49
Com passos relutantes se aproximava um rapaz franzino de cabelos raspados e escuros.
Se não fosse os seus olhos verdes e marcantes, eu não o reconheceria.
Ele estava algemado, e era possível ver a marca das agulhas em seus braços, além de estar com uma mancha avermelhada ao redor dos olhos.
Ele nem tinha se recuperado direito, esses policiais maldosos o arrancaram do hospital à força, assim que ele acordou.
E por que eu sinto pena dele? não é como se ele fosse injustiçado.
Ele é um assassino.
Balanço a cabeça afim de voltar para a realidade, onde ele é o manipulador, e eu sou vítima.
Não tão vítima, também fiz coisas ruins, mas quando você está dominada por um sentimento tão intenso como o amor, você é capaz de fazer qualquer coisa sem pensar duas vezes.
E metade das coisas ruins que eu fiz foram por causa dele, para protegê-lo.
Eu não tinha reparado que ele havia mudado tanto durante esse tempo que ficou internado. Estava com um aparência horrível. Febril, com algumas cicatrizes pouco visíveis em seu belo rosto.
Agora olhando bem pra ele, eu consigo enxergar o garoto do video. Pobre criança traumatizada.
Ninguém ensinou a ele o que era o amor.
Nem eu faço ideia de como é o amor.
O amor que eu conheço é um sentimento doentio e paralisante que te obriga a ficar em um só lugar a vida inteira. Se eu não amasse tanto Caleb, eu já teria ido. Mas parece que tem uma corrente presa no meu pé.
O policial retirou as suas algemas, e ele se sentou na cadeira e encarou meus olhos em silêncio.
Ele parecia muito calmo para quem iria passar o resto da vida atrás das grades.
Tinha algo errado com ele. Seu semblante me deixou completamente desconfortável. E não era assim que eu deveria me sentir.
Poxa, eu o amava. E agora eu nem sei mais o que eu sinto.
—– Eu pensei que nunca mais fosse te ver — Ele disse com a voz falha, enquanto eu o fitava paralisada do outro lado.
Suas mãos estavam bem distantes de mim, e eu sabia que o policial estando presente na sala, não permitiria que ele me tocasse. Mesmo assim eu tinha pavor que suas mãos me fizessem voltar a sentir coisas que eu não queria.
As lágrimas molhavam os meus olhos. E toda vez que eu tentava apará-las, meus dedos eram inundados.
Eu olhava para ele e pensava.
Poxa, mas ele me salvou da escuridão, foi ele que meu deu forças pra continuar. Foi ele que quando eu estava no pior momento da minha vida, estava lá pra me consolar. Mas caramba, também foi ele que me magoou, me enganou, que me usou, ele fingiu que me amava e me fez ama-lo. Ele poderia ter me matado como fez com as outras vítimas, e por que não me matou?
É tudo tão confuso.
Isso não pode ser verdade.
Limpei as lágrimas e assumi uma expressão apática. Não, eu não estou aqui pra sentir pena dele, ele não merece, ele me manipulou, me fez perder o meu precioso tempo, correndo atrás de uma coisa que sequer existia.
Mas isso também foi culpa minha, eu quem alimentei essa fantasia, eu não deveria ter ido na sua casa, eu não deveria ter dado esperanças pra ele. Eu não deveria ter feito nada.
Minha cabeça parece que vai explodir.
E por que ele está tão calmo? era pra ele estar surtando junto comigo.
Ele é mal, muito mal. Ele é pior do que Caleb, porque ele enfiou uma faca nas minhas costas, porque me fez acreditar que meu marido era o monstro, quando na verdade era ele.
Por que todas as pessoas que me cercam são ruins? Qual pecado eu cometi para está merecendo toda essa merda.
—– Parece pensativa Ella, no que está pensando? — Ele perguntou com um sorriso no rosto, revelando suas covinhas.
Qualquer pessoa que se deparasse com esse sorriso, jamais pensaria que se trata de um psicopata.
Um demônio no corpo de um anjo.
Quando ele sorri, é como o sol se abrindo depois de uma intensa tempestade.
—– Tho...
Eu nem sequer consigo pronunciar o nome dele, sem um nó atravessando a minha garganta.
—– Thomas? — Ele completou com uma naturalidade absurda.
Por que agora eu sinto medo de estar com ele?
Por que é tão difícil encara-lo?
As lembranças que passam na minha cabeça, são dele, me levando à loucura.
O doce prazer proibido e inebriante que seu corpo me proporcionava.
Agora eu sinto pavor.
Eu deveria ter deixado ele morrer a míngua naquela calçada.
—– Sim, esse é o seu nome?
