30 de abril de 1993
A luz da fogueira formava uma espécie de halo em volta da casa. Há muitos anos, Jean não passeava por aquelas ruas, então havia se esquecido como eram bonitas as construções daquele bairro.
O franco-americano sorriu quando uma senhora de 47 anos saiu pelo portão de ferro e correu em sua direção. Ela ainda mantinha muito da juventude, principalmente a leveza dos passos e o semblante sorridente.
Amelia La Frénière era sua amiga desde que ela tinha cinco anos. Foi um dos poucos aniversários que Jean compareceu naquela família, e só esteve presente porque já estava na cidade esperando a data de buscar sua poção. A aniversariante, porém, o conquistou de uma forma que ele não conseguiu mais parar de conversar com ela, fazendo com que sua volta à cidade nos anos que se seguiram fosse mais divertida e inspiradora.
Foi por causa de Amelia que Jean decidiu voltar a se estabelecer na cidade de Nova Orleans. Ela era sua melhor amiga, alguém com quem ele podia contar não apenas para fazer sua poção anual, mas também para compartilhar segredos e aspirações. Seu último amigo de verdade tinha morrido oitenta anos antes do nascimento de Amelia e a menina ajudou Jean, de diversas maneiras, a continuar vivendo.
Também era por causa de Amelia que ele estava ali, na rua onde ficava sua antiga casa, preservada por séculos por pessoas que ele nunca fizera questão de conhecer. Amelia o convidou para uma festa em celebração do Beltane, um dos Sabbats maiores das bruxas locais.
— Você veio — ela disse quando o alcançou, não se dando tempo de normalizar a respiração antes de segurar em seu braço e caminhar de volta com ele até a casa.
— Você me convidou.
— Pensei que não viesse depois do que aconteceu com Helena.
— Acho que sei separar algumas coisas.
Ela sorriu-lhe com cumplicidade. Se tinha alguém que sabia como Jean era capaz de separar as coisas, esse alguém era Amelia. Ele contava tudo para ela, estando ou não na cidade.
Nos anos desde os cinco anos de Amelia até ele decidir voltar a morar na cidade em 1988, os dois mantiveram contato por telefonemas e cartas (quando Amelia aprendeu a escrever), e também nos dias de outubro quando Jean ficava na cidade para esperar o Halloween e pegar sua poção. Com sua mente curiosa e sua língua afiada, Amelia fora capaz de retirar a maioria dos segredos de Jean.
Apenas ela sabia como ele tinha vivido todos os anos desde sua volta ao mundo dos vivos. Ele contou-lhe que, após tomar a poção que Catherine fizera para ele, Jean buscou um baú cheio de moedas que escondera no terreno de sua casa para estar sempre amparado se alguém resolvesse roubá-lo. Com o dinheiro, ele foi embora de Nova Orleans, como prometeu a ex-esposa, mas manteve contato com a família de Joseph através de cartas, onde assinava o nome de um dos parentes do amigo para que Louise não desconfiasse.
Amelia fora a única que ouvira sobre a felicidade que Jean sentiu quando conseguiu ajudar o filho de Joseph a retornar como governador de Louisiana, ganhando de volta o prestígio que o pai tinha perdido. Como prometeu ao amigo, Jean usou nomes falsos e assinaturas diversas para escrever cartas, memorandos e pedidos tanto para o filho de Joseph quanto para o governo espanhol e francês. Com muito empenho e sabedoria, ele soube guiar o jovem Jacques Phillippe Villeré ao seu destino.
Somente Amelia soubera da tristeza e desolação de Jean quando ele descobriu que continuaria preso a família Villeré por todas as gerações que viessem. Ele tinha feito tudo o que podia pela esposa e filhos de Joseph, mas, quando estes morreram, Jean não partiu como deveria, nem mesmo sentiu que sua missão tinha acabado. Além disso, o medo de ficar preso entre os dois mundos foi muito maior do que qualquer possibilidade de redenção.
Amelia foi a primeira a saber os nomes de todos os poucos amigos que Jean tivera na vida... e na morte. Ela ouvira sobre as perdas, as vidas que ele viu passarem diante de si, sem que pudesse acompanhá-las ao outro mundo.
