente caindo sobre a testa. Ele sorriu largamente para sua noiva e limpou as próprias lágrimas antes de recebê-la no altar.
A cerimônia não demorou muito, para os noivos foi como se durasse por meros segundos de existência. Estavam alheios a tudo enquanto sentiam suas presenças lado a lado, calores de vida emanando dos corpos sofridos, maltratados pelo percurso permeado por azares. Vida também cheia de consequências de escolhas.
Em sua bolha de felicidade os noivos se uniram. Sem ver que Clementine chorava muito, emocionada, tocada por aquele momento que jamais imaginara assistir. De longe um dos mais normais e naturais que poderia ter em sua vida. Casar o irmão era um sinal de bom agouro para ela, que tinha uma carga pesada de densa de existência. Os noivos também não perceberam Bianca agarrar uma mão de Azarado e dar tapinhas nas costas desse membro enquanto sorria para o filho, que demonstrava sua felicidade. Orgulhosos por terem acolhido Ofélia no momento em que estava mais fragilizada, e por terem ajudado com a chance que mudara sua vida. Sorte, com Benedicto no colo, soltava longos suspiros de aprovação enquanto Ícaro, ao seu lado, tentava conter o pequeno e agitado Émile, prometendo que logo comeriam doces. Émile amava o tio noivo, mas era criança e sua atenção não se focava por tanto tempo.
A felicidade palpável parecia eterna naquele lugar.
Quando os noivos saíram da igreja, puderam ouvir a música alta e os sons de festa que vinham do espaço onde estava a maior parte do povo. Do outro lado era possível escutar uma orquestra, já preparada para receber os aristocratas. Os noivos foram primeiro para o ponto onde estavam os convidados que consideravam mais sensíveis, já que eram dados às bobagens que chamavam de refinamento e classe.
Logo Ofélia deu um jeito de escapar daquele espaço que julgava sem graça, e onde todos analisavam cada mínimo detalhe de si. Uma pena, porque o salão estava bonito. Ainda assim som da festa do povo era persistente e lhe chegava aos ouvidos, convidando a aproveitar com mais atrevimento e alegria.
Como não era mais uma mulher de suportar muito, Ofélia virou as costas e mandou tudo às favas. Até mesmo Mirtes já escapara dali para onde estava o movimento prazeroso, não era a noiva quem ficaria distante daqueles que considerava os melhores. Além disso, queria ver seus amigos mais queridos, como Camila e Julião, para mais uma vez agradecer por tudo que fizeram por ela e por aquele evento.
Marcel ficou para trás, entretanto logo tratou de se livrar dos convidados e foi para um espaço reservado, pensando que Ofélia tinha parado ali para retirar um pouco do pano que arrastava incansável. Quando chegou à saleta encontrou somente a cauda e o véu cuidadosamente guardados dentro de uma maleta.
O noivo fez meia volta, e deu de cara com o cano de uma arma apontado para si.
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