31 de outubro de 2017
Viver é como jogar dados. A pessoa lança os objetos no ar, mas não pode prever os números que aparecerão, o resultado que virá. Mesmo jogando os dados muitas vezes, não há garantias de que o jogador obtenha o valor esperado.
Jean jogou, por 24 anos, os dados da vida, esperando que não fosse encontrar uma pessoa específica. A cada ano, ele arremessava a sorte para o alto e esperava que ela voltasse com o resultado desejado, com o resultado que não causaria problemas para ele, para Amelia, para a própria Luna. Ele observava os dados, prestava atenção, fazia até uma oração enquanto os via cair diante de si.
Nesse dia, porém, ele esqueceu de olhar. Na verdade, não importava mais que resultado os dados trariam. Não havia mais um alguém que precisava proteger. Seu jogo tinha acabado, porque o jogo de outra pessoa tinha acabado também. A pior parte era não saber quais tinham sido os resultados da aposta dela, que números ela tinha esperado obter.
Durante 24 anos, Jean apenas conversou com Amelia por telefone, por cartas — eletrônicas ou não. Falavam sobre muitas coisas: a loja dela, sua saúde, suas expectativas quanto aos encontros anuais deles; porém nunca falavam sobre suas metas, seus desejos, principalmente porque ele sabia que todos eles giravam em torno de Luna, o único assunto proibido.
Ele voou por diversos continentes, viveu em muitas cidades, mas sempre retornava para Nova Orleans no Halloween — e em muitos outros dias do ano se contasse os seus pensamentos sobre sua amiga. No último ano, sua mente ficou muito mais tempo focada no que ocorria na cidade, pois percebeu que Amelia estava cada vez mais frágil, com a idade tomando toda sua vitalidade. Jean sabia que era questão de tempo.
Arrependeu-se, pela segunda vez, de uma promessa que fizera. Ele queria estar ao lado dela naquele momento, queria poder se despedir com um abraço. Por muitos anos, ela foi sua melhor e única amiga e ele nem podia encontrá-la antes de partir.
Quando, uma semana antes da data em que encontraria Amelia, recebeu a ligação do advogado da amiga, Jean não impediu que as lágrimas corressem por suas bochechas. Foi a primeira vez depois de sua morte, ele nem sabia que poderia chorar sendo apenas um espírito em estado sólido.
O homem no outro lado da linha foi quem lhe deu a notícia de que Amelia tinha falecido durante a noite — segundo os médicos, sem sentir dor alguma, apenas entrando em um sono eterno. A tristeza consumiu Jean, mas ele também se sentiu aliviado por ter dito, ao telefone antes de ela se deitar, que a amava e que sentiria sempre sua falta quando ela estivesse longe. De certa forma, ele tinha conseguido se despedir.
Foi a pior semana da pós-vida de Jean, não só porque ele tinha perdido sua melhor amiga, mas também porque ele tinha perdido a única pessoa que o ajudava a manter-se "vivo". Ele ainda não tinha digerido o fato de que não receberia mais uma ligação ou uma mensagem de Amelia, ou de que estava voltando para Nova Orleans para receber o que ela lhe deixara em testamento.
Por isso, não se importou de tomar cuidado para não encontrar com Helena ou sua filha. Ele nem se lembrou da existência delas ou de sua promessa quando foi até o escritório do advogado para receber uma carta e um baú que Amelia tinha deixado para ele. Jean não pensou nas descendentes da amiga quando parou na frente de sua antiga loja para deixar as lembranças invadirem sua mente.
Nesse momento, os dados da vida caíram no chão e, pela primeira vez em 24 anos, trouxeram um resultado diferente do que Jean tinha vivenciado até então.
— Não gosta da vitrine?
Jean se virou na direção da voz aveludada que o surpreendeu em seu estado de tristeza. A mulher ao seu lado não olhava para ele, mas sim para a vitrine que ele estivera observando. Os cabelos negros soltos em ondas sobre os ombros delgados escondiam o rosto da jovem adulta, exceto seu nariz curto e arrebitado.