Só Amelia sabia o quanto ele tinha aprendido a confiar no tempo para apagar as feridas e saudades. Muitos vieram e se foram, assim como muitos viriam e iriam, enquanto ele continuaria ali, perdendo tudo o que poderia prezar e querer. Em sua morte, Jean percebeu que continuava vivendo como em vida, juntando riquezas e pessoas, posses e saudades, sem nunca realmente se ligar a alguém. Até conhecer Amelia.
Quando chegasse a hora, Jean sabia que apenas Amelia deixaria um vazio enorme em sua vida eterna, como nenhum outro ou outra tinha deixado.
Ela não era sua amante, nunca fora. Ele a conhecia desde criança e jamais conseguiu vê-la como uma mulher. Até ali, naquele momento, ele ainda a via como a menina de 5 anos que arrancara dele a confissão de saudade de sua terra, de sua vida. Ela era como uma filha, alguém por quem ele daria a própria vida se ainda a tivesse. Por isso, tinha aceitado seu convite para a festa da fertilidade.
Segundo o que Amelia lhe explicou quando o convidou, o Beltane era um Sabbat celebrado ao redor de fogueiras em celebração ao casamento dos deuses, que representa a fertilidade dos animais e as colheitas do próximo ano. Amelia usou as palavras "é a festa do amor". Jean imaginou que esse era o motivo do Sabbat ser realizado na primavera.
Quando ela o convidou, Jean ficou com medo de aceitar, pois nesse ano também seria a data do casamento de Helena, filha de Amelia. O Beltane lhe parecia a data propícia para celebrar a união dos mortais, já que ele garantiria um estado de fertilidade para o casal, mesmo que o casal em questão já tivesse plantado a semente, como Helena e o noivo.
Só aceitou porque a senhora insistiu e Jean era incapaz de negar qualquer coisa à sua amiga, por mais desconfortável que pudesse se sentir, ou fazer outra pessoa se sentir. Se Amelia ficaria feliz com sua presença, todo o resto era aceitável. Além disso, ele também queria rever Helena, pois não a via desde que brigaram e ele sentia falta da menina que adotara como sobrinha.
Chegou ao quintal atrás do casarão de braço dado com Amelia, que sorria e brincava com ele como se ainda estivesse na flor da idade — provavelmente, ela também se sentia uma criança quando estava em sua companhia.
— Já está bem cheio — Jean comentou enquanto observava várias mulheres, homens e crianças preparando as mesas e os enfeites, alimentando com lenha as fogueiras ou correndo pelo enorme quintal em brincadeiras.
— É uma festa muito bonita — Amelia respondeu suspirando enquanto observava suas amigas prenderem fitas a um tronco posicionado perto do fogo, mas a uma distância segura para não queimar os tecidos. — Mas a maioria está aqui para os rituais de fertilidade.
— Rituais?
— Sim, muitos casais decidiram pedir aos deuses que os abençoassem com filhos neste ano. Diferente da minha filha insensata, eles farão uso certo da celebração.
Jean quase não conseguiu segurar o riso, bufando e escondendo a boca atrás da mão. Ele sabia que Amelia não tinha gostado de como Helena se entregou ao jovem que desposaria antes da celebração, principalmente por causa da data em que tudo ocorreu.
— Pode rir — Amelia reclamou, formando um biquinho de contrariedade com os lábios. — Eu devo ter sido uma péssima mãe, já que minha filha é uma perdida.
— Ora, por favor. És uma mãe excepcional.
Amelia soltou uma gargalhada sonora e apertou o braço de Jean antes que ele pudesse se afastar por causa do gesto.
— É tão bom quando me elogia, ainda mais com esse vocabulário tão chique.
— Não é chique, é correto.
— É, é, você nasceu com a gramática grudada no cérebro.
— Nem vou te responder. — Ele ignorou a outra gargalhada que Amelia soltou e apontou para o poste que ela tanto observava de esguelha. — O que é aquilo?
— É o Mastro de Beltane — Amelia respondeu quando conseguiu segurar a risada e, como sabia que o amigo perguntaria, continuou: — Prendemos nossas fitas nesse mastro com os nossos desejos para o ano e depois dançamos em volta do mastro entrelaçando-as, para traçar nossos destinos.
