Capítulo Quarenta e Um
Havia muita dor. Uma dor que cobria todo o corpo, mas também havia uma força. Uma força que impelia qualquer medo. Essa força tomou conta de seu corpo e a impulsionou a se levantar, a dar mais um passo, a respirar. Aos poucos conseguiu se aproximar da porta e a empurrou, a madeira rangiu, e se abriu. Ela não se surpreendeu, sabia o que iria acontecer pela frente, porém, o primeiro passo era sair dali. O cheiro de mofo ainda estava pelo lugar, mas as narinas da garota se acostumaram e respiraram naturalmente. A dor envolveu a barriga dela e o sangue escorreu por suas pernas. Ela subiu as escadas com dificuldade, saindo do porão, deixando o corpo de Noah para trás. Alguém iria vir buscá-lo, ela tinha certeza disso.
Samantha se encontrou em um corredor, e seguiu até uma porta e a abriu. Ela sentiu as pernas tremerem e as coisas girarem. O corpo de Lilly ainda estava amarrado à cadeira, mas não se movia. Sam foi até a amiga e a balançou várias vezes, e não recebeu nenhuma resposta. A garota arfou, tentando manter-se sobre controle. Lilly estava morta. Como as outras. Samantha se negou a aceitar, mas sabia que precisava continuar.
Ela conseguiu mover-se para fora, o ar frio bateu contra seu rosto aliviando a sensação de tontura. O carro de Noah ainda estava estacionado no mesmo lugar, como o carro que a garota pegou da mãe. Sam não se sentia capaz de dirigir, por isso caminhou pela estrada de terra até chegar à rodovia. Não havia nenhum carro, e tudo estava completamente escuro. Eram cinco quilômetros até a cidade, e o dia estava prestes a amanhecer. E Elliot poderia estar a uma distância segura naquele momento.
Samantha não hesitou em retornar a caminhar. Os pensamentos ainda enevoados, digerindo tudo que aconteceu. Noah se matou, Lilly foi assassinada. E tudo porque Samantha não foi capaz de protegê-los. Ela não deveria ter dito a Noah para ir, não deveria ter dito a localidade do assassino. Só uma pessoa deveria ter morrido aquela noite, e devia ter sido ela. Depois de poucos passos, sentiu suas pernas vacilarem novamente, e tentou se manter de pé, mas caiu. Ao cair machucou as mãos e bateu com o rosto contra o asfalto. A dor espalhou por sua face, fazendo-a gemer de angustia. A garota queria sair dali o mais rápido que podia, pedir ajuda, mas suas pernas a traíram. O seu corpo estava fraco demais pela perda de sangue, a batida na cabeça e o medo.
O medo ainda a tomava, tornando-a inútil. O tormento de nunca conseguir chegar a delegacia a afligiu, ou morrer sangrando na estrada. A garota tinha que continuar tentando. Ela ergueu o corpo, apoiando-se nos próprios braços, mas vacilou. O outro lado de sua face bateu contra o asfalto. Respirar voltou a ser complicado.
Uma luz brilhante tomou conta do campo de visão da garota. Luz. Ela sorriu tolamente. Então morrer era assim? Ela veria a luz e deveria segui-la? A garota se arrastou na direção da luz e gemeu de dor. Um barulho alto a assustou. Um barulho parecido com uma buzina. Um carro!
O carro passou zunindo ao seu lado e a deixou para trás. A garota gritou, tomando o pouco da energia que tinha, aos prantos. Ela tentou novamente, mas o carro desapareceu na escuridão. Samantha decidiu insistir novamente, as pernas bambearam e conseguiu ficar de pé. Um passo de cada vez. Um, dois, três, quatro... As pernas dela se atrapalharam, tropeçando nos próprios pés. Então, uma outra luz brilhando surgiu. Outro carro! Ele veio mais devagar, e Samantha gritou balançando os braços ao redor da cabeça. Ela tentou correr para acompanhá-lo, mas o carro parou subitamente. Ela tentou se aproximar, mas o mundo girou novamente e o chão a encontrou outra vez.