— Eu não queria mudar, mas fui obrigada por uma promessa tola — ela continuou falando, mas finalmente se virou de frente para ele quando perguntou: — Está mesmo tão ruim assim?
Jean reconheceu os olhos castanhos e inspirou profunda e lentamente. Quando os viu pela primeira vez, ainda estavam envoltos por uma pele enrugada de bebê e não focavam em nada ao seu redor. Agora, no entanto, as orbes escuras estavam concentradas no rosto dele e a pele em volta era lisa e resplandecente.
Lembrou-se, naquele instante, o motivo de não estar ao lado de Amelia quando ela faleceu e não conseguiu cumprimentar a mulher na sua frente, muito menos responder-lhe a pergunta. Apenas ficou observando as diferenças entre sua figura atual e a bebê que conhecera.
— Também tem algo errado com meu rosto? — Ela levou as mãos à cabeça. — Está tudo dando errado hoje. — Voltou a concentrar os olhos nos de Jean e sorriu levemente, demonstrando uma certa volatilidade de sentimentos. — Exceto encontrar você, é claro.
A surpresa tomou-o por completo, mas apenas demonstrou seu sobressalto com uma sobrancelha levantada.
— Ela me falou sobre você — a jovem esclareceu. — Te descreveu tão bem que eu podia te imaginar na minha frente se me concentrasse um pouco.
— Amelia falou sobre mim? — Sua voz saiu mais rouca do que queria. Talvez o reencontro inusitado tivesse mexido com ele mais do que poderia imaginar.
— Falou — ela riu —, mesmo que minha mãe tivesse tentado impedir.
— Sabe quem sou — não foi uma pergunta.
— Você é Jean Baptiste de Noyan — ela respondeu mesmo assim. — Eu sou Luna, prazer em conhecê-lo.
Quando ela estendeu a mão em sua direção, Jean sentiu o impulso de se afastar. Durante muitos anos, seu maior objetivo era evitar a presença da neta de Amelia. No entanto, muita coisa tinha mudado em uma semana.
— Já nos conhecemos — ele constatou. Não se afastou, mas também não apertou sua mão. — Você herdou a loja? — mudou de assunto de propósito.
Luna riu enquanto abaixava a mão, não se sentindo ofendida pela recusa do homem à sua frente. Sua avó havia lhe contado muitas coisas sobre ele, principalmente sobre a promessa que fizera no dia que se conheceram há muitos anos. Também lhe contara que ele voltaria e que seria sua função mantê-lo ali.
— Quer ver como ficou? — ela perguntou e não esperou uma resposta para se virar e entrar na loja. Jean não teve outra escolha a não ser segui-la.
Apenas ouvir o sino que tocava para indicar a entrada de alguém no ambiente já despertava diversas lembranças em Jean, fossem boas ou ruins. Olhar para o lugar, porém, não lhe trouxe muitas coisas à memória como deveria ter feito.
A loja não se parecia mais com o recanto de uma bruxa, daqueles que se veem nos filmes, com caldeirões, ervas e velas penduradas por todo o lugar. Quando Amelia cuidava da loja, Jean sentia como se viajasse no tempo ao entrar ali, pois tudo lembrava muito a casa de Catherine quando ele a visitava para buscar a poção que o faria continuar existindo como um ser de carne e osso. O lugar também costumava ser levemente escuro, mesmo durante o dia, dando a impressão de que anoitecia toda vez que ele entrava ali.
Agora, não havia mais bagunça. Jean se sentia como em qualquer outra loja do século XXI, com tudo arrumado, etiquetado e devidamente enfileirado — até mesmo as ervas estavam dispostas em vasos pequenos, apenas para visualização do cliente. O que mais impressionou Jean foram os frascos do poção que estavam dispostos em duas prateleiras altas, quase como se fossem perfumes em uma boutique.