— Também fez um desejo? Por isso está vigiando o que as outras mulheres estão fazendo com as fitas?
— Sim, desejei algo muito importante.
— Posso saber?
— Nunca tivemos segredos, Jean. Por que teríamos agora? — Ela virou-se para ele com um sorriso sereno no rosto. — Desejo que minha filha não se desvie do destino da deusa mais do que já se desviou. Desejo que minha neta ou meu neto entendam o que significa ser uma La Frénière.
— E o que significa? Ficar presa a um fantasma que apenas trará desgraça a suas vidas?
— Não gosto quando fala assim. — A senhora perdeu o sorriso. — Não há nada de ruim em estar conectada a você. Além disso, você nunca exigiu de nenhuma de nós que seguíssemos os passos de Catherine. Sempre nos deu escolha, mesmo que isso custasse sua vida eterna.
— Nunca forçaria ninguém a nada.
— Sei disso, como Catherine também sabia, como todas as La Frénière que vieram depois dela. A única que não te compreende é a estúpida da minha filha.
— Tu brigaste com ela, Amelia? Sabes que não foi culpa dela, eu a fiz interpretar erroneamente meus sentimentos.
— Foi culpa dela, sim. — Amelia cruzou os braços e fez outra vez o bico de contrariedade que Jean conhecia tão bem. — E não venha com esse tom aristocrático para cima de mim como se pudesse mudar o que penso das burrices daquela garota.
— Helena é jovem...
— E pare de defendê-la! — ela gritou, atraindo a atenção de algumas pessoas ao redor, mas, quando Jean apertou os olhos e respirou fundo, Amelia bufou e jogou os braços para o alto, como quem pede desculpas. No entanto, rapidamente, apontou o dedo para o peito dele para continuar a discussão em um tom mais contido. — Qualquer pessoa podia ver que você não a amava, não como uma mulher. Ora, você a viu crescer. Veio mais vezes à cidade enquanto ela crescia do que em toda sua pós-vida.
— Isso é verdade.
— Se eu, que quase não te vi além dos encontros anuais, sei que sou vista como uma criança, imagina ela que recebeu um presente seu pessoalmente todos os anos? Helena foi burra, sim, e sua juventude não é desculpa. Ela sabia muito bem o que estava fazendo quando se entregou a Guilherme. Agora, ela escolheu o dia do casamento dos deuses para celebrar o próprio casamento, apenas para me fazer passar vergonha diante do coven.
— Ela não está fazendo isso por mal. É o festival do amor como você disse. Parece-me propício para um casamento.
— Sim, o casamento dos deuses, não dela. Mas não posso fazê-la mudar de ideia. Inclusive as outras bruxas aceitaram a celebração, mesmo sem gostarem muito, só porque é minha filha.
— O que...
A pergunta de Jean foi interrompida quando uma das senhoras que estava mexendo no mastro chamou a atenção de todos.
Era uma mulher corpulenta e baixinha, no auge de seus 50 anos, mas com um semblante alegre e convidativo que disfarçava sua idade a quem não a conhecia. Apresentou-se como Miranda e deu as boas-vindas à sua casa. Pelo que Jean pôde ouvir do discurso da mulher, aquele era um festival que muitas pessoas que não eram bruxas visitavam e observavam os rituais, alguns até participando, como os maridos das bruxas que fariam parte do ritual de fertilidade.
Depois de falar um pouco sobre o que significava aquela festa, a mulher que se proclamou anfitriã do evento por ter oferecido o quintal de sua casa fez uma breve apresentação do cronograma da noite. Para iniciar os rituais, Miranda e outras bruxas mais velhas abririam um círculo e agradeceriam aos deuses. Como Amelia estava nesse grupo, ela sorriu em despedida a Jean e foi correndo até as outras senhoras.
Jean não conseguiu deixar de sorrir ao vê-la se afastar. Como ele tinha dito, ela era uma mãe e uma mulher excepcional. A maneira como afastava rapidamente os pensamentos ruins e maldosos sempre que estava prestes a entrar em um círculo de magia ou praticar algum feitiço era fascinante. Jean lembrou-se de admirá-la como admirou Catherine há mais de duzentos anos; as duas pareciam receber um brilho diferente, encantador, quando estavam em seu ambiente natural.
