A tosse seca ecoou pelas paredes de pedra, como se fosse um agouro sobre as vidas que jaziam encarceradas na prisão.
Jean abriu os olhos e encarou o teto. A viga transpassada sob as toras de madeira que seguravam as telhas de barro tornara-se a visão contumaz do franco-americano, sobretudo quando acordava no meio da noite com a lamúria e moléstia do primo emprestado. Não era a primeira vez naquela noite que a tosse o despertava, nem seria a última, ele tinha certeza.
A cada noite, a situação piorava. Desde que foram presos, todos eles tiveram seus momentos de dor e doença, alguns ainda mostravam as marcas dos ossos sob a pele com o emagrecimento devido à má alimentação. Eram nobres e ricos fora dali, porém, dentro do cárcere, eram como qualquer cidadão que se expunha ao pecado. Mesmo assim, todos passaram pelos seus infortúnios e estavam aguentando firmemente pelo desfecho do longo julgamento. Exceto Joseph Villeré.
O capitão da milícia da costa alemã ficou doente poucas semanas após a carceragem e, diferente de seus associados, apenas piorou à medida que os dias foram passando. Quase dois meses depois, Joseph mal conseguia se sentar em sua cama improvisada para tomar suas refeições, ou levantar-se e arrastar-se para fazer suas necessidades.
Para os outros companheiros de cela, o cheiro era o maior estorvo, já que Joseph não estava conseguindo se cuidar e inclusive seu suor estava com um cheiro forte. Para Jean, a tosse era o que mais incomodava, pois impedia-o de descansar à noite a fim de ajudar o amigo quando o dia raiasse. Por mais que quisesse ignorar como a maioria fazia, ou fingir que ignorava, Jean tinha dificuldades em ouvir os lamentos e ficar quieto como se nada estivesse acontecendo, como se não conhecesse o homem que sofria.
Eles já estavam presos há quase dois meses. Qualquer que fosse o resultado do julgamento, Jean sabia que Villeré provavelmente não sairia dali vivo e, se saísse, não viveria muito tempo depois.
— Jean...
O mais novo dentre os presos se levantou imediatamente, correndo até o amigo (ele não queria admitir) moribundo. Joseph passou mais de um mês sofrendo com dores, tosses e vômitos, mas em nenhum momento pediu por ajuda, muito menos exigiu uma atenção especial. Se ele estava chamando por Jean, deveria estar mesmo necessitando de auxílio.
— Oi, meu amigo — Jean sussurrou ao sentar na ponta do colchão fino e encardido que Villeré usava. — Estou aqui. De que precisas?
Antes que pudesse responder, um novo acesso de tosse o acometeu, fazendo com que tremesse por inteiro. Enquanto Joseph não conseguiu esboçar outra reação que não fosse o derramar de uma lágrima solitária, Jean respirou fundo quando viu o sangue manchando a mão e as vestes do capitão de milícia. Joseph podia sentir, assim como Jean podia ver, que ele estava morrendo, que não tinha muito mais tempo.
Quando finalmente teve uma pausa na tortura, Joseph fez seu pedido:
— Podes conseguir-me um pouco de água?
Jean Baptiste era, se não um homem inteligente, um homem observador e de raciocínio lógico. Por isso, ficou claro para ele que aquele não era o pedido original de Villeré. Não fora apenas por um copo d'água que o capitão chamou o jovem comerciante. Mesmo assim, Jean jamais teria coragem de discutir com um homem que mal conseguia pronunciar sete palavras para formar uma frase que, provavelmente, nem queria dizer, já que gostava de manter o orgulho.
— Pegarei, só um minuto — Jean falou e se levantou, deixando o outro deitado sob um novo ataque de expiração repentina, vigorosa e involuntária.
Ele foi até a grade que os separava da liberdade e chamou por um dos guardas. De início, o vigia mais perto de sua cela o ignorou, mas nem mesmo aquele que deveria desprezá-los por serem criminosos conseguiu evitar o desconforto com o assomo de tosse do outro prisioneiro, então ele se afastou e buscou um balde com água limpa, levando-o em seguida para Jean, que lhe agradeceu antes de voltar para perto de Joseph.
Demorou ainda um minuto, mais ou menos, para que Joseph conseguisse tomar a água e umedecer a garganta machucada pela tosse constante. Demorou ainda mais um minuto para que ele se sentasse para ficar com o rosto de frente para Jean.
Agora, Jean sabia, era o momento de dizer porque o havia chamado. Talvez o pedido por água fosse a entrega do último resquício de dignidade que sobrara no capitão em seus últimos dias de vida.