Jean estava muito concentrado em uma das estantes, observando que, talvez, aqueles frascos fossem mesmo perfumes, quando Luna interrompeu seus pensamentos:
— Está diferente demais, não é? Eu sabia que não devia ter mexido em nada, a loja funcionava bem do jeito que estava.
— Por que mudou? — ele continuou olhando para os frascos na estante, mas estava muito mais consciente da mulher ao seu lado agora que não estava mais pensando no passado.
— Eu sempre fui organizada e sempre gostei das coisas mais clean. Vovó Amelia disse que, quando eu herdasse a loja, deveria deixá-la do jeito que eu gosto. Tentei argumentar e dizer que isso mudaria completamente a essência do lugar, mas ela me fez prometer que faria isso, dizendo que a essência da loja seguiria sempre a essência de seu dono. — Ela olhou ao redor e fez uma careta. — Não imaginei que eu fosse tão diferente dela assim.
— O que é aquilo? — Ele apontou para a estante que observava. Ainda não estava pronto para falar sobre como ela era diferente de Amelia, em mais sentidos do que ela imaginava.
— São perfumes — ela falou, acabando com suas dúvidas. — Quer experimentar? Fui eu mesma que fiz.
Dessa vez, Jean não conseguiu mais evitar olhar para ela, mas não perguntou o que veio em sua mente, nem respondeu sua pergunta. Jean simplesmente a observou enquanto pensava.
O que Amelia tinha dito a ela? Quantos segredos dele sua amiga tinha contado? Era óbvio que Amelia não tinha lhe falado sobre sua restrição, sobre o único dos cinco sentidos que ele tinha perdido quando decidiu tomar a poção de Catherine. O que mais ela não tinha lhe contado?
Quem ela era? Não era como Amelia, que falava sem parar como se soubesse de tudo, como se já soubesse das respostas ou não se importasse com elas. Também não era como Catherine, calada e observadora, estando ali somente por obrigação. Muito menos se parecia com Helena, que tentava tomar toda a atenção de Jean para si.
Após 24 anos, Jean finalmente se permitiu ficar curioso.
— Tem razão — ele finalmente falou —, está muito diferente de quando Amelia estava aqui.
— Ah, eu sabia! — Ela pareceu se desesperar de novo, passando as mãos pelos fios escuros. — O que eu faço agora? Isso vai espantar os clientes de vovó.
— Eu não chegaria a tanto. — Jean revirou os olhos, mas teve que segurar o sorriso. Estava achando divertido o drama da mulher.
— Vai continuar comprando aqui então?
O sorriso que surgiu no rosto dela foi mais deslumbrante do que todos que Jean já tinha visto até então. Por ser um fantasma que se sentia mais vivo na noite do Halloween, com o véu entre os dois mundos mais fino, Jean tinha visto muitos sorrisos satisfeitos naquele dia específico do ano, principalmente das crianças quando olhavam para suas cestas de doces e encontravam algum de que gostavam mais. O sorriso de Luna era parecido com aquele, ela estava esperando ansiosamente que ele respondesse que sim.
Mais uma vez, Jean sentiu sua curiosidade aumentar a ponto de ebulição. Luna sabia sobre sua mãe querer mantê-la longe dele, ela sabia que ele a tinha evitado por toda sua vida, mesmo assim ela queria que ele voltasse, queria vê-lo de novo.
— Disse que Amelia falou sobre mim — não foi uma pergunta, mas Luna assentiu mesmo assim. — Ela contou sobre o que eu sou, porque eu volto todos os anos em um dia específico. — Mais uma vez ela concordou com um aceno de cabeça. — Ela também deve ter contado que eu jamais obrigaria alguém a continuar com essa... tradição.
— Vovó Amelia disse que você recusaria — Luna respondeu, ainda sorrindo —, mas não há nenhuma obrigação. Vovó me ensinou o feitiço, eu mesma já preparei sua poção algumas vezes. Sei que dá essa escolha a todas as mulheres da família, mas não precisa dá-la a mim, pois já aceitei... há muito tempo.
— Por quê?
— Porque é o que dizem as estrelas.