Muito do que sabia sobre magia Jean tinha aprendido com Amelia. Claro, ele observara muitas descendentes de Catherine praticar algumas mágicas, principalmente quando aparecia na cidade para pegar sua poção, mas não acompanhou os ensinamentos de nenhuma delas, querendo sempre se manter afastado daquele mundo que lhe permitia viver ao mesmo tempo em que o mantinha preso em uma existência vazia e solitária.
Quando as mulheres acenderam incensos e começaram a circular entre os convidados, Jean fechou os olhos e respirou fundo para sentir o cheiro das ervas que elas queimavam. Foi inútil. Abriu os olhos e deixou os ombros caírem em desalento. Ele sabia que não sentiria cheiro algum.
Lembrou-se imediatamente das palavras de Catherine lhe dizendo que haveria alguma restrição quando ele voltasse a ter um corpo. Ela não soube lhe dizer que restrição seria, mas Jean descobriu assim que o feitiço se completou. Ele não tinha mais o olfato, não podia sentir cheiro algum. Percebeu aquilo rapidamente, pois se lembrava do cheiro de Catherine e esperou senti-lo quando ficou sólido na frente dela. Mas o cheiro de ervas frescas e limão que sempre a acompanhava dentro da casa deles não invadiu seus sentidos, muito menos o cheiro de qualquer coisa que tivesse em sua casa naquele dia.
Com o passar dos anos, Jean percebeu que, mesmo que estivesse ao lado de um corpo pútrido e fétido, ele não sentiria mal estar, pois o cheiro não o deixaria enjoado. Se a casa em que estivesse morando pegasse fogo, ele só saberia quando visse as chamas ou a fumaça, pois o cheiro de queimado jamais o alertaria para o perigo. Ainda que estivesse com a mulher mais cheirosa do mundo, ele não poderia elogiar seu perfume, pois não faria qualquer diferença em sua admiração pela dama.
Além de viver eternamente sozinho, Jean ainda vivia sem o esplendor de recender, sem que qualquer aroma o inebriasse ou nauseasse.
Foi novamente distraído de sua limitação quando as mulheres se juntaram na entrada da casa mais uma vez e chamaram a atenção de todos. Começariam agora o ritual de passar entre as fogueiras e, dessa vez, todos deveriam participar.
Amelia correu ao seu encontro de novo, arrancando outro sorriso divertido de Jean.
— Você pode ficar correndo assim por aí? Não vai se quebrar toda se cair de cara no chão?
— Do que está falando? O ancião aqui é você, ainda sou jovem o bastante para correr uma maratona — ela disse enquanto se alongava na sua frente, como se fosse participar da corrida naquele exato instante. Aquele gesto arrancou uma gargalhada do homem, a primeira de muitas que esperava soltar naquela noite.
— O que devemos fazer agora? — ele conseguiu perguntar depois de rir da amiga.
— Vamos só passar entre as fogueiras para nos livrarmos das doenças e energias negativas. Não é nada demais, mas ajuda a manter o ritual encantador.
— Tudo bem.
Eles caminharam lado a lado, mas sem se tocar dessa vez. A passagem entre as grandes fogueiras começava na porta de trás da casa de Miranda e ia até depois do meio do enorme quintal gramado, fazendo com que todos percorressem dois terços do caminho completo entre a casa e a cerca. Quando chegaram na varanda da casa para entrar na fila que se formava, Helena saiu de dentro da casa em um rompante, acompanhada do noivo relutante.
A jovem de 22 anos os viu e respirou fundo, pegando na mão de Guilherme e praticamente o arrastando até o final da fila, dois lugares atrás de Jean e Amelia. A mulher de cabelos negros não falou com eles, nem lhes dirigiu o olhar, mantendo-se concentrada no final do percurso.
Jean suspirou de tristeza e arrependimento, mas foi logo advertido por Amelia, que lhe disse que aquele momento era para espantar os maus pensamentos também. No entanto, enquanto passava entre as fogueiras, Jean apenas desejou que Helena pudesse se libertar do rancor naquela festa para que eles pudessem voltar a ser amigos.
Em pouco tempo, ele descobriria que seu desejo era em vão.
*2761 palavras
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