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Minha mãe estava em seu quarto, sentada na cama, cabisbaixa e com os olhos vermelhos de tanto chorar.
Ela faz o vitimismo dela.
Suspirei fundo, fechei a porta e me aproximei com passos relutantes, depois me sentei do seu lado, e olhei para uma foto que estava em suas mãos.
Era uma foto minha de quando eu era pequena.
Claramente uma criança triste e traumatizada, retrato de uma infância sem amor, marcada por diversos abusos.
Através dos olhos grandes daquela criança nota - se uma enorme melancolia.
Não entendo porque ela ainda guarda essa foto, talvez pra lembrar de como era uma péssima mãe.
Ri ironicamente.
Ela passou o dedo sobre o rosto da criança e depois olhou pra mim, fazendo uma breve comparação.
Seus olhos se encheram de lágrimas e eu me segurei para conter as minhas.
—– Você tinha razão — Ela suspirou — Eu não fui uma boa mãe pra você.
Depois ela se preocupou em secar os olhos molhados.
Desviei o olhar dela e migrei para as minhas mãos agitadas. Eu não sei lidar muito bem com essa frustração.
Parece que ela nem é a minha mãe, e sim uma estranha tentando entrar à força na minha vida.
Para todas as fases da minha vida, minha mãe inventava uma história diferente e agora fica difícil de acreditar nela.
Mas a verdade é que estou cansada dela sempre se fazendo de vítima e envolvendo os outros nos seus joguinhos emocionais.
Eu vivi a vida inteira acreditando que tinha uma família perfeita, mas foi tudo uma ilusão.
E eu queria muito perdoá-la, mas toda vez que eu olho pra ela, eu lembro que ela podia ter evitado e não evitou.
E a raiva vem.
De repente ela cobriu as minhas mãos com a suas, me fazendo parar de tremer e olhar para ela.
Uma avalanche de lágrimas se aproximava e eu sentia que a barreira que eu construir não iria segurá-las por muito tempo.
Eu preciso chorar.
—– Eu sei o quanto isso te marcou, eu não estava lá quando você mais precisou, e eu não cuidei de você como deveria.. eu te abandonei, eu falhei com você...mas você tem que entender que também foi difícil pra mim, me tornar mãe com aquela idade, cuidar de uma criança sozinha...meus pais não me apoiaram, me colocaram pra fora de casa. O que você queria? que fossemos morar na rua pra morrer de fome?
Puxei a mão e ela tentou agarrá-la no último segundo, porém não conseguiu.
A avalanche de lágrimas destruiu a barreira, e eu me senti frágil, indefesa.
Ela mais uma vez estava tentando se justificar.
Tem mães que passam por coisas muito piores para garantir que seus filhos sejam bem cuidados, e minha mãe não fez isso, ela praticamente me vendeu, a troco de um teto.
Como ela quer que eu entenda isso.
Que tipo de mãe faz uma coisa dessas.
Eu não consigo parar de chorar, e ela não consegue me consolar.
Ela prefiriu ficar calada esses anos todos, para não morar na rua, pra não passar fome. Ela não passa de uma egoísta.
Eu olhei para ela, horrorizada.
–— Eu nunca vou te perdoar — Endureci as palavras.
Eu a vi murchar como uma rosa arrancada de um jardim.
Dei de ombros e fui até a porta com o coração partido em mil pedaços.
Eu esperava que dessa vez ela seria sincera comigo, mas inventou mais uma desculpa como sempre.
—– Você não está pronta pra ouvir a verdade, Ella — Alterou a voz.
Me virei e olhei pra ela.
—– Eu já sei a verdade mãe, e você também, mas ao invés de contar, prefere inventar mil desculpas, e...
–— Está bem - Ela me interrompeu
Era evidente o seu nervosismo.
Eu não estava pronta pra ouvir, e nem ela, pra contar.
–— Eu não te amava ok, infelizmente não desenvolvi o amor genuíno de mãe. Eu não tive uma mãe pra me ensinar, ela era um monstro comigo, e o meu pai não tava nem aí pra mim.. eu não estava preparada, eu mal sabia trocar uma frauda...eu queria você bem longe de mim, só sabia chorar... eu te culpei por tudo de ruim que estava acontecendo comigo, por ter sido expulsa de casa, por ter sido rejeitada pelo meu namorado..eu não te queria filha, e aquele homem sim, ele se aproximou de mim no momento mais difícil da minha vida e me ofereceu apoio, e eu aceitei. Ele era mais velho, tinha dinheiro, pelo menos o suficiente..e dói admitir isso que você estava certa, porque nenhum filho merece ouvir isso de uma mae..eu sempre soube, mas o medo da rejeição era maior do que meu amor por você..sair de casa para me encontrar com outro homem era o que me aproximava de quem eu era, e estava viciada nessa sensação..de me sentir livre, desejada..mas chega uma hora que isso acaba, e quando acabou só me restou você..
Tive que escorar na parede, pois senti que o meu coração iria parar.
Minha mãe começou a chorar descontrolada.
Depois me mostrou algumas marcas espalhadas pelo seu corpo, marcas profundas.
—– Você não sabe o quanto eu me odeio por isso, e tento me punir de todas as formas possível.. eu nem sequer tenho a chance de voltar atrás e consertar tudo...conheci o Richard, quando eu estava fazendo terapia..por isso não queria que ele te contasse..
Coloquei a mão no peito e parecia que eu estava segurando meu coração com as mãos de tanto que ele palpitava.
Ela tinha razão, eu não estava preparada pra ouvir a verdade.
Mas uma vez meus olhos foram inundados pelas lágrimas.
Olhei pra ela incrédula, dizendo aquelas coisas horríveis pra mim e tive vontade de matá-la, mas ao mesmo tempo eu tive pena, porque dava pra ver o quanto ela estava arrependida, e aquelas marcas em seu corpo mostra o quanto ela tem sofrido esses anos todos.
