79
—– Acorda!
Uma voz fina sussurrou no meu ouvido me fazendo abrir subitamente os olhos.
Porém um clarão me impediu de mantê-los abertos.
—– Que bom que acordou.
—– Eu estou no céu?
—– Você está no paraíso, mas ainda não é o céu — Disse a voz, com um tom animado.
Notei que eu estava deitada em algo macio, mas que estava longe de ser uma cama.
Apalpei e vi que se tratava de grama.
Que ótimo, morri e desovaram meu corpo em um matagal.
Virei o rosto para me desvencilhar daquela luz e aos poucos minha visão foi ficando nítida, vislumbrei primeiro um par de sapatos pequenos.
Se tratava de um garoto.
Mas a luz do sol não me deixava ver o seu rosto claramente.
Então eu me levantei e sentei na grama.
O garoto se sentou do meu lado e olhou pra mim com curiosidade.
—– Quem é você? — Olhei para ele, confusa.
—– Matias - Ele disse confiante.
—– Ok! Matias, isso é loucura — Agarrei os cabelos, aflita
—– Não é loucura não, moça, é real — Ele suspirou e olhou pra frente. Segui o seu olhar e me deparei com um lindo campo verde repleto de flores de todos os tipos.
Suspirei encantada com tanta beleza, nunca estive em um jardim assim antes.
—– Vem, vou te apresentar para os outros — Ele se levantou empolgado.
—– Outros? Ei, como assim — Gritei, mas o garoto desapareceu entre aquelas flores.
—– Vem logo — Sua voz soou distante.
Não tive outra escolha a não ser segui-lo, guiada pelo som da sua voz.
Conforme eu ia andando, ficava cada vez mais admirada com o lugar.
O cheiro das flores era maravilhoso, o ar puro entrava e saia livremente pelas minhas narinas. O céu estava mais azul do que de costume.
Se for um sonho eu não quero acordar.
—– Onde você está? — Perguntei, procurando o garoto por toda parte.
—– Tá esquentando — Disse ele
Fui andando desorientada até que esbarrei em algo.
Era o garoto, ele estava parado feito uma pedra.
Olhei para ele, confusa, e vi que tinha um enorme sorriso no rosto.
Que chegava a ser assustador.
—– Olha — Ele apontou.
Olhei pra frente e vi vários meninos com idade entre seis e oito anos.
Eles se aproximaram de mim e todos se juntaram em um abraço coletivo.
Pareciam felizes com a minha presença.
E me contagiaram com essa alegria genuína.
Minha vontade foi de adotar todos eles, pareciam tão carentes.
Um desses garotos, o mais pequeno, me entregou uma rosa vermelha.
Me senti tão amada.
—– Obrigado — Me abaixei para tocar seu rosto e percebi uma enorme cicatriz em seu pescoço.
Eu não tinha percebido, mas todos eles tinham uma cicatriz só que em locais diferentes.
E isso me deixou bastante chocada.
—– Eu também tenho uma — Uma voz adulta disse entre eles — Tentaram arrancar os meus testículos quando eu era criança, mas eu consegui escapar, algumas pessoas não aceitam que seus filhos nasçam meninos e tenta reverter a situação a todo custo, tentaram fazer comigo e fizeram isso com o pequeno Julian, mutilaram o garoto sem mais nem menos, mas ele tem sido muito corajoso, por isso gosto especialmente dele.
Levantei os olhos e me deparei com Thomas, vestido com uma roupa branca e com um sorriso radiante.
Seus olhos pareciam duas esmeraldas brilhantes.
Vi que ele se referia ao garotinho que me entregou a rosa. Fiquei horrorizada ao saber disso, ele parecia ter uns quatro anos, como puderam fazer isso com ser tão pequeno e indefeso.
Como puderam fazer isso com o Thomas.
—– O que faz aqui?
—– Bom, eu moro aqui agora — Ele abriu os braços e todos aqueles garotos correram para abraça-lo.
—– E onde estamos?
—– Eu diria que no inferno, mas aqui chega ser pior
Meu coração disparou de repente.
—– Não é verdade, aqui é o paraíso.
—– Olha de novo Ella, não é o que parece.
Olhei em volta com um certo medo e vi todo aquele paraíso se desmanchar em cinzas.
