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Levantei do chão e fui direto para o banheiro, me sentindo um pouco tonta e com muita dor nas costas.

Eu tenho quase certeza que desmaiei após aquele ataque de pânico, e o que aconteceu em seguida foi tudo fruto da minha imaginação.

Abri a torneira, e joguei um pouco de água no rosto, enquanto a minha mente era bombardeada com as imagens daquele pesadelo que parecia tão real.

Reviver o trauma não é algo tão fácil assim, e eu precisei sair da minha zona de conforto e vagar por lugares tenebrosos do meu subconsciente.

Acredito que todo o ser humano precisa  passar por esse tipo de experiência para entender o que de fato aconteceu.

E eu acredito que os abusos aconteceram muito antes do que eu possa me lembrar. E isso me deixa ainda mais horrorizada.

Fechei a torneira e encarei o espelho, e por incrível que pareça eu me senti uma nova mulher, mais forte, confiante e determinada.

Como se eu tivesse ressurgido das cinzas.

Eu não perdoei meu pai totalmente, essa palavra pode ter saído da minha boca, mas acredito que não foi pra valer, o perdão não acontece do dia para o outro, ainda mas em algum tipo de sonho lúcido.

Entendo que perdoar leva tempo, e que  vai ficar mais fácil conforme eu for praticando, mas eu não sei se vou consegui perdoá-lo um dia, porém não deixarei essa dor me paralisar outra vez, não vou ficar sentada vendo a minha vida passar diante dos meus olhos.

Isso pode até soar um pouco egoísta, mas eu mereço ser feliz, mereço as rosas da vida, até hoje tudo que me deram foram espinhos, e tive meu coração perfurado muitas vezes por diversas pessoas diferentes,  está na hora de pôr um ponto final nesse sofrimento.

Sinto que dei um bom passo, coloquei pra fora tudo o que eu estava sentindo e consegui encarar o opressor de frente, agora me sinto corajosa pra enfrentar qualquer coisa.

Pois eu não tenho mais medo.

Fui até o outro quarto onde estavam as minhas roupas, me troquei, penteei os meus cabelos, que a cada dia pareciam mais compridos e volumosos, se a minha vida fosse igual o meu cabelo seria bom, porque suas pontas não se quebram com facilidade.

Passei algo no rosto para tirar aquele aspecto de velório, e por fim o perfume.

Sim, perfume.

Eu não iria a lugar nenhum, mas eu estava sentindo uma estranha necessidade de me arrumar, de ficar bonita pra mim mesma.

Terminei de me arrumar e desci, para  encontrar a minha verdadeira família, e vi que eles já estavam na cozinha  tomando café, e ver essa cena me fez sorrir emocionada.

—– Bom dia querida, junte-se a nós —  Minha mãe disse sorrindo, puxando uma cadeira.

E Richard me encarou retraído como sempre, mas lá no fundo eu sei que ele estava feliz por mim.

Todos ali torciam pela minha recuperação.

—– Claro — Me aproximei e sentei ao lado da minha mãe, ela se apressou e despejou um pedaço de bolo no prato e entregou pra mim.

—– Obrigado mãe.

—– Você parece ótima — Soltou — Reparei que você foi dormir no seu quarto, então decidi não incomodar.

Eu não contei, mas desde que eu mudei pra cá não teve um único dia que a minha mãe não foi ao meu quarto.

Mesmo que eu tenha dormido no chão no outro quarto e ninguém tenha vindo me acordar para evitar essa dor horrível que sinto nas costas, fico feliz por ela ter respeitado o meu espaço.

—– Você deu um passo em tanto viu garota — Richard falou tocando em meu ombro.

—– Obrigado — Agradeci tanto ele como a minha mãe

Ambos me olhavam orgulhosos.

Sabe quando você está tão feliz que mal consegue esconder, era assim que eu me sentia, meu próprio sorriso não cabia na minha boca.


Logo o clima ficou descontraído, com boas conversas e risadas, e depois disso cada um foi para um lado. Richard para o seu novo emprego no quintal de casa e minha mãe após  levar Zyan pra creche, também foi trabalhar, e eu acabei ficando sozinha, como sempre, mas eu estou tranquila quanto a isso, no começo era assustador com todas aquelas alucinações, mas hoje eu me sinto confiante, e se as assombrações aparecerem, eu vou estar pronta para enfrenta-las.

Mas pela primeira vez eu tive uma tarde tranquila e normal.

