Capítulo XXXVI - A união faz a força
Passava das duas da manhã quando escutei a porta da Bela fechar-se devagar. Ela voltava da rua e eu não me lembrava, pensava agora que despertava estremunhado, de a ter ouvido sair.
A luz do candeeiro na mesa de cabeceira estava acesa e reclinava-me na cama, com as mãos vazias onde antes estivera o meu telemóvel. Deixara-me dormir enquanto lia no aparelho o capítulo de uma história online que estava a seguir e que tivera uma atualização recente. As redes sociais aborreciam-me, mas as plataformas onde se publicavam histórias, que variavam entre originais e fanfiction, entretinham-me bastante. Também tinha uma conta numa dessas plataformas onde chegara a disponibilizar, timidamente, os primeiros capítulos da minha aventura de ficção científica. Como não gostara do resultado, poucas visualizações e nenhum comentário, desisti e passei a utilizar a conta apenas para leituras ocasionais.
Esfreguei os olhos e bocejei. O sono estava parcialmente perdido. Se não fizesse movimentos demasiado bruscos acabava por não o espantar de vez. Fui à casa-de-banho aliviar a bexiga e voltei mole para a cama, para onde me atirei. Caí de bruços.
Respirei devagar para ver se mantinha o cérebro indolente, mas falhei a tentativa. Rodei sobre mim mesmo e deitei-me de costas, mãos atrás da cabeça. A Bela tinha saído da mansão, algures, durante a noite. Teria sido com o Matteo? Não se me afigurava provável, pois se os dois quisessem fazer alguma coisa tinham, precisamente, a mansão. Ou no quarto dele ou no quarto dela. E eu sabia muito bem o que tinha escutado. A porta da Bela a fechar-se, não a porta do Matteo. Podia estar confuso devido ao meu estado sonolento, aventei essa hipótese. O melhor que fazia era dormir e descansar. O dia tinha sido muito longo.
A Clara portou-se lindamente como assistente de realização para a equipa da LPTV. As filmagens que fizéramos consistiram basicamente em captar momentos do quotidiano dentro da casa. A maior parte foi encenado, nomeadamente as ocasiões mais descontraídas onde interagíamos uns com os outros, junto à piscina, em jogos de tabuleiro, em conversas, a ver um filme como se fosse de noite, a dançar no meio da sala que improvisava a pista de um clube noturno (coisa que nunca tínhamos feito ali). Mas o almoço, as idas e vindas que percorriam corredores e divisões da mansão, alguns tropeções e gargalhadas, foram totalmente naturais. A Lara mostrou-se espirituosa, o Matteo foi sedutor, a Lia desculpava-se com a sua timidez, o Chris era o palhaço de serviço, a Bela desvendou o seu fogo interior, o Henry preocupava-se com detalhes e eu procurava ser constrangedor. Os meus modos imprevisíveis renderam boas imagens, porque quando tudo parecia demasiado aprumado, desmanchava-se. Quando havia uma enorme barafunda, assumia-me provisoriamente como líder e organizava tudo.
Demos trabalho ao Joe, ao Jimmy e ao Jake, mas foi uma coisa boa, porque eles estavam habituados a laborarem a um ritmo elevado, à exigência inumana da indústria cinematográfica, e preferiam trabalhar sob pressão para alcançarem os melhores resultados. No final do dia, estafados, estavam também satisfeitos. A Clara percebeu que aquele dia era inteiramente dos fãs e não interferiu. Não me destacou dentro do grupo com algum favorecimento, mas levámos a trocar olhinhos, o que me deixou quente por dentro. Sabia que era uma vaidade muito masculina de macho-alfa por ela me estar a notar, mas isso contribuía para a minha autoestima, para que me sentisse especial. Até... especialmente querido. Era paixão, amor, interesse, afeto. Fosse o que fosse, era uma coisa que era só minha e só dela. Uma ligação magnética que fazia com que convergíssemos um para o outro, atraídos irremediavelmente pela curiosidade que sentíamos na descoberta dos nossos segredos que não nos importávamos de partilhar naquele jogo.
