Capítulo 24
09 de julho
Algumas coisas funcionam melhor sob pressão. Grãos duros de feijão demoram horas, sem nunca atingir sua perfeição, quando cozidos lentamente em água borbulhante. O ambiente abafado e pressurizado é a única coisa que faz com que atinjam sua excelência. Mas ela não era um grão de feijão. Estava longe disso.
Àquela altura, sequer sabia o que era. E a simples menção de comida já a irritava. As palavras embaralhavam-se diante dos seus olhos, letras misturadas que formavam um texto sem sentido. Sua cabeça doía, pulsante, protestando contra as longas horas acordadas. Odiava fim de semestre, odiava provas finais. Odiava as exigências infundadas que em nada serviam para, de fato, mostrar o que sabia.
E ela sabia. Sabia muito, e sabia muito bem. Era capaz de recitar de cor todo o conteúdo aprendido e mais. Mas odiava provas. Desesperava-se, nervosa, ansiosa, sentia-se à beira de colapsar. A caneta tremia em sua mão quando a folha branca recoberta em perguntas desconexas era posta em sua frente, quando o relógio começava seu tic-tac. O silêncio da sala era desesperador. Era como se pudesse ouvir seus próprios batimentos, altos, ecoando pelo ambiente, explodindo em seus ouvidos.
E a simples expectativa pelo fatídico dia fazia com que fosse impossível que ela se concentrasse. Olhou o calendário e contou seis dias até a prova, desviando novamente seu olhar para a pilha de livros emprestados da biblioteca, anotações em sua letra perfeitamente cursiva, resumos feitos às pressas. Tinha certeza que não daria conta de tudo, mas essa não era uma opção. Tinha uma bolsa de estudos a manter, não podia se dar ao luxo de falhar.
Frustrada, levantou da cadeira e ficou de pé no meio do quarto, esticando os braços o máximo que podia, estalando os ossos enquanto se espreguiçava. Tomou cuidado para fazer tudo isso virada para a parede, encarando a camada de tinta descascada que ameaçava descolar e cair no chão. Estava fugindo do espelho colado na porta do seu armário.
Helena não estava em condições emocionais de encarar o próprio reflexo, não naquela hora. Já estava perdendo batalhas demais. Pelo vão da porta, podia ouvir os gritos com os quais já estava acostumada, a voz grave de seu pai invadindo o ar, silenciando a ambiente. Sentindo-se derrotada, suspirou e deitou na cama, permitindo que seu corpo fosse envolvido pelo lençol que quase imediatamente embolou em volta de si. Esticando o braço, alcançou o celular e desconectou o aparelho do carregador.
Notificações de redes sociais, chamadas perdidas de números desconhecidos, avisos de atualização de aplicativos. Nenhuma mensagem de Pedro. Não conseguiu evitar uma careta decepcionada, apesar de repetir para si mesma que ele estava tão ocupado quanto ela. Que estava estudando para as provas, ocupado com a faculdade.
Não conseguia tirar sua última conversa da cabeça, contudo, e sentia lágrimas traiçoeiras emergindo, buscando espaço, tentando desbravar o mundo. Talvez estivesse exagerando, namorados brigam, dizem coisas no calor do momento e se arrependem depois. Vasculhava sua mente em busca de resposta, tentando entender onde tinha errado.
— Você não se importa, Pedro! — ela gritara, enrolada no lençol da cama dele, enquanto o homem rapidamente se vestia, deixando-a abandonada, sentindo-se usada. O celular do garoto tinha tocado e não demoraram mais do que dois minutos para que ele desistisse do plano de passar o fim de semana juntos e começasse a se arrumar e sair para onde quer que Jorge o tivesse convidado para ir. Disse que ela poderia ficar se quisesse, mas ele não sabia se voltava para casa. Que se falariam no dia seguinte.
— Nunca disse que me importava. — Foi o que saiu da boca dele em resposta, junto com um suspiro profundo acompanhado da mão que bagunçava seus cabelos. Ele foi até ela, balançando a cabeça. Ela podia jurar que era pesar que cobria seus olhos. Pedro falava com ela como se estivesse explicando o óbvio a uma criança burra. — Eu nunca menti pra você, Helena — disse, tocando seu rosto, acariciando sua bochecha. —Você sabe que gosto de você, mas também sabe que não vou parar minha vida por sua causa.
A mulher havia ficado na mesma posição em que fora deixada, com as costas nuas contra a cabeceira da cama, encarando o vazio do quarto dele. Demorou alguns minutos – talvez horas – para conseguir se mover, sentia seu corpo ser esmagado, seu coração apertado, sua garganta incapaz de produzir qualquer som.
