30 de novembro de 2017
Em memória de Amelia La Frénière, amada esposa, mãe e avó.
As palavras incrustadas na lápide pareciam tão frias e imóveis como a pedra que segurava-as. Jean estava há meia hora observando as letras que não falavam nem metade do que Amelia fora. Sim, amada esposa, mãe e avó, mas também amiga fiel, mulher de fibra, alma bondosa. Quando o vento soprou os cabelos rebeldes do fantasma e as árvores ao redor do túmulo, Jean pensou que a brisa suave contava mais sobre Amelia do que as palavras escolhidas para marcar o local de descanso de seu corpo.
Os olhos dele vagaram pelo monumento antigo que abrigava os restos de muitas mulheres da família La Frénière. Fora ele quem escolhera o local quando o cemitério Lafayette foi inaugurado. Jean queria que todas as bondosas damas que o ajudaram tivessem um espaço para que suas famílias pudessem chorar suas perdas. Claro, ele nunca tinha impedido que outras pessoas da família fossem enterradas ali também.
Para dizer a verdade, desde que comprara o lote, Jean nunca mais tinha voltado àquele lugar. Deixou que a família enterrasse seus entes queridos às suas custas, pois ele fazia questão de pagar por todos os funerais e enterros, mas ele mesmo nunca tinha ido até ali novamente. Eram muitas lembranças atreladas aos nomes gravados nas pedras.
No entanto, Jean sempre soube, desde que se tornara amigo de Amelia, que iria visitá-la ali, independente da quantidade de lembranças que pudesse despertar. Mesmo assim, agora que estava ali, ele ainda se sentia sozinho.
Mais de um mês havia se passado desde a morte de sua melhor amiga, mas Jean continuava na cidade. Ele havia reaberto sua casa, contratado faxineiras e um cozinheiro, assim como uma motorista e uma paisagista para cuidar da renovação do seu jardim há muito abandonado. Se parasse para pensar, Jean não saberia dizer exatamente o que o manteve na cidade. Ele sabia que acabaria indo visitar o túmulo de Amelia para conversar com ela, mas isso não significava que precisava voltar a morar ali.
Lembrou-se de Luna, então, e não conseguiu deixar de esboçar um pequeno sorriso.
— Era isso o que querias? — ele perguntou por fim, como se estivesse conversando com sua amiga, e não com um pedaço de pedra. — Voltei e a reencontrei, e aceitei que ela continuasse com o feitiço. Foi proposital?
Jean não precisava que Amelia estivesse ali para imaginar qual seria sua resposta. A mulher tinha sido astuta, qualidade que talvez ele tenha lhe ensinado, e sabia como manipular o mundo para ter o que queria. Pelo pouco que havia conversado com a neta da amiga, Jean sabia que Amelia a tinha criado para seguir ao lado dele como ela fizera, mantendo-o no mundo dos vivos para cumprir a promessa de eternidade.
— Nunca conversamos sobre ela, como prometi a Helena, mas sempre me perguntei como ela seria — ele revelou enquanto se escorava na pedra, como se estivesse se sentando ao lado da amiga para manter a conversa. — Preciso confessar que temi que ela se tornasse como a mãe. Amargurada, intransigente, mesquinha. Nada parecida com a Helena que vi crescer sob seu teto.
Ele olhou ao redor, para os caminhos de cascalho que levavam aos outros túmulos. O cemitério estava vazio, e Jean se sentiu como a assombração que era. O único fantasma vagando pela terra, enchendo os vivos de momentos arrepiantes e as bruxas de visões inconvenientes.
Suspirou, querendo ser capaz de esquecer como chegou até ali.
— Sinto falta dela também — voltou a falar —, da Helena que você criou, que me apresentava suas bonecas, que reclamava das matérias chatas da escola, que queria conhecer o mundo em um balão. Não gostei que ela tivesse crescido, talvez por isso eu nunca tivesse olhado para ela de outra forma. Ao mesmo tempo, ela era minha sobrinha, minha família, eu não poderia vê-la como mulher.
Sentiu o vento outra vez e desejou que pudesse sentir os cheiros que ele trazia consigo. Sorriu ao lembrar de como Amelia reclamava do cheiro de cemitério toda vez que visitava o túmulo da avó — aquele mesmo em que ela estava enterrada —, dizendo que as flores enfeitando as lápides não eram suficientes para disfarçar o cheiro da morte.
Jean não sabia qual era o cheiro da morte. Pelo menos, não sabia mais. Há muito tempo não sentia cheiro algum, privado para a eternidade daquele sentido tão inebriante. Seria certo que perdesse o sorriso ao pensar nesse tom mórbido, mas o pequeno sorriso apenas aumentou com a nova lembrança.
— Eu vi os frascos de perfume... Aliás, vi a renovação da loja. Sou obrigado a dizer que agora parece uma loja da modernidade. Talvez eu goste mais do jeito que está, já que não é tão difícil de circular pelo lugar agora. Não estás chateada, estás? Luna disse que a fizeste prometer que mudaria. Acho que acertaste, combina muito mais com ela daquele jeito.