Eu aproveitei o tempo livre para arrumar a casa, especialmente o meu quarto, retirei  tudo aquilo que achava inútil pra mim e coloquei numa caixa grande para doação.

O que não serve pra você, pode servir para outras pessoas, desde que esteja em bom estado.

E no meio dessa faxina, acabei encontrando a antiga caixinha de música, que o meu pai havia me dado, por incrível que pareça ainda estava funcionando.

Só que a música não me traz boas lembranças. Era uma melodia doce mas que agredia severamente os meus ouvidos

Depois de tirar toda a poeira dela, a  peguei com cuidado e coloquei dentro da caixa junto com as outras coisas.

Passei pela a janela e resolvi parar para olhar, fiquei feliz por não sentir mais aquela mágoa reprimida dentro de mim.

Agora mais do que nunca, eu reconheço que a culpa não foi minha e que eu não deveria pagar por isso. O culpado não está mais aqui, e eu espero sinceramente que esteja ardendo no inferno.

Vi o que antes era a oficina do meu  pai, se transformar em uma simples mercado onde o Richard está trabalhando agora.

Apesar de quase termos a mesma idade eu decidi trata-lo como o meu padrasto e respeitar a relação que ele e minha mãe estão tendo, finalmente ela encontrou alguém que a ama de verdade, que a trata como ela merece,  e se ela pode, significa que eu também posso.

Eu não fico triste de ver que ele acabou com algo que antes pertencia ao meu pai, muito pelo contrário, estou muito feliz.

É muito bom substituir coisas velhas por coisas novas, e coisas ruins por coisas boas.

E também, o meu pai sempre deixou claro que aquilo seria meu um dia,  e eu não vejo outra pessoa melhor para cuidar da oficina como o Richard, mesmo que ele tenha optado em não continuar com o negócio.

Peguei a caixa e levei pro carro, porque mais tarde eu vou levá-la para uma instituição de crianças carentes.

O quarto agora ficou sem identidade.

As paredes ainda tinham alguns vestígios de papel, por conta dos posts das bandas que eu curtia, mas nada que uma boa tinta não resolva.

Esse quarto vai ser do Zyan um dia, se ele quiser, quero que ele tenha  o privilégio de ver o seu pai vindo do trabalho, o seu pai de verdade,  quero que ele decore esse quarto do jeitinho dele.

Me ocupei o resto da tarde procurando em catálogos casas para alugar e achei uma simples, com um valor acessível.

Enfim, a minha vida estava voltando para os eixos.

Assim que voltei para academia de dança, notei que as minhas crianças haviam sofrido demais a minha ausência, pois me receberam como papai Noel em noite de natal.

Fiquei muito feliz por perceber que eu era amada de verdade, pois crianças são sinceras com seus sentimentos, e nunca mentem.

Notei que Annabelle tinha faltado à aula, e que de acordo com as outras crianças essa não foi a primeira vez.

Será que Diego preferiu tirar a menina das aulas de dança para não ter o desprazer de me ver.

Afinal tivemos um único encontro, e depois disso eu sumi, ignorei suas ligações, e não dei sequer explicações, ele deve ter se sentido culpado, coitado.

Preciso me desculpar com ele, e talvez acabar de vez com algo que nem começou.

Mas notei que desde que fiquei ausente mentalmente, havia um silêncio ensurdecedor vindo de sua casa, eu costumava ouvir o som da água da mangueira, todos os dias de manhã, sempre quando a sua mãe molhava as plantas e nem isso eu consegui ouvir mais.

A casa estava completamente vazia, e as janelas e portas estavam sempre  fechadas.

Pra onde será que eles foram, será que se mudaram?

Eu nem tive a chance de me despedir dele, eu gostava dele, foi o primeiro homem que gostei depois de tudo que aconteceu, e eu gostaria que além de  primeiro, ele tivesse sido o último.

Fiquei apreensiva,  buscando respostas na minha mente para justificar o desaparecimento de alguém.

Me sentia extremamente culpada. Eu tinha encontrado o homem dos meus sonhos e deixei ele escapar por entre os meus dedos.

E a única coisa que restou foram as  imagens dele sorrindo e me olhando com aqueles olhos capazes de desconcertar qualquer um.

Como eu pude ser tão burra.

Peguei o celular e procurei seu número no registro de chamadas, e como havia um que se repetia mais do que os outros, imaginei que fosse o dele, mas ele não estava atendendo, a ligação só dava na caixa postal.

Passei a mão pelos cabelos, aflita, e suspirei decepcionada.

E agora como vou dizer a ele que o amo.

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