— Como foi a reunião de ontem? — Joseph perguntou, ainda não chegando direto ao ponto pelo que Jean percebia.
A reunião a que Joseph se referia era os incansáveis interrogatórios com os jurados e o juíz de seu caso, assim como as conversas e explicações de seus advogados. Desde que foram presos, quase todos os dias, os encarcerados eram levados para falar sobre as mesmas coisas, explicar sobre as mesmas decisões e situações. Poucas eram as vezes em que as perguntas não se repetiam ou que uma nova prova era usada contra ou a favor deles.
— Cansativa — Jean respondeu com um suspiro —, repetitiva.
— Quantas vezes precisaremos repetir tudo para que eles nos deixem livres para encontrar nossas famílias?
A pergunta fez Jean suspirar de novo. Se ele fosse sincero, Jean poderia dizer que não adiantaria nada a reiteração se a decisão já tivesse sido tomada, mas ele não queria ser sincero, assim como seus outros companheiros de cela. Todos eles queriam que o desfecho fosse favorável para si.
— Eles estavam lá? — a voz de Joseph saiu baixa, como se ele tivesse medo de fazer a pergunta, mas tivesse mais medo ainda da resposta que receberia.
Jean não precisava que o amigo explicasse o que queria dizer. Aquele era um pensamento que sempre o acometia quando ia até os advogados ou até o juíz e o júri: ela estaria lá? Sua esposa, filha de Nicholas, prima em terceiro grau de Joseph. Jean nunca sabia se queria vê-la, mas sempre cogitava a possibilidade. Poucas foram as vezes em que os parentes dos presos foram permitidos nas audiências ou reuniões, e ainda menos lhes era permitido conversar com eles.
No início, nenhum deles quis ver seus familiares, mas, à medida que o tempo foi passando e eles não eram soltos, a saudade aumentou e a oportunidade de ao menos observá-los de longe era algo que alegrava todos os envolvidos. Principalmente Villeré.
Joseph Villeré tinha uma esposa pela qual era perdidamente apaixonado, Louise Marguerite Chaise Villeré e três filhos: duas moças nomeadas cada uma com um dos nomes da mãe e um rapaz chamado Jacques Phillippe. As três crianças eram novas demais para irem até o tribunal, mas Louise Marguerite conseguira convencer O'Reilly, por um milagre, a deixá-los participar das reuniões com os advogados. Com o tempo, após ver o estado debilitado do marido, ela mesma parou de comparecer. Não que isso tenha feito alguma diferença para o capitão de milícia, já que ele próprio tinha deixado de ir às reuniões por conta da saúde.
Como um mensageiro da morte e detentor do único fio de esperança que restara ao amigo, Jean dava-lhe sempre a mesma resposta:
— A senhora sua esposa estava presente, é claro, mas as crianças não puderam comparecer outra vez.
Joseph suspirou e abriu um sorriso fraco.
— És um bom amigo, Jean Baptiste. Tuas mentiras ajudam-me a respirar com leveza.
— Como tu sabes que estou mentindo?
— Teus olhos escurecem e tua boca puxa para um lado, como se estivesses enojado de tuas próprias ações.
— Queres que te diga a verdade?
— Não. — Joseph aumentou o sorriso. — Como eu disse, tuas mentiras me fazem bem.
Ambos caíram em um silêncio tranquilo, comemorando os poucos minutos de paz até a chegada do próximo ataque de tosse.
— Além disso — Joseph quebrou o silêncio —, sei que ela não vem por não querer ver-me neste estado deplorável.
— Ainda pareces o melhor partido da costa alemã — Jean brincou, fazendo o outro rir levemente, o que foi um erro, pois levou ao ataque que ambos sabiam que viria.
— Da costa alemã? — Joseph conseguiu perguntar entre uma tosse e outra.
— Obviamente. Já que sou o melhor partido de Louisiana.
A brincadeira cessou quando Villeré não conseguiu responder mais às palavras jocosas de Noyan. O acometimento demorou mais tempo desta vez, obrigando Jean a segurar o amigo sentado sobre o colchão fino enquanto ele tremia e expectorava muco e sangue dos pulmões.
— E a tua Catherine? — Joseph mudou de assunto quando finalmente conseguiu respirar sem dificuldade.
— Também não estava.
— Sinto muito.
— Não é exatamente uma novidade.