Mas o que me chocou de verdade foi notar que todas aquelas crianças estavam mortas e amontoadas como lixo em um canto.
E Julian estava por baixo, tendo que suportar o peso das demais crianças.
O instinto materno me fez ir até lá, mesmo sabendo que o meu esforço de salva-lo seria em vão.
Segurei o seus dois bracinhos e tentei arranca-lo de lá a todo custo. Eu estava certa de que iria conseguir.
Mas Thomas me agarrou por trás e me puxou de volta.
—–Nãooo — Berrei — Me solta, eu tenho que tira-lo de lá.
As lágrimas inundaram os meus olhos.
—– Tá fazendo o que, sua louca? é tarde demais.
Vi através dos seus olhos as chamas se espalharem pelos os corpos.
Os meus ouvidos foram invadidos por som agudo e insuportável, eram gritos, gritos de agonia.
Aquelas crianças não estavam totalmente mortas, estavam sendo queimadas vivas.
E eu não podia fazer nada pra ajudar.
Então fechei os olhos e tampei os ouvidos para me poupar dessa cena perturbadora.
Quando abri os olhos e vi todos aqueles corpos carbonizados, meu coração se partiu em mil pedaços.
—– Mas prazeroso do que ver é poder sentir — Disse Thomas ameaçando atear fogo em si mesmo.
—– Não, não faça isso — Tentei impedi-lo de todas as formas, até que ele conseguiu me derrubar no chão.
—– Não foi coincidência os nossos caminhos se cruzarem, Ella.
—– O que?
E antes que eu pudesse entender, ele jogou um líquido sobre o meu corpo, e em seguida acendeu um fósforo.
—– Não, o que está fazendo?
—– Te encontro no inferno.
Dito isso, ele atirou o fósforo aceso em mim e o fogo se espalhou com uma velocidade absurda.
Comecei a me contorcer pela grama afim de apagar as chamas, mas de nada adiantou. O fogo me consumiu por inteiro.
Minha pele toda estava se derretendo, e a dor era de pedir pra morrer.
Comecei a gritar desesperadamente, mas o que escutei foi uma risada assustadora.
—– Thomas, por favor, não me deixe morrer assim — Berrei
Até que parou.
Eu me levantei e me sentei, e dessa vez eu pude sentir a maciez de uma cama.
A minha pele parou de queimar e os meus batimentos voltaram ao normal junto assim com a minha respiração, que até um segundo atrás estava me sufocando.
O alívio foi tão grande que eu comecei a rir, rir de felicidade por não estar sendo torrada viva.
Comecei a tocar o meu rosto e os meus braços para me certificar de que aquilo não passou de um pesadelo horrível.
—– Quem é Thomas?
Virei o rosto e vi que Diego me observava bastante sério.
O sorriso desapareceu por um instante.
Engoli a seco.
—– Oi amor, não tinha te visto — Falei um tanto sem graça.
—– Quem é Thomas? — Ele repetiu e notei que o ódio era nítido em seus olhos.
Suspirei pesadamente.
—– O nome de um dos meus amantes — Confessei.
—– Você deu a entender que isso tinha ficado no passado, mas agora a pouco estava chamando por ele em um sonho, como você quer que eu me sinta, também nāo sou nenhum otário.
—– Não é isso que você está pensando — Levantei as pressas da cama e fui até ele.
Ele fez um gesto com a mão pra me manter distante.
Foi como levar um tapa no rosto.
—– Então vai dizer que não estava trepando com ele no sonho.
—– O que?
Me senti ofendida com a forma que ele falou.
Diego não é assim.
—– Trepou ou não?
—– Claro que não, ficou maluco.
—– Você trepou com o seu padrasto? O Richard?
—– Diego? — Olhei pra ele, horrorizada.
Eu não estava acreditando que essas palavras estavam saindo da boca de uma pessoa tão educada.
Isso só pode ser outro pesadelo, não é possível.
—– Me Responda — Ele me agarrou pelos cotovelos e me fuzilou com o olhar.
Puxei o meu braço de volta e o encarei furiosa.
—– Não, e jamais fale assim comigo.
—– Mas você queria, não queria?
Senti um nó na garganta ao ser confrontada com algo tão íntimo, e pra não começar a gaguejar preferi ficar calada.
Mas o meu silêncio acabou entregando tudo, e Diego me lançou um olhar tão cruel que fez eu me sentir suja.