—– Não, eu sou o Vicent, não está lembrada..Ella — Ele adoçou as palavras, mas dava pra ver claramente o seu cinismo — Eu fico em coma, e é você que perde a memória? não sei o que te contaram, mas nada disso é verdade, estão tentando confundir sua cabeça, me prenderam aqui injustamente e...
—– Para de mentir — Gritei atordoada— Você não é a vítima aqui.
Pelo calor que subiu no meu rosto, certamente ele estava vermelho e as minhas veias provavelmente saltadas.
Eu estava furiosa.
Ele ficou calado por um instante, mas logo um sorriso maquiavélico se formou em seus lábios. E ele soltou uma risada monstruosa que se estendeu pela pequena sala. Me causando calafrios.
—– Pessoas inocentes estão mortas por sua causa..se eu soubesse, eu teria te deixado morrer naquela calçada — Cuspi as palavras.
Ele inclinou o rosto de uma forma que ficasse próximo do meu.
—– Se soubesse, ainda sim teria salvo a minha vida, porque você não é assim, Ella ...você deixa o herói morrer, pra salvar o vilão...
Bati a mão na mesa com força, chamando a atenção do policial que até então estava parado do meu lado.
Lancei um olhar pra ele de : Tudo bem, eu não vou matar ele, não agora, nem aqui.
—– Tem razão — Sussurrei — Eu não sou como você, você é cruel. Ai meu Deus — Enterrei o rosto nas mãos — Como eu pude me apaixonar por você, como eu não vi isso antes?
O sorriso cresceu em seus lábios.
—– Da mesma forma que se apaixonou pelo seu marido, puta merda Ella, você deixava ele te bater...
Havia uma grande ironia em suas palavras, mas eu não me deixei levar pelas suas provocações. Sua intenção era me desestabilizar para fazer eu parecer a louca e não ele.
Eu conheço essa tática.
—– Mas tudo bem, o amor cega as pessoas — Ele se acomodou na cadeira e me encarou sem expressão — Eu não sou psicopata, Ella, porque eu amei você de verdade, psicopatas não amam.
Soltei uma risada incrédula.
—– Eu me imaginei te matando de tantas formas.
O sorriso logo fugiu do meu rosto, e eu senti o meu estômago embrulhar.
Ele fechou os olhos e suspirou.
—– Só de pensar eu fico excitado, sabia?
—– Se tivesse me matado teria me feito um favor, teria me poupado de muitas coisas...inclusive de estar tendo essa conversa com você.
Ele sorriu de lado e os seus olhos se direcionaram para o topo da minha cabeça.
—– Ela ficou melhor em você — Falou em relação a peruca que eu nem reparei que ainda estava usando.
Puxei a mesma me sentindo uma inútil, por ter vindo até esse lugar pra nada. Por ter feito tudo o que eu fiz pra nada.
Pobre Caleb.
Eu pensei em deixá-lo pra fugir com um louco, pra morrer asfixiada, ou sabe se lá como ele pretendia me matar.
Foi o amor por Caleb que me fez ficar, foi amor por ele que me salvou.
E esse homem na minha frente nem parece o homem que eu conheci a um tempo atrás. Na verdade, aquele homem nunca existiu.
É impressionante como você começa a enxergar as coisas claramente como elas são, depois que a névoa esbranquiçada do amor deixa seus olhos.
Eu fui um alvo fácil pra ele. A pobre mulher desamparada que sofria horrores nas mãos do marido.
—– Você é um imã de coisas ruins, Ella — Ele falou seriamente, falo pelo o homem que tem do seu lado.
—– Caleb não é como você.
—– Tem razão, ele é pior...mas você nunca vai admitir isso porque continua cega por ele...você compactua com a maldade dele...
Passei a mão na barriga por baixo da mesa, e um frio invadiu o meu ventre.
—– Ele é pior porque está te matando aos poucos, lentamente...
Ele está tentando confundir a minha cabeça para que pense que Caleb é pior do que ele, mais ele não é. Caleb não é doente, ele está doente.
Agora uma pessoa que tem o sangue frio de matar outra, essa já perdeu o amor à vida, a muito tempo.
—– Você matou Robert? — Perguntei diretamente, engolindo a seco — Afinal você estava morando na casa dele, como entrou lá?
Eu queria que a resposta fosse não. Queria que pelo menos isso não tenha feito.
Robert era como um avô que eu nunca tive, um amigo que me salvou muitas vezes da fúria de Caleb.
Que me abrigou em sua casa, e limpou as minhas feridas.
—– De qualquer forma ele iria morrer mesmo — Confessou sem nenhuma emoção na voz. E eu entrei lá da mesma forma que entrei na sua casa, e foi ele quem abriu a porta.
—– Não - Suspirei arrasada. Não, não, não...