Samantha fitou o céu estrelado e sorriu consigo mesma. Havia esperança para alguma coisa, alguém a encontrou. A pessoa que parou o carro caminhou apressadamente até ela. Sam tentou olhá-lo, mas sua visão ficou embaçada. Um rosto barbudo a encarou, e isso foi a última coisa que viu antes de ser arremessada de volta para a escuridão.
O frio envolvia o lugar. A claridade machucava seus olhos. Como a visão de grandes olhos verdes a fitando com expectativa. Havia também muita raiva. Reclamações. Medo. O sonho começou com Samantha perdida em um corredor inteiramente branco. Esse corredor não era como o do pesadelo com Sarah e Melanie. Nele tinha muita luz e esperança. A luz que estava no final brilhou profundamente e machucou os olhos da garota. E o frio antes afetuoso e confortável se tornou profundo e inatingível. A garota tremeu sem parar, as pernas fracas demais para mantê-la em pé se tornaram borracha e os braços moles inúteis para aquecê-la viraram gelatina. A roupa fina que a cobria só servia para isso. Uma palavra baixa foi sussurrada em seu ouvido e o corpo transbordou de emoção.
- Acorde. – as paredes sussurraram. Samantha não queria acordar. A garota olhou mal humorada para as paredes e viu os olhos verdes cheios de preocupação e esperança. – Querida, preciso que você acorde.
Desde quando paredes tinham olhos? O pensamento causou um sorriso tolo aos lábios da garota. Ela não queria sair dali, mesmo com os braços em forma de gelatina e as pernas parecendo borracha. A verdade era que gostava da forma que se encontrava. Aquela forma não tinha sentimentos, uma forma que a dor e nem tristeza a atingiam. Seria tão simples conviver daquela maneira e nunca mais acordar. Acordar?
Sam sentiu-se completamente sã e consciente. Nenhum sonho seria tão bom como aquele, não quando passara tanto tempo tendo apenas pesadelos. Não havia morte ali. Ninguém se foi e ela poderia ver Noah. Noah. A garota sentiu o sorriso ficar maior e tentou se mover para encontrá-lo, mas suas pernas de borracha não a permitiram andar. Ela estava presa e tentou gritar. Ela gritou com força, seus pulmões se machucaram. A dor retornou triplamente maior do que a última vez que sentira. E a tristeza também estava ali. E alguém chorando.
- Os medicamentos estão saindo do sistema e logo ela voltará a ficar consciente, isso faz parte do processo. – disse uma voz masculina, totalmente profissional.
A verdade era que a voz pareceu um pouco incerta, e até pensou em dopar a garota novamente. Mas ela precisava voltar. E Samantha aos poucos parou de gritar, os olhos voltados para um grande par de olhos verdes amedrontados a fitando. Familiares olhos verdes. Outro par de olhos verdes a olhava com preocupação e também olhos castanhos. Castanhos escuros. Samantha suspirou ao vê-los. Eram quase parecidos com o de Noah. Ele estava ali para vê-la! Mas aos poucos percebeu de onde vinha aquela luz e branquidão. O quarto de hospital brilhou a sua volta. A maquina ao seu lado zumbiu, contando os batimentos cardíacos de Samantha. Ela estava viva e tudo era real. A morte de Noah era real.
O ambiente era envolto por preocupação e constantes checagens. A garota não fazia ideia de quantas vezes a enfermeira veio vê-la e perguntou como sentia-se. A verdade era que ela sentia-se presa. Literalmente. Havia dois policias a sua porta e uma detetive, a fitando profundamente, parada a sua frente com outro policial ao lado. Quando Samantha acordou não houve perguntas, mas depois de ter se alimentado e usado banheiro uma enxurrada de perguntas veio sobre ela. O pai de Samantha dizia que ela tinha o direito de permanecer calada. A garota também não sabia o que dizer.
- Pode me dizer como foi parar naquela cabana, srta. Miller? – indagou a detetive Prescott. A mulher tinha os olhos inchados e vermelhos. A garota não gostou daquela visão. – Pois há provas que esteve lá, acompanhada de alguém.
Samantha sentiu o nervosismo a tomando. O estômago dela ainda estava sensível. Sensível pela perda... Os olhos da garota ficaram marejados. Não queria chorar. O medo ainda estava ali, indomável.