—– Você é uma...
—– Diego não...
—– Vagabunda.
—– Não fala assim — Falei sem conseguir conter as lágrimas.
—– Sua mãe tem razão, você está louca e eu não quero viver com uma louca como você...
Ele virou as costas e foi em direção a porta do quarto, nesse momento o meu mundo caiu.
—– Não Diego, não me deixe por favor, eu não vou conseguir sobreviver sem você — Me agarrei a ele como se fosse a minha única fonte de vida.
—– Tire essas mãos sujas de mim, você me dá nojo — Ele me empurrou no chão — Você vai ficar sozinha, ninguém nunca vai gostar de uma puta igual você.
Levantei do chão e continuei me humilhando atrás dele, até que ele parou.
Olhou pra trás e me encarou com um olhar cruel, e um sorriso assustador.
—– Diego.
Ele começou a rir assustadoramente, debochando da minha cara.
—– Caleb?
—– Sua retardada, eu consegui te enganar de novo, você tinha que ver a sua cara.
Fiquei paralisada.
—– Ella Watson, se depender de mim você nunca será feliz.
—– Não é real, não é real — Fechei os olhos e tentei me convencer que era um pesadelo, enquanto Caleb ria sem parar.
E quando abri os olhos ele estava tão perto que tive que dar dois passos pra trás pra cabermos no mesmo espaço.
Encostei na parede e senti meu coração sair pela boca quando ele se aproximou.
—– Agora vou poder terminar o que comecei.
Dito isso ele enfiou uma faca na minha barriga e foi com o último suspiro que eu despertei.
Eu estava bastante assustada, meu coração estava batendo muito forte e eu não conseguia respirar.
Olhei em volta e dessa vez percebi que eu estava sozinha no meu quarto e já era de manhã.
Meu deus!
Fechei os olhos.
Se for outro pesadelo, eu juro que me atiro pela janela.
—– Bom dia dorminhoca, trouxe o seu café da manhã — Diego apareceu radiante, segurando uma bandeja.
Ele se aproximou de mim, beijou o meu rosto, colocou a bandeja em cima da cama e em seguida abriu a janela.
Acompanhei cada movimento dele com os olhos sem dizer uma palavra.
—– Você desmaiou ontem do nada, então eu te trouxe pra cá, aliás você é muito pesada mocinha...
Ele começou a falar descontraído, mas eu não conseguia prestar atenção no que ele estava falando.
Só pode ser um pesadelo mesmo, Caleb morreu com um tiro na cabeça, eu vi o seu corpo sendo colocado em um saco preto.
Não faz sentido ele fingir a própria morte, eu sei que ele é capaz de tudo, agora isso seria demais.
E toda essa história de gêmeos que foram separados na infância, tem que ter uma imaginação muito boa pra inventar uma coisa absurda dessa.
E se for verdade, Clarice sabia de tudo e escondeu isso de mim.
Eu estou muito assustada, confusa, com os sentimentos bagunçados e os nervos à flor da pele.
—– Ella —Diego me chamou fazendo o meu corpo estremecer — Por que está me olhando assim?
Uma lágrima escorreu, e eu aparei rapidamente.
—– An? Assim como? Funguei
—– Como se eu fosse um fantasma, sei lá — Ele deixou escapar uma risada boba e depois mordiscou uma torrada.
Balancei a cabeça um pouco confusa.
Acho que eu estou ficando louca. Foi só um pesadelo sem sentido.
Mas geralmente os meus pesadelos costumam ter uma mensagem.
—– Nada, eu tive um pesadelo só isso — Respondi indiferente.
—– E com o que você sonhou — Ele perguntou de boca cheia.
Olhei profundamente em seus olhos, e ele acabou deixando um pedaço da torrada escapulir.
—– Ops! Foi mal.
Caleb nem é tão fofo assim, ele teria que se esforçar muito pra ter esse senso de humor, esse brilho nos olhos, essa alegria de viver que poucas pessoas tem.
Caleb perdeu a vontade de viver a muito tempo, o vazio vivia presente em seu olhar.
E se entregou pra morte, morreu fazendo o que ele sabia fazer de melhor que era maltratar os outros, descontar toda a sua raiva em quem nāo merecia.
Eu não vou contar a Diego sobre o pesadelo que tive com ele, isso poderia soar como uma ofensa.