Cada peça de roupa que colocava parecia expor suas vergonhas ao invés de cobri-las, revelar sua fragilidade ao mundo ao invés de protegê-la. Foi com um soluço preso na garganta que cruzou o apartamento, educadamente dispensando as perguntas feitas pelos pais do namorado. A primeira lágrima caiu enquanto apertava furiosamente o botão do elevador.
Sabia que tinha perdido a batalha pelo seu bom senso quando, antes de sair do quarto, desbloqueou a tela do computador de Pedro. Riu nervosamente quando viu que o dispositivo não tinha senha e as abas do navegador sorriram para ela, abertas, disponíveis. Imaginou ao menos encontrar alguma resistência, algum auxílio externo que a fizesse desistir daquela maluquice. Jurou para si mesma que jamais se tornaria uma dessas doidas psicóticas que vigiam cada passo do namorado, invadindo a privacidade alheia como quem procura provas de um crime.
Ficou tentada a abrir as mensagens, vasculhar palavras escritas, para sempre gravadas naquela tela. Pensou, por um segundo, se havia perdido o juízo. Afinal, alguém que não se preocupa em colocar senha no computador dificilmente estaria fazendo alguma coisa que precisasse ser escondida.
O que Helena não entendia — o que Helena se recusava a entender – era que não foi um lapso raivoso que fez Pedro dizer que não se importava; era a mais pura verdade. Não se daria ao trabalho de inventar mecanismos de proteção para que suas escapadas não fossem descobertas, simplesmente porque não se importava com o que aconteceria, e não estava fazendo nada para escondê-las. Os dedos dela tremiam enquanto pousavam sobre o teclado, a incerteza irradiando por suas extremidades.
Fechou os olhos e balançou a cabeça, resoluta. Não se prestaria a esse papel. Confiava em Pedro, estava certa de que ele nunca mentiria para ela. E ela estava, de fato, com a razão. Ele não mentiria. Qualquer que fosse a pergunta feita, a mais honesta resposta seria dada. Helena sabia disso. Por isso evitava perguntar qualquer coisa com a qual não estivesse disposta a lidar.
Quando levou a mão até a tela para fechar o notebook, viu subir a janela da conversa. Seus olhos, como possuidores de vida própria, voaram para o canto da tela onde piscava a foto do remetente.
Laura.
Estou saindo com Bianca, a mensagem dizia. É melhor o Jorge não estar aí.
Existem alguns momentos na vida em que é impossível saber o que dizer, o que pensar, o que sentir. Enquanto encarava a tela, estática, e acompanhava em tempo real Pedro imediatamente visualizar a mensagem e começar a digitar uma resposta, precisou de todas suas forças para silenciar o grito que tentava escapar de sua garganta.
Aquela vagabunda.
A dor da raiva se misturava com a dor da traição, não somente de Pedro, mas também de Bianca. Uma risada histérica escapou de sua garganta quando se deu conta de que estava certa o tempo todo. Laura havia se feito de menina direita, inocente, incomodada, por todo esse tempo apenas como boa atriz que era. Ali estava ela, mandando mensagem para ele. Correndo atrás do seu homem. Circundando, fazendo sua presença ser sentida, nunca o deixando em paz. Nunca a deixando em paz. O sentimento agridoce da vitória queimava seu peito.
Não ficou para ver a resposta. Qualquer coisa que sua mente pudesse imaginar não chegaria perto da dor causada pelas palavras que poderiam estar escritas ali.
Isso tudo tinha acontecido na noite anterior, no sábado do fim de semana romântico que havia sido a ela prometido. Agora, jogada na cama, encarando a tela do celular, vendo os números do relógio de movendo para indicar meados da tarde de domingo, o silêncio de Pedro a esmagava. Talvez devesse ter ficado para ver a resposta. O que ele havia dito?
Estou te esperando?
Não demore?
Você pode ir pra minha casa hoje, a idiota da Helena já deve ter ido embora?
O ódio que sentia por Pedro naquele momento não chegava perto do ódio que sentia de si mesma. Como podia odiar alguém que amava tanta? Toda a raiva que sentia projetava-se sobre si mesma. Sobre sua fraqueza. Sobre sua incapacidade de lidar com os próprios sentimentos.
Rolando por sua lista de contatos, pensou em, então, mandar uma mensagem para Bianca. Seus dedos digitaram versões diferentes de textos sem sentido, até que desistiu e discou o número da garota. Ela atendeu no terceiro toque.
— Alô? — Helena podia ouvir um burburinho discreto ao fundo. — Helena? — Bianca chamou.
— Oi. — Foi o que conseguiu dizer. Uma parte de si queria gritar, exigir uma explicação do porquê de ela estar com Laura, logo Laura, e como fora capaz de permitir que a garota estivesse no mesmo lugar que Pedro e não a avisar. Quis perguntar que tipo de amiga ela era, que tipo de amiga havia se tornado. Exigir que contasse para onde eles tinham ido, se tinham ido embora juntos. Quis descontar em Bianca toda a mágoa que sentia naquele momento. — Não estou conseguindo estudar direito, posso ir pra sua casa?