— Como?
— Vovó Amelia dizia que não temos opção, como você gostaria de acreditar. Os deuses escolheram nossos destinos, então devemos apenas segui-lo.
— Você não parece alguém que acredita nisso.
— Deve ser porque não acredito.
— Então por que...
— Os deuses nos mostram os caminhos, apenas cabe a nós escolher segui-los. De todos os caminhos que eles me mostraram nas estrelas, escolhi esse.
Jean sabia que tinha muito mais escondido naquelas palavras, naquela decisão. Ele também sentia que aquele era um caminho perigoso, e não apenas por causa de Helena, que não gostaria nada quando descobrisse, mas também por algo que podia observar nos olhos de Luna.
Ela lhe falou de estrelas, e ele podia vê-las nos olhos à sua frente. Talvez ele se arrependesse, mas não quis pensar nisso naquele momento. Nunca, em toda sua vida, Jean sentiu-se tão impelido a descobrir o que era aquela energia que parecia atraí-lo ao desconhecido. Costumava ser um homem prático, que pesava todos os prós e os contras para tomar a decisão que causasse menos problemas se estivesse errada. Todavia, não conseguia fazer tantas conjecturas enquanto olhava na imensidão profunda que eram seus olhos escuros.
Amelia sempre lhe dissera que não havia coincidências quando se tratava de bruxas, então encontrar Luna justamente naquele momento era algo que chamariam de destino.
Como tinha feito durante 24 anos, Jean decidiu jogar os dados de novo. Só que, dessa vez, ele não olharia de propósito, ele não esperaria resultado nenhum. Pela primeira vez na vida — e na pós-vida —, Jean gostou da ideia de ser surpreendido.
— Posso voltar à noite, então, para pegar minha encomenda?
Luna mal conseguiu segurar a empolgação, tendo que respirar fundo para não pular de alegria como costumava fazer quando ganhava um presente. Uma alegria desmedida poderia espantá-lo, e isso era a última coisa que ela queria que acontecesse. Esperou a vida inteira por aquilo, pelo momento em que ela mesma seria a responsável por trazer Jean de volta à cidade que amava.
Escutou tantas histórias, sua avó lhe contou muito sobre o fantasma que podia ajudar quem precisava ajudar. Apesar de saber o que havia acontecido com ele, sua avó nunca lhe contara o porquê, nem entrara realmente em detalhes. Aquilo fez com que ela já fosse fascinada por ele mesmo antes de realmente encontrá-lo.
Tinha medo de que ele não aparecesse após a morte de sua avó, achando que a loja havia fechado e que mais ninguém na família poderia ou quereria ajudá-lo. Quando o viu parado observando a vitrine da loja, seu coração pulou uma batida e ela soube que aquele era um dos momentos mais importantes de sua vida.
Foi muito difícil não fazer a pergunta logo de cara. Ela sabia, claro, que ele não tinha outra opção onde conseguir o feitiço e a poção, mas sentia que ele voltaria a ser apenas um espírito invisível a olhos comuns se ela não estivesse ali para ele. Como ela queria estar ali para ele.
Por isso, ao ouvi-lo perguntar se poderia voltar à noite, Luna não pensou duas vezes antes de dizer sim... e ignorar o fato de que tudo já estava pronto antes mesmo dele aparecer.
Quando ouviu o sino tocar, indicando que alguém estava entrando na sua loja, ela quis levantar a cabeça para olhar, mas segurou o entusiasmo até ver a névoa passar pelo piso, tomando todo o chão do lugar. Sua avó lhe falara sobre isso e ela também tinha visto mais cedo, mas ela queria saber como seria a sensação de saber que era ele sem nem mesmo olhar.
— Bem, estou aqui de novo.
Abrindo seu sorriso mais alegre, Luna olhou nos olhos castanhos de Jean e se inclinou um pouco sobre o balcão que os separava.
— Quase achei que não viria.
— Eu cumpro minhas promessas.
— Foi o que me disseram.
*2593 palavras
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