Eu não quero ser responsável por causar esse sofrimento pra ela, não é bom pra nenhuma das duas ficar remoendo o passado, por mais doloroso que seja.
Mas o choque me impede de pensar claramente. Eu olho pra ela e o ódio vem.
E ela está aqui tentando se redimir pelo seu ato desumano, abrindo o seu coração, e eu estou tentando não deixar o sentimento de raiva me consumir por inteiro e me fazer perder a cabeça.
Ela pode não ter sido uma boa mãe pra mim, mas está sendo para o Zyan e eu não quero ter que me afastar dele por conta dela.
Eu me senti dividida.
Nossas lágrimas se misturaram naquele quarto, eu sentia uma dor aguda no peito. E a minha mãe lutava para respirar, parecia estar tendo um ataque de pânico.
E eu conheço essa sensação, e não desejo nem para o meu pior inimigo.
Mas ao mesmo tempo eu não quero socorre-la, pessoas como ela merecem sofrer.
Ela sempre foi uma boa atriz, pode ser que ela esteja encenando outra vez, para que eu me preocupe com ela, e sinta pena, mas isso não vai acontecer.
Dei de ombros e fui até a porta, mas o meu pé foi agarrado, e quando olhei pra baixo vi que a minha mãe se arrastava pelo chão.
—– Por favor filha, não vai embora outra vez –– Ela implorou e sua atitude me deixou assustada –Eu prometo que vou ser uma boa mãe, não vou me interferir na sua vida..
Fechei os olhos e lutei contra a vontade de ficar e perdoar.
Na minha cabeça, havia um cenário triste, um quarto escuro e uma criança abandonada com um monstro à espreita.
E quem eu queria que estivesse lá pra me salvar, não estava.
Sinto as forças se esvaindo no meu corpo.
Gritei.
Foi a única forma que encontrei de canalizar a raiva.
—– Por que deixou ele fazer aquilo comigo? — Chorei — Por quê?
Fui respondida por um choro profundo e gemidos de dor.
—– Sua obrigação como mãe, era me proteger...como espera que eu te perdoe por isso..
—– Mas eu posso te proteger agora.
—– Só que agora, é tarde – Gritei furiosa
Caí de joelhos diante dela, incapaz de conter a forte emoção que dominava o meu corpo.
Encarei os seus olhos por um instante e passei a mão sobre o seus cabelos desgrenhados, em seguida pelo seu rosto com algumas rugas aparentes.
E me esforcei para enxergar o seu sofrimento.
Mas quando uma mãe vira as costas para um filho, ela deixa uma ferida muito grande em seu coração, difícil de cicatrizar.
E havia um grande abismo entre nós.
Ela me puxou e me abraçou, fechei os olhos e tentei deixar o amor fluir, mas não saiu nada.
Minhas mãos não corresponderam ao seu abraço.
Meu corpo ficou rígido como uma pedra de gelo.
Por causa da sua mãe, ela não conseguiu ser uma boa mãe pra mim, mas eu não sou como ela, se eu pudesse ter um filho, eu faria o possível e o impossível pela felicidade dele.
E eu iria querer que ele aprendesse a perdoar as pessoas e não ficar guardando um sentimento tão ruim dentro dele.
Mas pra isso, eu vou ter que fazer a coisa mais difícil que já fiz na vida, perdoar.
Perdoar para poder seguir em frente e construir novas memórias, perdoar para poder receber a minha mãe na minha casa, e poder cuidar dela na velhice, e não sentir remorso depois que ela partir.
Porque ela é a minha mãe, por mais problemática que seja, por mais mal que tenha me causado, por mais que eu sinta dor quando lembro, eu preciso perdoa- la.
–— Eu...
Respirei fundo e tentei conter as lágrimas que caiam a todo instante.
Na minha cabeça, várias lembranças ruins bagunçaram os meus sentimentos.
—– Eu te perdôo.
Soltei um suspiro trêmulo e depois de ter dito, senti um alívio imenso, parece que por um instante toda aquela mágoa havia se dissipado.
E eu finalmente consegui enxergar o seu sofrimento, sem está totalmente cega pela raiva.
Eu consegui ver, apesar de tudo, um ser humano que falhou miseravelmente, e que teve diversas oportunidade de mudar e não mudou.
Eu não queria perdoar a minha mãe porque eu achava que assim estaria aceitando o que ela fez comigo.
Mas perdoar não é aceitar e muito menos esquecer, e sim uma forma de tirar esse peso das costas e seguir a vida de uma maneira mais leve, sem a presença do rancor e da raiva o tempo todo.
Sem contar a vingança. Sempre procurei formas de me vingar da minha mãe.
E ter falado a verdade para o Richard foi uma delas, porque eu queria ver minha mãe no chão, sem nada e destruída.
E por um instante isso pareceu prazeroso, mas agora depois de tê-la perdoado eu me sinto mal por ter feito.
E agora eu entendo que está mais do que na hora de encerrar esse ciclo e iniciar outro.
Depois que fizemos as pazes, e choramos aliviadas, convenci minha mãe de conversar com o Richard. Ele também merece ouvir a verdade.
E quem sabe ele até consiga perdoa-la também.
Já me acostumei com ele por perto, quando ele não está aqui, o ambiente fica incompleto e sem graça.
E sei que ele só está magoado, e ama a minha mãe mais que tudo nesse mundo, e ele vai voltar.
Nem que seja para fazer as malas.
Minha mãe foi atrás dele, e eu fiquei no quarto dominada por uma estranha felicidade.
Nem parecia que eu estava chorando e querendo matá-la, minutos atrás.
É o milagre do perdão.
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