Então vou contar o outro pesadelo.
—– Havia um lindo jardim, e havia também algumas crianças por lá, meninos pra ser mais exata, e estava tudo bem, eles gostaram de mim, mas aí...do nada tudo começou a pegar fogo...e depois elas estavam todas queimadas...foi horrível.
O semblante de Diego mudou drasticamente.
Eu havia me esquecido de que isso era um gatilho pra ele.
—– Amor, me desculpe
—– Não se preocupe, isso já passou — Ele sorriu fraco.
Beijei seu rosto e aos poucos um sorriso foi aparecendo.
Encarei profundamente os seus olhos e senti que deveria ser sincera com ele.
Porque ele sempre foi sincero comigo.
Suspirei fundo.
—– Sonhei que você era o seu irmão disfarçado e fiquei com medo de ser real
—– Eu imaginei que fosse isso mesmo, parecia que você ia me devorar com olhos, fiquei com medo real — Ele debochou — Mas fica tranquila eu não sou ele, ou pelo menos eu acho que não.
Dei um soco de leve em seu braço.
—– Quer tomar café comigo? — Ele perguntou sorridente.
Seria até um pecado recusar um convite como esse.
Balancei a cabeça positivamente.
—– Falei com a sua mãe.
O sorriso sumiu do meu rosto.
—– Ela me contou tudo, eu sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto, mas acho que vocês precisam conversar.
—– Não tenho nada que conversar com ela — Falei cortando o pão apressadamente.
Diego parou as minhas mãos agitadas e me fez olhar pra ele.
—– Dar uma chance pra ela, acho que se a minha mãe estivesse disposta a conversar comigo eu iria ouvi-la.
Isso me deixou um pouco mal, porque eu ainda não contei para Diego o que tinha acontecido com a mãe dele.
E eu sinto que não vou conseguir esconder isso dele por muito tempo.
—– Tá bom — Revirei os olhos — Eu vou falar com ela.
Ele sorriu e a gente iniciou um beijo demorado, com gosto de torrada e geleia de morango.
A gente se afastou e eu olhei em seus olhos azuis e seus lábios rosados e umedecidos.
Que homem perfeito.
Passei a língua no canto da sua boca pra limpar o resto de torrada que havia ficado.
E isso deixou o clima mais quente entre nós.
Pena que eu vou ter que estragar.
—– Mas antes eu tenho que te contar uma coisa.
—– E o que seria?
—– Eu estive com a sua mãe.
Essa revelação o deixou claramente desconfortável.
—– Encontrei o contato dela no celular de Caleb e marcamos um encontro.
—– E onde ela está agora?
—– Morta.
Fui direto ao ponto.
Diego se levantou da cama e foi até a janela, resolvi dar esse espaço pra ele poder absorver essa notícia.
–— Ela desmaiou durante a nossa conversa, e eu cheguei até levá-la ao hospital, mas ela infelizmente veio a falecer — Falei baixo para tentar amenizar o impacto.
Mas eu sabia que não tinha como. Não tem como uma notícia como essa ser menos impactante.
Diego levou a mão até a boca completamente arrasado.
Senti muita pena dele.
Mas quando fui abraçá-lo, ele recusou amargamente o meu abraço.
—– Será que você pode me deixar sozinho — Ele pediu sem me olhar nos olhos.
—– Claro — Suspirei arrasada, porque eu queria ficar com ele nesse momento difícil — Se precisar de mim, é só chamar tá?
Fui respondida com um silêncio perturbador.
Mas eu entendi que ele precisava desse tempo com ele mesmo pra processar e entender seus próprios sentimentos em relação a sua mãe.
Tenho certeza que ele não está me afastando por mal, se não já teria ido embora.
Sei que quando eu terminar de falar com a minha mãe, ele vai está me esperando pra gente se abraçar e um consolar o outro.
Bom, eu quero acreditar que sim.
Às vezes penso que estamos tão calejados, que talvez o certo seria cada um ir para o seu lado.
Mas eu não sei se conseguiria viver longe de Diego por muito tempo, ele veio do nada e se tornou tudo.
Não vou e não quero deixá-lo.
Sai do quarto confiante apesar de tudo e segui em direção ao quarto da minha mãe decidida a falar com ela.
Dessa vez ou seremos amigas ou viramos inimigas.
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