Jean não se sentia traído, muito menos triste, quando não via sua esposa entre os familiares que compareciam às reuniões e audiências. No início, ela apareceu algumas vezes, sempre ao lado da mãe, como um apoio para a família. Ele sabia, do fundo do coração, que ela não estava lá por ele, e sim por seu pai. Com o tempo, ela também deixou de ir por Nicholas. Jean não a culpava. Sua relação era muito mais complicada do que todos gostariam de acreditar, inclusive ele.
— Tenho medo de que não possamos vê-los outra vez — novamente Joseph interrompeu os pensamentos de Jean com seus comentários.
— Não digas isso — ele cortou o amigo, ao menos um deles devia ter esperança. — Tudo pode se voltar a nosso favor.
— Acreditas mesmo nisso?
— Não temos mais nada em que acreditar, não é verdade?
O homem que era um dos mais abastados da costa alemã, inclusive de toda Nova Orleans, apenas concordou com a cabeça, instalando o silêncio entre eles mais uma vez.
Outro assomo de tosse foi responsável pela quebra da calmaria que tomara conta da cela. Durou muito mais tempo que qualquer outro, deixando tanto Joseph quanto Jean surpresos e levemente desesperados.
O mais velho apontou para o balde d'água, implorando por qualquer alívio que fosse para a dor em sua garganta e seu peito. O mais novo tentou atendê-lo, mas a angústia fez com que Joseph batesse no recipiente em vez de segurá-lo. Na tentativa de impedir que a água fosse desperdiçada ao cair no chão, Jean tentou de todas as maneiras, utilizando todos os seus reflexos, segurar o balde sem virá-lo, levando-o a cortar a mão na borda quebrada do objeto.
A tosse parou em seguida, tão rápido quanto começou, e Jean conseguiu ajudar Joseph a tomar o resquício de água que sobrara no balde em suas mãos.
Antes que pudesse depositar o recipiente enferrujado e quebrado no chão sem fazer barulho para que não acordasse os outros — se é que não estavam acordados com todo o barulho que Joseph Villeré fazia enquanto morria lentamente —, o capitão de milícia segurou a mão machucada de Jean, chamando sua atenção para si.
— Preciso de um favor — pediu o mais velho.
— Tudo que tu precises — Jean não mentiu. Ele faria tudo que estivesse a seu alcance para ajudar o amigo, mesmo que fosse cumprindo um de seus últimos desejos em vida.
— Quando saíres daqui — não passou despercebido a Jean que Joseph tomava como certo que iria sair e não morrer no cárcere, como provavelmente acreditava que aconteceria com ele —, cuidas de minha família.
— Villeré...
— Por favor — implorou o homem, deixando escapar outra lágrima solitária. Ele realmente não estava mais se importando com a dignidade e o orgulho naquele momento. — Nós dois sabemos que minhas chances são ínfimas. Por isso te peço, cuidas da minha família, ajudas meus filhos a alcançarem tudo que lhes é de direito. O que fizemos não foi errado de modo algum, não fomos algozes, fomos apenas precavidos e prestativos, mesmo que não nos vejam assim. Então acredito que nossos descendentes merecem uma vida digna de nossas posições nesta sociedade.
— Villeré...
— Este é o último pedido e desejo de um homem moribundo — ele cortou Jean uma última vez. — Tenho medo de não poder dizê-lo frente a um padre ou a um juiz, por este motivo estou pedindo a ti, que és meu amigo.
Jean suspirou. Agarrou com força os dedos frágeis que tinha nas mãos e inclinou-se para que sua voz baixa e rouca fosse ouvida com clareza pelo homem à sua frente:
— Eu, Jean Baptiste Payen de Noyan, prometo a ti, Joseph Antoine Roy de Villeré, que cuidarei de tua família e providenciarei para que eles recebam o que lhes é de direito quando eu sair desta cela em definitivo. Eu prometo, inclusive, que nada nem ninguém impedir-me-á de cumprir minha primeira promessa.
Joseph sorriu, então, e relaxou sobre a cama. Jean o ajudou a deitar-se antes de ele mesmo voltar à própria cama para tentar dormir pelo que restava da noite. Assim foi, com os dois adormecendo em seguida e despertando apenas pela manhã.
No entanto, os dois homens, dos mais ricos e influentes de Nova Orleans, estavam alheios ao que realmente tinham feito naquela noite. Em suas ânsias de pedir e oferecer, eles não notaram que tinham sangue nas mãos, não de um deles, mas dos dois. O sangue, que se misturou sob um raio de luar que infiltrou-se pela minúscula janela da cela que eles dividiam, tornou-se o amuleto inquebrável, o símbolo inextinguível e o feitiço inalterável de uma promessa que não poderia ser desfeita, independente das circunstâncias.
*2216 palavras
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