E neste rebobinar do dia, com o rosto redondo da Clara a bailar por detrás das pálpebras, o seu perfume doce a invadir-me novamente as narinas, todo o meu corpo a latejar de ânsia por ela, acabei por me cansar e adormecer.
Na manhã seguinte acordei bem-disposto e não era o único. Escutava uma cantiga alegre do outro lado da parede. Não me contive e, ainda de pijama, fui bater à porta do quarto da Bela. Entreabri uma fresta.
– Posso entrar? – perguntei, em português.
– Entre, André. Por favor... entre! – respondeu-me, também em português.
O seu tom era desprendido e idiota, na alegria característica de uma princesa da Disney. Ela também estava de pijama, desgrenhada, uns olhos ensonados e brilhantes num rosto pálido, mas sem aquela sombra da tristeza dos dias anteriores.
– Alguém está feliz hoje – comentei.
Continuei junto à porta e cruzei os braços. Ela rodopiou e, no fim da pirueta, suspirou, juntando as mãos no peito.
– Sim. Estou muito feliz, André. Muito feliz mesmo! – exclamou.
– Foste bem tratada ontem.
– O quê? Não entendi.
Resolvi ser direto.
– Isso tudo é por causa do italiano?
Ela pestanejou, confusa.
– Oi?
– O Matteo. Estou a falar do Matteo. Foi ele que te deixou dessa maneira?
– O Matteo?
– Sim, o Matteo. Saíste com ele. Resolveste... resolveram aproveitar juntos os dias que faltam para o fim do verão?
Ela voltou a pestanejar. Estalou a língua, abanou ligeiramente a cabeça.
– Ah... você está falando do passeio que dei com o Matteo no outro dia? Eu e o Matteo somos só amigos, André. Não é nada disso que você está pensando. Apenas amigos, viu? O Matteo veio falar comigo sobre a Lara e eu, bem... acabei revelando algumas das minhas coisas com o Mike... mas não fui indiscreta, 'tá bom? Não gosto de revelar os detalhes íntimos das minhas relações... Eu continuo inexperiente, sabe? Continuo a ser muito ingénua. Acredito em tudo o que me dizem e não sei lidar muito bem com certas situações... P'ra você ver, eu acabo por sofrer muito com tudo, faço um bicho de sete cabeças... Mas acaba sendo muito simples. Ou se gosta ou não se gosta.
– Hum... Parece-me que estás a querer dizer que continuas a gostar do Mike.
Ela hesitou durante alguns segundos. Colocou o cabelo atrás da orelha, baixou os olhos.
– Eu vou amar o Mike até ao fim dos meus dias. Você pode ter certeza disso...
– Saíste ontem à noite, não foi?
Ela estremeceu, mas não me encarou.
– Ué... saí, sim. Você escutou alguma coisa?
– Pareceu-me ter escutado. Se não estiveste com o Matteo...
– O Matteo me disse que eu devia arriscar. E eu arrisquei, André. O Matteo foi muito amigo. Foi o ombro onde eu chorei a minha tristeza por ter perdido o Mike.
Eu também podia ter sido esse ombro!, pensei irritado, mas guardei o comentário para mim. Mordi os lábios para me impedir de verbalizar o disparate.
– O Matteo me disse que eu devia ir à luta. E eu fui. Falei com o Mike...
– E o Mike quis falar contigo – completei.
– Sim!
O sorriso dela reapareceu, mais radioso, espetacular e gigantesco. Deu nova pirueta. Estava feliz. Estava feliz e apaixonada.
– Ai, André! Eu amo o Mike e o Mike me ama. Ele me pediu desculpas por ter sido bruto comigo naquele dia em que estivemos na sua casa para fazer a canção. A culpa é da Anna! Ela está o pressionando muito. Ela percebeu que perdeu e não gosta de perder. E depois há o probleminha do bebé.
– Bela, a criança não será um... probleminha – alertei, incomodado.
– Pronto! É um problemão! – admitiu, exasperada, lançado as mãos ao ar. – Mas será o problemão da Anna que resolveu dar o golpe da barriga no Mike precisamente agora que ele quer o desquite. 'Tá entendendo? O Mike já andava pensando no divórcio, em terminar com o seu casamento, muito antes do verão com os fãs, muito antes de me ter conhecido. Eu fui apenas a luz que ele buscava para se guiar no meio dessa tempestade.
