Capítulo XXXIII - Sempre foi efémero
O Mike abriu o programa informático que iria utilizar para misturar e gerir os diversos sons, estilos e instrumentos musicais. Ele e o Brad discutiram durante um par de minutos sobre as suas preferências, apresentando os atributos de cada programa, as suas facilidades e os seus problemas, mas a decisão final coube ao Mike, uma vez que se tratava do seu evento no programa do verão com os fãs. Ele costumava usar o Pro Tools, explicava o Dave a servir de árbitro da pequena discussão, o Brad preferia o GarageBand por achar mais fácil de manusear e mais rápido a apresentar resultados. Havia ainda o Ableton, mas tanto o Mike quanto o Brad estavam de acordo em descartá-lo por ser muito exigente para a tarefa.
Eu, o Matteo e o Chris estávamos a achar uma enorme piada aos pormenores técnicos e na seriedade que imprimiam naquilo. Julgara que fazer a canção, aquela canção em específico, seria uma mera brincadeira para cumprir o calendário da experiência com os fãs. Pelos vistos, o Mike levava tudo o que fazia muito a sério e queria apresentar um trabalho bem feito. O japonês era conhecido por ser um maníaco da perfeição e lá estava ele a comprovar a sua reputação.
Os outros membros da banda, o Chester, o Rob e o Mr. Hahn não participavam naqueles preliminares e preferiam estar a degustar os acepipes do lanche. O Henry sentava-se à pequena mesa redonda com a Lara, a Bela e a Lia, debruçados sobre a composição de um poema que servisse de letra a um tema que ainda nem sequer existia.
Havia muita matéria-prima para moldar, mas depois de uma curta reflexão sobre as vinte peças que iriam integrar uma engrenagem que devia funcionar afinadíssima, no sentido figurado e literal do termo, a canção começou a erguer-se sobre a base melódica do estilo Hybrid Theory. No início, julguei que a Bela se fosse insurgir e acabasse por exigir que os outros estilos musicais selecionados no sorteio, a Bossanova e o Rock progressivo, com uma pitada de Sonhos da Disney, tivessem o mesmo peso na estrutura musical. Mas ela nada disse. Parecia suficientemente absorvida no poema ou fingia que não escutava o debate aceso nas suas costas, ou ainda procurava controlar os acessos de vedeta da Lara que queria liderar o grupo passando por cima das boas intenções do Henry e da timidez diplomata da Lia. E como ela nada disse, a base passou a ser a hibridez do início dos Linkin Park, com uns devaneios pelo meio para que se cumprisse o repto de fazer uma canção com aquelas vinte sugestões impossíveis.
Incorporar os instrumentos musicais revelou-se muito fácil e praticamente não consumiu tempo nenhum. A guitarra, o baixo, a bateria e as teclas teriam invariavelmente de fazer parte do conjunto. Aliás, seriam esses instrumentos que iriam definir o esqueleto da melodia. O Brad deixou alguns espaços inofensivos para se acrescentar uns acordes de viola acústica, mais uns pingos da harpa, do saxofone e de flauta. Os batuques da conga, os tinidos do xilofone e os lamentos da gaita de foles foram introduzidos quase como uma piada que destroçava a suposta verticalidade da empresa. Depois, como quem afina os temperos, o Mike ia polvilhando tudo com os sons que tinham restado. As portas a bater, o vento, as palmas, a campainha e o sino de Natal.
Aquilo estava a ser incrivelmente divertido! Por cada avanço na barra repartida do programa informático, por cada revisão das secções meio concluídas, por cada corte e colagem que se fazia dos pedaços sonoros que de soltos passavam a compactos, havia mais música, uma canção que brotava, primeiro vazia, depois mais espessa e concreta, uma canção que não se parecia com nada do que tínhamos ouvido antes. Fazia lembrar o primeiro álbum da banda, sim, mas também nos remetia a filmes da infância e a bailaricos de verão, a uma sensação de euforia que se equilibrava com outra de nostalgia. Havia energia e lassidão, havia reconhecimento e estranheza.
A determinada altura, não era só o Brad e o Dave que davam palpites e lançavam ideias para o Mike alterar ou melhorar a canção, não era só o Rob que ocupava a cabina com a bateria a propor batidas e ritmos aleatórios, não era só o Mr. Hahn a brincar com as teclas e o Chester a espetar o dedo no ecrã para desespero do Mike que não suportava dedadas na sua superfície. Eu, o Matteo, o Chris e até o Henry também fazíamos parte do processo criativo e integrávamo-nos nos diversos estágios. O Chris tocava guitarra e flauta com o Dave, o Henry fazia propostas ousadas ao DJ sobre acordes, eu acompanhava o Rob na cabina a ensaiar uns toques nos pratos e nos bombos, o Matteo encontrava diferentes formas de fazer soar a campainha, de tocar o xilofone e até de bater palmas.