- Ela tem o direito de não responder essa pergunta. – disse o pai de Sam. Ele tinha um olhar duro no rosto.
- Se sua filha não responder nenhuma das perguntas, não chegaremos a lugar nenhum. – disse a mulher. – Ela é a única pessoa que saiu com vida de lá, deve responder as perguntas.
Saiu com vida. Aquilo que Samantha tinha, sentada em uma cama de hospital cercada de policiais, não poderia ser considerado uma vida. Ela era uma sobrevivente e odiava aquele título.
- Para poder acusá-la, detetive Prescott? Acho melhor não. – continuou o homem mais velho. – Minha filha foi uma vítima.
- Acho que o senhor está enganado, tenho provas de que a srta. Miller estava na cena do crime e matou o detetive Guzman. – Ela fez um sinal a fotografia da faca que Samantha levara consigo para a cabana. – A faca tem o sangue do detetive e as digitais dela.
- Não é o suficiente.
- É o suficiente! – esbravejou a mulher. – Ela matou o detetive e ainda há provas, de uma arma usada no crime, que a levam para o assassinato de Charlotte Grace. E ela estava no lugar, naquela hora, com Thomas Parker.
- O que quer dizer com isso? – sussurrou Samantha, fitando a detetive.
A mulher voltou-se para ela e a olhou com desprezo.
- Que o Sr. Parker e a senhorita não estavam na festa quando a vítima foi assassinada. – disse a detetive. Ela cruzou os braços casualmente.
- Eu não matei Charlotte. – disse Sam.
A detetive Lucy Prescott teve que conter a risada de deboche. Samantha podia perceber a fúria incrustada sobre a detetive. Ela parecia odiar profundamente a garota. Odiava Sam por ter matado Noah.
- Não é isso que as suas digitais encontradas na arma mostram.
O pai de Sam interveio.
- Minha filha não matou nenhuma dessas garotas. Quando Sarah King foi assassinada, ela estava comigo e com minha esposa. – disse ele.
- Sim, é verdade, mas pode ter sido o cúmplice dela. – afirmou a detetive. Samantha sobressaltou-se. Um cúmplice?
- Cúmplice? – até mesmo o pai da garota não conseguia acreditar naquilo, ou talvez fingia não acreditar.
- Sim. Thomas Parker. – a garota arregalou os olhos. – Eles estavam juntos na hora da morte de Charlotte Grace. Não há um álibi para ele na hora do assassinato de Sarah King. Como, coincidentemente, os assassinatos começaram quando o rapaz chegou à cidade. Também há outras provas que indicam ele como culpado.
Samantha quis dizer algo, mas a mulher levantou um dedo, interrompendo-a e prosseguiu:
- E ele também era namorado da primeira vítima, Melanie Baker. Os dois estavam juntos e foi a última pessoa vista com ela naquela noite. – A detetive Prescott sorriu. – Isso tudo leva a crer que Thomas Parker começou com os assassinatos, mas ganhou a parceria de Samantha quanto começaram a se relacionar. A não ser que já se conhecessem antes. Você o conhecia antes de vir para a cidade, srta. Miller?
A garota sentiu uma pressão contra seu estômago. O conteúdo que estava dentro queria sair. Ela tossiu.
- Não. – gaguejou a garota.
Lucy Prescott balançou a cabeça firmemente.
- Mas eu não matei Charlotte. – insistiu Samantha. Ela não podia conviver com aquela culpa.
- Compreendo. Pode não ter sido você, mas estava lá de qualquer maneira. – interveio a detetive.
Samantha balançou a cabeça, os olhos se enchendo de lágrimas.
- Mas matei Noah. – por um instante ninguém respirou. O pai de Samantha a olhou alarmado e sua mãe pareceu sufocar, sentada ao seu lado. A detetive olhou a garota, boquiaberta. A mulher parecia prestes a explodir.
Nada aconteceu. O policial levou a mão até a cintura, como se fosse intervir do que poderia acontecer. A detetive conseguiu se conter e a olhou com repulsa.