Quebrou o caule de uma das rosas em um dos vasos sobre o túmulo da família La Frénière. Rolava-o entre os dedos enquanto continuava o monólogo:
— Luna disse que criou os perfumes. Tenho passado na frente da loja e visto que eles são um sucesso. Ela fará uma fortuna com suas criações. — Fez uma pausa quando ouviu passos sobre o cascalho.
Olhou naquela direção e a viu. O assunto de sua conversa com Amelia estava caminhando em sua direção, com um sorriso nos lábios finos e desenhados. Jean sentia que precisava respirar fundo toda vez que via aquele sorriso, como se não esperasse encontrá-lo ali. Confessou a Amelia que tinha medo que Luna se tornasse como a mãe, por isso ainda tinha dificuldade de ver nela a moça alegre que Helena tinha deixado de ser.
O vento soprou pela terceira vez naquele dia, desta vez vindo de trás de Luna e chegando até Jean com a promessa de um odor delicado e vibrante que transformaria o cemitério em um verdadeiro jardim.
— Daria tudo para sentir seu aroma — foi seu último sussurro para sua amiga naquele dia, pois Luna se aproximou logo em seguida, quebrando qualquer espécie de confissão que ele pudesse continuar fazendo.
— Pensei que não teria ninguém aqui — a jovem falou, interrompendo os pensamentos de Jean. — Costumo vir toda semana nesse horário e o lugar fica vazio.
Assim como na primeira vez, Jean sentiu dificuldade de se comunicar com ela. Não que não quisesse cumprimentá-la ou que fosse realmente difícil embarcar nos assuntos diversos que ela puxava, mas Jean gostava de observá-la, de ver como os fios pretos escorriam sobre seus ombros delgados, como o lábio superior se escondia levemente quando ela abria seu sorriso alegre e como ela levantava levemente o queixo quando tinha que olhá-lo nos olhos.
— É a primeira vez que vem aqui desde que aconteceu?
— Aconteceu o quê? — Na verdade, era a primeira vez que Jean se perdia em uma conversa.
— Desde a morte de vovó Amelia — Luna respondeu, rindo levemente da confusão dele. — Quero saber se é a primeira vez que a visita.
— Ah, sim. — Jean se afastou da pedra onde estava escorado, parando ao lado da neta de Amelia. — Tem muitos anos desde que vim aqui pela última vez.
— Quantas delas você visitou? — perguntou, apontando para os nomes gravados na lápide.
— Uma.
— Só uma? Só minha avó? Por quê?
— É uma boa pergunta. Talvez eu não goste de encarar a morte? Pode ter sido também porque aprendi rapidamente a continuar sem elas.
— Não sente falta de ninguém? Nunca sentiu até minha avó?
— Sinto saudade de todas elas, de todos eles. Fiz muitos amigos, conheci muita gente, cada um deles marcou minha existência de alguma forma. Eu só aprendi que não há motivos para lamentar o passado. O mundo continua girando depois que eles se vão.
Jean não demorou para perceber o silêncio que os envolveu depois de sua resposta. Franziu o cenho, pensando que talvez tivesse sido muito duro em suas palavras, mas ele não estava acostumado a mentir. Esconder a verdade, maquiar as palavras, enaltecer as qualidades em detrimento dos defeitos, tudo isso era fácil, ele sempre tinha sido um grande comerciante. No entanto, mentir era enganar o cliente, então ele não gostava de fazê-lo.
Virou-se para ver a reação de Luna e surpreendeu-se com os olhos dela concentrados em seu rosto. Ela o analisava abertamente, sem pensar que seu escrutínio poderia deixá-lo desconfortável. O que mais o intrigava, porém, era que ele não sentia incômodo nenhum. Ter os olhos castanho-escuros focados em si não era nem um pouco ruim.
— É um pensamento triste — ela finalmente falou, voltando a olhar para a lápide de sua avó. — É um pensamento solitário.
— Sou um homem solitário.
— Mesmo tendo muitos amigos?
— Vou ficar sempre, enquanto eles se vão. Não importa quantos amigos eu tenha, sempre acabarei sozinho.
— Mas você não fica perto deles, não é? — Jean franziu o cenho de novo, surpreso por ela saber sobre aquilo. — Vovó Amelia disse que você não fica em um lugar por muito tempo e, mesmo que faça amizade com as pessoas de quem cuida, você não se abre de verdade e vai embora com facilidade.
— Acho que sua avó falou demais.
— Ela sempre falava. — Os dois riram, porque era verdade.
Ficaram em silêncio de novo, só menos tenso dessa vez. Amelia era um assunto que fazia bem aos dois e isso era óbvio. Ambos sentiam saudades da mulher espirituosa e gentil.
Luna tinha ido ao cemitério toda semana, no mesmo dia e horário, durante todo o tempo desde que sua avó morrera. De algum modo, ela sabia que acabaria encontrando o fantasma, pois nunca perdera a esperança.
O fato de vê-lo passar pela vitrine da loja algumas vezes durante a tarde era a prova de que ela precisava para saber que ele continuava na cidade. Desejou, todas as vezes, que ele entrasse e conversasse com ela. Diferente da avó, Luna não costumava abordar as pessoas na rua, nem se intrometer em seus assuntos sem ser chamada. Gostava de conversar tanto quanto Amelia, mas não gostava de ser invasiva.