A determinada altura, o caos instalou-se, mas era uma confusão benigna. Exploratória. Desregrada. Envolvente. Seminal. Transformadora. Criadora! As sugestões, por mais descabidas, serviam de estímulo ao parceiro do lado que acabava por lançar uma nota ainda mais tresloucada do que a anterior. Tudo se amontoava numa cadência ascendente, numa espiral imparável que visava tocar os céus. Estávamos a ser ambiciosos, arrogantes, desagradáveis, equiparávamo-nos aos deuses que geriam as grandes sinfonias do firmamento. Com pouco fazíamos muito. Após a timidez inicial lançávamo-nos à descoberta sem qualquer travão. O nosso entusiasmo era quase palpável. Havia uma energia quente que nos ligava num circuito único que era reconfigurado sempre que precisávamos de sanar dificuldades, dilemas ou disputas. Olhava, de vez em quando, para o tipo da LPTV e fazia figas mentais para que aquele momento, em todo o seu colorido, passasse para o filme, ficasse gravado para a posteridade.
A canção haveria de ser concluída em apoteose, assim que o Chester gravasse a sua voz por cima daquela música inédita. A Lara, a Bela e a Lia trabalhavam na letra com afinco. Estávamos a competir, percebi. Os rapazes tratavam da música mais extraordinária de sempre. As meninas erguiam o melhor poema alguma vez criado. Tinha dor, sofrimento, e tinha redenção, esperança. Tinha o melhor de nós mesmos. Esquecemos as divergências e tudo o que nos afastava uns dos outros, as pequeninas coisas desprezíveis, fizemos sobressair o grupo e estávamos a fazer um brilharete, a ombrear com os músicos profissionais que compunham a nossa banda favorita, a melhor de todos os tempos, os Linkin Park.
O orgulho ardia-me no peito inchado. Sentia-me um pavão. Olhava à volta e os outros partilhavam o mesmo sentimento, a mesma coragem, a mesma alegria.
A Lara cantarolava o que a Bela e a Lia iam apontando nos seus cadernos:
Na escuridão eu vejo a luz e espero que tu me deixes largar-te para não sair derrotado pela noite. Tu és a noite e eu outra noite sou. Se continuarmos juntos o universo vai morrer. E eu quero, eu quero tanto que tudo continue. Para ti e para mim.
Nem sei quem teve aquela ideia, mas era muito boa.
Tive de fazer a minha apreciação à letra. Exigiram-ma! Como era escritor devia validar o poema e fazer as correções que achava necessárias. Tentei não ser demasiado intrusivo. Fiz apenas algumas alterações, deixei conselhos mínimos, indicações de somenos. À medida que as palavras formavam estrofes e refrões reconhecíveis, o Chester começou a rondar a mesa das meninas. Espreitava por cima dos ombros delas, apontava as linhas, dava o seu palpite. Debatiam-se as opções. Ocasionalmente ganhava ele, na maioria das vezes ganhavam elas. Era bonito de se ver. Uma simbiose perfeita. Aplicavam-se as regras da democracia, a maioria impunha o veredicto final. Os outros acatavam e davam-se por vencidos. Sem rancores e sem amuos.
E depois havia o jogo da Anna.
Quando ela entrava na cave, a temperatura do ar baixava dois graus. A sua vigilância, ainda que tentasse disfarçar e chamar-lhe de interação com os fãs, era anticlimática. Destruía o ambiente que se vivia durante a criação da canção. O Mike não lhe ligava nenhuma, o Chester ignorava-a, os outros membros da banda sentiam-se incomodados, só o Dave tentava ser moderadamente simpático. O clube dos sete reagia com rigidez e embaraço, mas cumpríamos cada etapa daquele maldito jogo das frases obedientes e simpáticos, a fingir que o aparte fazia parte da experiência daquela tarde. Tentávamos, no fundo, não melindrar o anfitrião, porque notava que o Mike se contraía quando escutava a voz estridente da mulher nas suas costas.
Depois, instalou-se a sensação de que o jogo era uma farsa. A Anna já tinha tudo esquematizado na sua cabeça conspiradora. Ela experimentava o terreno, com o olhar atento de um batedor experiente de um exército de veteranos, enquanto conferia o esquema minado no seu mapa minucioso.