Compreendi, finalmente, que qualquer interferência seria inútil. O Mike estava decidido a virar a página na sua vida e a Bela estava determinada em ficar com o Shinoda que ela amava e amaria para toda a eternidade. Descruzei os braços, passei uma mão pelo cabelo. Assenti e resumi o que tinha acabado de escutar:
– O Mike quer deixar a Anna, tu apareceste, e ele resolveu que não podia adiar mais essa decisão.
– É isso aí! – concordou ela, numa convicção feroz.
– Então, tu e o Mike... voltaram.
– Sim. Voltámos. E vamos ficar – respondeu ela, cheia de certezas.
– Podes contar com o meu apoio, Bela. Só quero que sejas feliz.
Trotou até mim e abraçou-me. Agradeceu-me de lágrimas nos olhos. Repetiu que eu era o seu melhor amigo. Quase que estive tentado em perguntar-lhe pelo italiano, mas isso iria deixar-me na posição de um idiota enciumado. Não podia, nem devia, controlar as amizades da Bela, ou em quem ela decidia confiar, ou com quem desejava desabafar. Ela era adulta, como uma vez me gritara, e responsável pelas suas decisões. Como aquela de lutar para ficar com o Mike Shinoda dos Linkin Park, por muito improvável e inconcebível que isso me parecesse.
E também eu era responsável por tudo o que fazia e o que dizia. Mal sabia eu que precisamente naquela manhã iria colocar à prova a sinceridade das minhas palavras quando prometera à Bela o meu apoio.
A seguir ao pequeno-almoço, ocupei uma das espreguiçadeiras junto à piscina e terminei de analisar a lista de restaurantes que o John me tinha dado. Encontrei o lugar ideal para o meu segundo encontro com a Clara e senti-me incrivelmente satisfeito. Sabia que iria surpreendê-la e impressioná-la e comecei, desde logo, a imaginar um plano para fazer desse dia memorável. O Matteo, a Lia e o Chris davam mergulhos em franca brincadeira na água, o Henry e a Lara não tinham ainda aparecido, a Bela ficara na sala e envolvia-se numa intensa conversa virtual, muito provavelmente com o Mike.
Tirava apontamentos no bloco de notas do meu telemóvel sobre o que precisava de fazer, iria contactar o John para me ajudar com as reservas e com eventuais adereços que fossem indispensáveis para que o encontro com a Clara fosse perfeito, quando a Susi me tocou no braço para me chamar a atenção.
– Senhor André, tem uma visita – anunciou, contraída.
Pensei imediatamente na Clara. Levantei-me da espreguiçadeira num salto, vaidoso como um pavão, sorriso escancarado, a euforia habitual da paixão a aquecer-me o sangue. A Susi levou-me para um escritório que ficava no fundo de um corredor nas traseiras da enorme sala, um local da mansão que não frequentávamos por ter muitas portas fechadas, algumas à chave, tinha descoberto o Matteo durante uma exploração com o Chris. Nesse escritório esperava-me a Anna Shinoda.
O meu corpo arrefeceu imediatamente e creio ter empalidecido.
A Susi fechou a porta atrás de mim e ficámos os dois sozinhos ali dentro.
A única janela tinha as gelosias fechadas. A iluminação, apesar de ser de dia, provinha de um pequeno candeeiro aceso sobre a imponente mesa de madeira escura. Como o abajur era verde, a luz assumia um tom esverdeado doentio. Havia uma estante com livros e um aparador decorado com pratos de cerâmica, desenhos de inspiração oriental, postos em suportes. O chão era alcatifado. O cheiro dominante era de um espaço sofisticado, mas permanentemente encerrado. Impessoal.