—– Mas não se preocupe, ele morreu feliz — Ele completou, enquanto eu chorava desconsolada — Eu me vesti como a Laura, a esposa dele, e a gente dançou juntos a luz do luar ...eu dei a ele preciosos instantes de alegria como dei a você...
Ele falava em meio aos meus gritos de desespero. Eu não consegui me controlar diante de tanta crueldade.
—– Ella, não gosto que chore, pare por favor — Ele ironizou, franzindo as sobrancelhas pra simular tristeza e depois sorriu.
Olhei para ele com os olhos cobertos de lágrimas e o coração cheio de dor.
—– Como pôde?
—– Eu precisava estar perto de você , e a casa dele era a única que dava pra ver a janela do seu quarto — Ele falou como se fosse uma coisa normal — Eu não podia simplesmente bater em sua porta, seria estranho demais, então eu fiz você me notar...mas eu não pensei que eu fosse me interessar tanto pela sua melancolia exacerbada...você foi além das minhas expectativas...cara você estava mais fudida do que eu...
Ele riu e sua risada fez meu corpo estremecer.
—– Seu doente — Levantei furiosa e joguei água no seu rosto, mas na verdade eu queria jogar mesmo era o copo. Você é um monstro.
Ele fechou os olhos e passou a língua pelos lábios, depois olhou pra mim, e seus olhos escureceram.
—– Não, o seu marido que é um monstro — Ele se exaltou de repente.
—– Ele não é...
—– Eu te dei amor, Ella, te dei alegria, sua vida era um martírio até eu chegar... eu tentei te afastar dele, eu tentei, mas você, você não queria, você não queria..eu queria te levar pra longe.
—– Pra você me matar.
—– Pra te fazer parar de sofrer, eu iria te fazer muito feliz, eu iria deixar seu corpo estendido sobre a cama, como uma boneca de porcelana...sem nenhum arranhão, odeio marcas, marcas deixam as pessoas feias...e você é linda, como uma flor em um jardim desmanchado, uma flor que não pode ser arrancada...
Tampei os ouvidos, ele estava falando, mas parecia que estava gritando.
Era insuportável escutá-lo.
Então eu gritei afim de cessar as suas palavras aceleradas.
Ele se encolheu e agarrou a cabeça em um gesto de nervosismo.
—– Você sabe o que é o amor, Thomas?
—– Sim, o amor é o sentimento mais genuíno que se pode ter por alguém, é algo que eu gostaria de sentir...parece lindo...
—– Mas não sente, você não sente nada — Berrei — Você imita o amor.
Essas palavras o intimidaram de certa forma que o seu corpo reagiu como um animal ferido.
Mas logo a maldade voltou para os seus olhos.
—– Como pode ama-lo? ele te estuprou.
Foi a minha vez de ficar desconfortável, senti uma avalanche de emoções invadir meu corpo.
—– Não — Suspirei
—– Sim, eu vi.
Como ele pode ter visto. Eu pensei que essa lembrança tinha se apagado da minha cabeça até ele me fazer relembrar.
—– Eu estava lá, Ella, quando aquele animal subiu em cima de você, tomado pelos delírios de um sonho louco, ele estava com os olhos fechados...ele não queria ver você...ele não pediu pra você se virar, Ella? Você não olhou para a parede e viu uma sombra crescer em cima de você e te cobrir, e depois dor e mais dor...e você quis respirar e não podia...você era pequena.. e aquela sombra te esmagava.
Sua linguagem corporal mudou drasticamente.
—– Esta falando de mim ou de você?
Isso o deixou nervoso e o nojo era visível no seu rosto.
—– Deve ser por isso que não me matou, porque ficou obcecado com o fato da minha história se parecer com a sua, o homem grande e mal que oprimiu a vítima indefesa.
Ele começou a piscar os olhos, em uma espécie de tique nervoso repentino.
—– Exatamente — Ele suspirou e seus olhos se encheram, assim como os meus.
—– Quem fez isso com você? Quem te machucou a ponto de te deixar em coma? — Perguntei, avaliando os seus ferimentos.
—– Foi você.
Olhei para ele completamente confusa e horrorizada.
—– Eu?
—– Sim, você não se lembra porque teve um surto psicótico, você disse que me faria desaparecer para que o seu marido não descobrisse o nosso caso...
Gargalhei nervosa, mas logo fechei a expressão.
—– Não, você não vai me fazer parecer louca aqui, você quem é o louco, não eu.
—– Depois daquela última conversa que tivemos, você me espancou, e depois chamou a ambulância, por isso eu estava desaparecido, eu fiquei no hospital esse tempo todo...tudo o que sucedeu depois foi parte da paranóia que você criou, porque ficou com medo que o seu marido descobrisse que você foi infiel...você me atacou com o taco de beisebol, e não me deu nem a chance de reagir...