Helena deveria estar surpresa consigo mesma por serem essas as palavras a saírem de sua boca, mas foi incapaz de perceber a ladeira que estava descendo rumo ao fundo do poço. Não percebeu que, por mais raiva que estivesse sentindo naquele momento, o buraco em seu peito fazia com que aceitasse qualquer resquício de atenção, fazia com que ambiciosamente bebesse de qualquer mínimo afago emocional que fosse derramado sobre si.
Era patético. Sentia-se patética.
Como se nada mais na sua vida fizesse sentido, como se nada mais importasse. O ar que respirava parecia depender da existência de Pedro. Sem que percebesse, passou a depender da sua aprovação para cada passo que dava na vida, como se seu único objetivo fosse agradá-lo. Caso se olhasse no espelho, naquele momento, talvez tivesse dificuldade em se reconhecer sem as camadas de maquiagem sempre tão perfeitamente postas sobre sua pele delicada.
Pedro não gostava.
Os lábios, sempre cobertos por uma espessa camada de tinta avermelhada, estavam pálidos; os cílios, sempre alongados, agora jaziam modestos e acobreados em sua tonalidade natural.
Pedro preferia assim.
Helena grunhiu quando ouviu Bianca pedir que levasse sorvete, mas não reclamou. Precisava sair dali, ficar sozinha com seus próprios pensamentos não estava fazendo bem algum a si mesma.
Precisava ir para casa de Bianca e talvez assim conseguisse estudar melhor. Não podia correr o risco de perder a bolsa. Não sabia o que seria de sua vida caso não mais estudasse naquela faculdade. Perderia tudo. Todo o seu futuro estava depositado ali.
O que seria de seu relacionamento com Pedro se não estivessem juntos todos os dias? Precárias como estavam as coisas apesar da proximidade, não via chance de sucesso caso deixasse o caminho livre para que ele fosse cercado pelos abutres que o rondavam, que eram incapazes de respeitar a felicidade alheia. Laura seria a primeira da fila.
— Traz suas coisas e dorme aqui de uma vez — Bianca disse. — Tem tempo que a gente não faz alguma coisa só nós duas. Você só quer saber de Pedro agora.
"E pelo visto você só quer saber de Laura".
O pensamento cresceu das entranhas da mente de Helena e por muito pouco não escapou por seus lábios.
Não.
Não deixaria aquela garota estragar tudo de bom em sua vida.
Ela não tomaria Pedro. Não tomaria Bianca. Não tomaria sua vida.
Abrindo o armário e pegando a mochila, Helena arrumou o que precisava. Tomou cuidado ao escolher as roupas que usaria para a aula no dia seguinte; podia se permitir a indulgência quando estava sozinha ou com outras pessoas, mas não se atreveria a vestir aquela blusa que Pedro tantas vezes dissera que não gostava. Lamentou estar frio demais e não poder usar a saia que ele tanto havia elogiado. Talvez se colocasse uma meia-calça por baixo? Isso. Era essa a solução. Eles teriam que conversar no dia seguinte e ela garantiria que ele lembrasse exatamente de tudo que ela tinha para oferecê-lo.
Sorriu, satisfeita consigo mesma. Orgulhosa por não desistir. Todo relacionamento era trabalhoso, afinal, e no fim valeria a pena.
Colocando a mochila das costas, anunciou seus planos ao chegar na sala. Não olhou na direção de ninguém. Podia ver pelo canto do olho o pai sentado na frente da televisão, a lata de cerveja nas mãos. Rangendo os dentes, caminhou apressada em direção à saída quando a mãe chamou seu nome, nervosa.
Bateu a porta atrás de si, sentindo a brisa tocar sua pele e, como se fosse a primeira vez, respirou. Suprimiu a culpa por não ter respondido ao chamado de sua mãe, mas estava cansada. Não se permitiu olhar para ela e encarar as manchas roxas em seu corpo, o corte em seu lábio. Tinha raiva da mulher por permitir que fosse tratada daquela forma e não ir embora.
Seu pai era um homem horrível e Helena contava os dias até poder sair de casa e nunca mais ter que olhar na direção dele. E não conseguia aceitar como sua mãe continuava a viver daquela forma.
Achava-a fraca, covarde. Como podia aceitar ser tratada daquele jeito e continuar no mesmo relacionamento? Não fazia sentido, e Helena tinha raiva da situação. Tinha raiva dela. Segurando a alça da mochila com força, caminhou em direção ao metrô repetindo a si mesma que jamais passaria por isso.
Sorte a dela ter Pedro ao seu lado.
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