- E agora a srta. Miller acabou de admitir que assassinou o detetive Guzman. – disse a mulher. O pai de Sam não soube como reagir. – Iremos buscá-la quando receber alta e resolveremos isso no tribunal.
A detetive deu um aceno para o pai da garota e virou-se para a porta.
- Vocês não podem levá-la, ela acabou de perder um bebê. – chorou a mãe de Sam.
O choque ultrapassou o rosto da detetive. A mulher ficou pálida.
- Bebê? – ela juntou as sobrancelhas, confusa. – Ninguém disse nada sobre um aborto.
Aborto. Aquela palavra machucou o peito de Sam. Ela estava grávida e havia perdido a criança que carregava em seu ventre. Uma ser que ela não fazia ideia de que gerava.
- Pedimos para o médico não contar a ninguém. – disse o pai de Sam. A detetive pareceu compreender.
- Eu sinto muito pela sua perda. – disse, com pesar, Lucy. – Você... Você sabe de quem era?
Samantha sentiu o corpo tremer. O pai da garota pareceu ofendido e estava prestes a dizer grosserias, mas Sam interveio.
- Tinha mais do que um mês. – Sam fungou. Não fazia um mês que havia ficado com Noah. – Era de Thomas.
A mulher pareceu aliviada. De alguma forma ela sabia sobre Noah e Sam. Ela sabia do envolvimento do antigo parceiro com a garota.
- Uma pena. – a mulher se aproximou da porta, o policial logo atrás dela. – Iremos buscá-la com um mandado de prisão. Faremos o mesmo com Thomas Parker. Prefiro que não façam nada pra complicar a situação. Com licença.
Novamente a detetive voltou-se e abriu a portar para se retirar.
- Espere! – disse o pai de Sam, ele parecia desesperado. – Não há alguma forma de mudar isso? Alguma forma de não mandá-la para uma prisão? Ela não seria capaz de viver em uma cadeia.
A detetive Prescott pareceu ponderar, e balançou a cabeça afirmando.
- Sim, existe uma maneira.
E Samantha percebeu, pelo olhar da mulher, que aquilo não era uma boa ideia.
A campainha tocou, sinalizando o momento da chegada. A mãe da garota chorou mais e o pai se levantou para atender a porta. Sam queria confortar sua mãe, mas naquele momento ela não passava de uma assassina, e merecia o que vinha a seguir. Samantha levantou-se e viu a detetive adentrando. A mulher segurava o mandato e sorriu satisfatoriamente para a garota.
- Prendam-na. – disse a detetive Lucy.
A garota não se importou quando os policiais a algemaram. Na verdade, ficou grata. Aquela casa virara seu pesadelo particular. Recebeu notícias ruins e sofreu constantemente atrás daquelas paredes. Enquanto era retirada de seu lar, Sam ergueu os olhos para o teto. No andar de cima, no sótão, havia uma aparelho de vídeo cassete e nele tinha uma fita com as cenas do assassinato de cada uma das garotas. Se Samantha contasse a detetive sobre a fita, seria prova o suficiente para incriminar Elliot. Mas ela não o fez, ela não contou.
Os policiais a levaram até o carro da policia. A porta para o banco de trás aberto, aguardando a mais nova convidada. Antes de entrar, Sam deu uma boa olhada sobre o ombro. Para os pais parados em frente da porta, para a calçada cheia de pedrinhas, para a neve que derretia ao redor da casa, e para a árvore e suas folhas que balançavam lentamente junto ao vento. A mente de Sam lembrou-se do corpo de Melanie balançando vagarosamente, nu e frio, como se dançasse silenciosamente apenas ouvindo o som sussurrante do vento. O vento que sussurrava palavras doces e cruéis. O medo que envolvia Samantha se dissipou e ela tomou coragem para o que vinha pela frente.
Com um último olhar ela entrou no carro e aceitou o que vinha pela frente, mesmo sendo uma coisa ruim. Porque Samantha Miller sabia que merecia. Merecia pagar pela morte de Noah, pagar por não ter sido capaz de salvar Lilly, e que no fundo,, por ter se contentado com morte de Charlotte. E como humana, ela merecia pagar pelos pecados que havia cometido.
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