Ele estava dizendo aquilo com tanta convicção, que parecia ser verdade. Mas eu me recuso acreditar que fiz isso, eu deveria tá muito drogada, pois não me lembro.
—– Olha, eu sinto muito por tudo o que passou — Peguei a bolsa com a mão trêmula e me levantei — Mas agora eu preciso ir, o meu marido está me esperando.
—– Não pode fugir de si mesma, Ella, é tão louca quanto eu, quanto o seu marido — Ele aumentou o tom das palavras — Se eu algum dia sair daqui pode ter certeza que vou te matar, e dessa vez eu não vou ter piedade... eu vou arrancar seus olhos e comê-los.
Abafei a sua voz, com o som da porta batendo, depois me escorei nela.
Meu corpo estava tremendo, meu coração estava acelerado.
Me sentia sufocada. Comecei a ofegar sem parar.
—– Ella?
A detetive se aproximou, mas eu não consegui vê-la claramente, pois os meus olhos estavam embasados pelas lágrimas.
Virei o rosto e olhei pra ela, sentindo minha cabeça travada, meu corpo inteiro estava rígido.
—– Eu fiz aquilo? — Perguntei, temendo sua resposta, eu sabia que ela estava assistindo a nossa conversa por algum monitor de câmera.
—– Claro que não, ele só estava tentando confundir a sua cabeça, pelo menos não encontramos nenhum vestígio seu na cena do crime.
—– Cena do crime?
—– Sim, nós recebemos uma ligação de uma testemunha que relatou ter visto Thomas, mas quando fomos até lá não achamos ninguém, era uma cabana que ficava no meio de uma floresta, procuramos mais a fundo e encontramos uma cova, havia vestígios de sangue dele no local, parece que assassino pensou que ele estivesse morto e o enterrou em uma cova rasa, mas Thomas de alguma forma conseguiu fugir e chegar até você.
Então não eram paranóias da minha cabeça, isso de fato aconteceu mesmo.
Suspirei aliviada. Eu não posso ser a louca da história.
—– Eu pensei que tivesse sido os irmãos do Vicent.
—– Os irmãos de Vicent pertenciam a uma gangue de justiceiros, mas não acho que se dariam o trabalho, eles enfiariam uma bala na cabeça dele assim que o visse.
—– Então quem foi?
—– Ainda estamos investigando, mas agora você precisa voltar pra casa.
—– Sim..obrigada.
—– Não se preocupe, você ficará bem — Ela tocou gentilmente o meu ombro, depois me conduziu até a saída.
Assim que virei pra ir embora, ela me chamou.
—– Se o seu marido for o assassino, vai me deixar prendê-lo?
Ela sabia que não tinha autoridade pra decidir isso, eu também, mas havia outro sentido pra essa pergunta.
—– Depende, vai garantir que ele fique preso pra sempre?
—– Vou fazer o possível.
—– Então sim — Assenti e ela me lançou um sorriso firme.
Dei de ombros, mas no meio do caminho, eu me virei novamente pra ela.
—– Só mais uma coisa, não prenda Thomas com aqueles psicopatas, não permita que machuquem ele na cadeia.
Ela estranhou o meu pedido. Mas apesar de tudo que aconteceu, eu sinto uma consideração inexplicável por ele e não há outro jeito de demonstrar se não assim.
—– Vou ver o que eu posso fazer.
Alguém sequestrou Thomas, o espancou e depois o enterrou vivo em uma cova rasa.
Mas não foi o meu marido.
Caleb jamais faria isso, pra isso ele teria que saber de toda a verdade. Que eu enfiei outro homem em casa, e coloquei pra dormir na nossa cama.
Caleb suporta tudo menos isso.
Ele poderia até feito algum assim, mas não acho que manteria isso em segredo só pra me agradar, bancar o frio e calculista não faz parte da sua personalidade.
Sabe quando um gato mata um rato e depois traz para sua dona apreciar seu feito.
Caleb é exatamente assim.
Ele fez questão que eu apreciasse Ed sufocando até a morte, exatamente por que ele queria que eu visse o que ele é capaz de fazer.
A não ser que ele tenha mudado e tenha feito tudo por mim. Talvez tivesse medo que eu odiasse outra vez, por isso começou a agir como um anjo comigo.
Bom, eu estou exausta e nesse momento tudo que eu quero é voltar pra casa e fingir que esse dia nunca aconteceu.
Eu nunca estive nessa delegacia, e quero fingir que essa conversa com Thomas é tudo paranóia da minha cabeça, que nunca ocorreu.
Quero me lembrar dele como um anjo que apareceu na minha vida e cuidou de mim.
Quero chegar em casa e encontrar o meu marido, e dizer pra ele que acabou, que agora podemos ser felizes juntos, e ninguém mais vai nos impedir.
Amém!
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