A mulher cumprimentou-me cordialmente. Resmunguei-lhe de volta. Estava ainda a tentar processar o que se estava a passar ali. Não fui torturado durante muito tempo, porém. Passadas as saudações protocolares, a Anna disse-me:
– Estou aqui para te pedir que afastes a Isabela do meu marido. Sei que ela é tua amiga e que escuta os conselhos que lhe dás. Pois, o conselho mais precioso que lhe podes oferecer neste momento é que termine imediatamente com a loucura de manter um caso com um homem casado que tem uma vida pública bastante ativa ao pertencer a uma das bandas musicais mais famosas do planeta. Como sabes, porque comuniquei a notícia quando os fãs se reuniam aos companheiros do meu marido na minha casa, estou à espera de um filho. Não devo estar sujeita a emoções fortes. Este... devaneio do meu marido, porque não passa de um devaneio, de uma distração, está a prejudicar-me. Pior do que tudo, está a prejudicar o meu bebé! Sei que és um rapaz razoável, André. O que estou a pedir é que ensines a tua amiga Isabela a ser igualmente razoável. Estamos entendidos?
A declaração não admitia refutação. Não era um diálogo – era um anúncio formal e eu devia concordar com tudo sem inventar que podia argumentar para reformular o que acabara de ser dito. Abri a boca e retorqui:
– Sim, estamos entendidos... senhora Shinoda.
Entreolhámo-nos durante alguns segundos. Ela procurava a falha por onde podia enfiar a mão e arrancar-me as entranhas. Eu sustive o olhar, defendendo-me do escrutínio e do eventual ataque, num estado de pânico gelado que teve o mérito de me tornar hirto e inexpressivo.
– Obrigada – agradeceu-me.
Saiu do escritório. Deixou a porta aberta, que espreitei sobre o ombro, cheio de medo. Quereria que a seguisse? Ou esperava que eu, criatura inferior, lhe desse espaço para se afastar da minha presença que a contaminava com os meus fedores? Optei por dar-lhe tempo e distância.
Passei a mão pela cara. Estava suada. Aliás, todo eu transpirava. Iria tomar um segundo banho. Enfiava-me debaixo do duche. Mas o que raio tinha sido aquilo?
Também saí do escritório, encostei a porta. Ao abandonar o corredor e entrar na sala, deparei-me com a Lara que me observava com interesse. Olhei em volta. A Bela já se tinha ido embora. Enxotada pela russa ou pelo seu próprio pé, atrás da utopia do seu grande romance daquele verão. Esperava que não se tivesse cruzado com a Anna.
Compreendi tudo. A Lara verificava se eu tinha recebido o recado. Fora a Lara que dera o meu nome para interceder junto da brasileira...
– Gostaste da conversa? – perguntou-me ela.
– Não houve nenhuma conversa – contestei, irritado.
– Houve o que houve... E o que houve é para ser feito. Sem falhas, sem hesitações. Percebeste, português? – avisou-me com um sorriso maléfico.
Estreitei os olhos.
– Estás a conspirar com a Anna contra a Bela – acusei.
Ela também me estreitou os olhos. Adotou uma expressão bastante cínica e disse-me, num tom melífluo e perigoso:
– Sou advogada, lembras-te? Nem sempre defendo os bons, os inocentes, os oprimidos. Os bandidos também precisam de defesa. Na minha carreira, que ainda será muito longa, descobri que prefiro defender os bandidos. Ajudá-los a safarem-se mesmo que eu saiba que são culpados.
Tive tentado a agarrar-lhe no braço, mas isso iria criar um equívoco e perderia a minha reputação de justo e de isento.
– Só te peço que não prejudiques a Bela.
– Estás... a pedir-me? Esqueceste-te de dizer por favor.
– Sim, estou a pedir-te. Basta um coração partido, Lara... Por favor.
Ela contemplou-me com pena. Havia também desilusão e escárnio, uma condescendência enojada por descobrir como eu era fraco, maleável e patético.
– Posso pensar no teu caso – admitiu, átona.
– Obrigado.
– Agradece-me no fim.
Deu-me as costas e foi andando, majestosa e fria, uma rainha absolutista que brincava com a vida e a morte dos seus súbditos por se sentir entediada. Fez-me lembrar a Rainha de Copas da Alice do País das Maravilhas, que cortava cabeças só porque sim. Eu estava na sua lista negra. A Bela no topo. E detestei a minha falta de opções, a minha vulnerabilidade, a minha cobardia.
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