No entanto, só de saber que Jean não tinha partido tão rapidamente quanto tinha chegado já a deixava muito feliz. Depois de todas as histórias que ouvira da avó e de tê-lo encontrado no Halloween, Luna queria saber cada vez mais sobre aquele homem.
Sentiu uma leve tristeza quando o ouviu falar sobre sua solidão, sobre como era normal e fácil para ele esconder os sentimentos no canto de sua mente. Com certeza, ele tentava não sofrer com todas as perdas, já que estava sempre vendo as pessoas de quem gostava partirem. Luna queria mudar aquilo, como Amelia mudou. Melhor, como Amelia não tinha conseguido mudar.
Claro que ela sabia que a avó tinha sido uma amiga diferente, que Jean deixou de lado algumas tradições para manter-se perto da mulher, porém Luna queria que ele quebrasse todas as tradições com ela. Naquele momento, enquanto estavam parados de frente para o túmulo de sua avó, Luna desejou que Jean não tentasse esquecê-la, que ele não fosse embora, mesmo que as pessoas achassem estranho o fato de ele nunca envelhecer.
Ela seria capaz de fazer aquilo? Luna se perguntava se sua personalidade era forte o suficiente para mostrar a Jean que abrir o coração era a melhor maneira de aguentar tantos anos de solidão. E, se ele não se abrisse sempre, se ele esquecesse dos outros, Luna queria saber que ele nunca a esqueceria, como ela tinha certeza de que jamais esqueceria dele.
Não era só porque tinha crescido ouvindo falar do fantasma que prometeu ficar longe dela para que sua avó e sua mãe fossem felizes em sua companhia, mas também porque queria fazer ela mesma a diferença. Assim como Jean tinha sido um acalento para Joseph Villére, Luna queria ser um acalento para Jean, alguém que o faria viver — ou partir — em paz, porque pensaria nela como alguém que cuidaria de tudo o que amava, fosse em vida ou na morte.
— Quanto tempo pretende ficar na cidade? — Ela não conseguiu mais se segurar.
Jean suspirou antes de responder que não sabia.
Se fosse outra pessoa, ela poderia ter deixado que ele decidisse. Se não se lembrasse dos conselhos da avó, ela poderia deixá-lo ir embora. Se tivesse alguma vez ouvido o que sua mãe reclamava sobre ele, ela poderia vê-lo partir. Todavia, ela era Luna, nem tão fechada quanto a mãe, nem tão extrovertida como a avó, simplesmente ela mesma.
— Fica até o Natal? — pediu, com toda a coragem que nem sabia que tinha.
Jean virou-se para ela e inclinou a cabeça, obviamente curioso com sua pergunta.
— Não até o Natal, mas até o Yule — ela continuou, arrastando as mãos na calça jeans em sinal de nervosismo. Os olhos de Jean acompanharam o movimento de suas mãos, fazendo Luna respirar fundo para controlar o coração que acelerou em seu peito. — Eu queria... Quero te mostrar uma coisa.
— Mostrar-me o quê? — Jean voltou a olhar nos olhos dela.
— Vovó Amelia disse que você conhece pouco sobre nossos rituais, mesmo tendo convivido com bruxas durante tantos anos. Quero te mostrar como é o nosso quase Natal. — Ela sorriu, mesmo que não se sentisse tão confiante como quando fez a pergunta que iniciou aquela conversa.
Jean ficou observando seu rosto, olhando atentamente enquanto ela sorria e perdia o sorriso mais de uma vez em questão de segundos. O vento soprou-lhe os cabelos para a frente do rosto, deixando Luna um tanto quanto exasperada por parecer desastrada mesmo que não fosse sua culpa. Quando Jean esticou o braço, porém, para colocar a mecha de cabelo atrás de sua orelha, Luna se arrepiou.
O toque não durou mais que dez segundos, mas foi o suficiente para ela sentir a textura de sua pele. Veludo, levemente frio, como a névoa que o acompanhava por onde ia.
— Preciso levar um presente? — ele perguntou, levando a mão que a tocou para as costas e desviando os olhos de seu cabelo para seus olhos muito abertos de surpresa.
— N-não — ela gaguejou enquanto engolia em seco. — Não é obrigatória a troca de presentes.
— Mas eu posso levar se quiser?
— Pode, claro. — Ela sorriu, sentindo o calor subir para suas bochechas morenas. — Pode também esperar até o Natal de verdade e me presentear nessa ocasião.
— Estás tentando manter-me na cidade?
— Está funcionando?
— Adorarei saber mais sobre seus rituais — ele mudou de assunto, abrindo ele mesmo um sorriso misterioso —, e ver-te no Natal também.
— Então vai ficar?
Ele assentiu.
Luna não quis insistir mais, nem convidá-lo — ainda — a ficar mais tempo. Ela percebeu que ele estava intrigado, que queria entendê-la, e ela usaria aquilo a seu favor, como Amelia tinha lhe ensinado.
*2463 palavras
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