No fim do primeiro desafio, foram eliminados o Henry, o Chris e a Lia. Os dois namorados e o rapaz que não se encaixava nos rapazes. Foi essa classificação apressada que o meu cérebro fez que me lançou o alarme. Como raios tinha o italiano superado os critérios da Anna, que eu tomei por exigentes e profissionais, se nem se tinha esforçado para criar aquela frase infantil sobre amigos e paixão? O Mr. Hahn chegou a brincar com isso. O italiano queria ser eliminado e não tinha conseguido...
Para o segundo desafio, as palavras eram música e longe. Desta vez, fiz como o italiano. Escrevi uma patacoada qualquer. De longe oiço a música a tocar, tcha-bum-tcha-tcha, a onomatopeia a simular um tambor. Acabei misteriosamente apurado para a terceira e última ronda. Ficámos eu e a Bela, o Matteo e a Lara foram eliminados. Quando apanhei uma nesga, inclinei-me sobre a brasileira e sussurrei-lhe, prepara-te, vais ser tu a ganhar o jogo da Anna.
Eu estava certo. Foi mesmo a menina Isabela Gofert que ganhou o livro autografado, com dedicatória, da senhora Anna Shinoda. No terceiro desafio havia que inventar uma frase com as palavras beijo proibido. Não sei o que a Bela escreveu, nem estava interessado em saber. Qualquer coisa serviria para a Anna concluir aquela mascarada que tresandava, de tão apodrecida e maligna. Antes do cair do pano sobre a peça teatral de má qualidade, a Anna teve o descaramento de deixar um beijo no rosto da Bela. E a Bela teve a ousadia de lhe agradecer com um sorriso encantador.
E agora podíamos voltar à canção.
O mais curioso foi que a Lara passou a descartar completamente o jogo da Anna, assim que compreendeu, tal como eu tinha compreendido, que estava viciado. Também passou a ter outra entretenha, que ia mais de encontro à sua postura dentro do programa do verão. À boleia da composição da letra, o Chester começou a dar-lhe atenção. Em determinado ponto da coisa, puxou uma cadeira para a mesa que as meninas ocupavam e passou a dar diretamente as suas sugestões para as rimas. A Lara, apercebendo-se do interesse dele, aproximou-se. Primeiro uns dedos que roçavam um ombro, um braço, que passavam ao de leve nas costas de uma mão, quase como se fossem toques fortuitos. Depois encostos deliberados, calor a ser transmitido. O Chester, que não era nenhum amador nas artes da sedução, cada vez abria mais o seu reduto pessoal e estimulava o contacto físico com a russa. Uma vez em que ela se levantou para esticar as pernas e espreguiçar-se, fê-lo com os modos felinos de uma gata da aristocracia, convidou-a para se sentar no seu colo. E a Lara aceitou o convite sem pestanejar. Sentou-se no colo do Chester e passou a dirigir daí a conclusão da letra que estava praticamente finalizada, com o contributo precioso do melhor cantor da nossa geração, elogiava ela enquanto acariciava as costas do vocalista. Aquilo a mim estava a fazer arrepios e a deixar-me a salivar, imaginava o que estava a fazer ao Bennington!
Passavam dez minutos das sete da tarde quando o Mike deu por concluída a canção. O Brad queria fazer ainda umas alterações, mas o Dave serviu de árbitro e desempatou a contenda. Ganhava o Mike. A canção, assim como estava, mal ou bem, encontrava-se terminada. O Chester levou a Lara pela mão e foram os dois, munidos dos papéis onde se rascunhava a letra da canção, para a cabina onde iria proceder-se, de seguida, à gravação da trilha de voz para juntar à música. A russa estava encantada com a sua posição de destaque.
O Mike pediu ao Brad para tomar conta da mesa de trabalho por alguns minutos, ele precisava de sair durante um momento, verificar umas cenas... Um eufemismo para dizer que ia à casa-de-banho. Revirei os olhos. O japonês precisava de descontrair mais. Apercebi-me, uns minutos depois, de que a Bela também se ausentara. Quando ela voltou, estava furiosa. O Mike ainda demorou um pouco mais a reaparecer na cave.
A gravação da voz foi feita pelo Chester e também pela Lara, que entrou no refrão a sublinhar algumas frases. Ficou engraçado, mas não ficou do agrado de toda a gente. Ao fim de alguns takes foi o Mr. Hahn que colocou um ponto final naquilo. A tarde já ia longa, precisávamos descansar. O Mike, e talvez o Brad, iriam finalizar a canção noutro dia. Havia bom material. Inesperadamente, todos concordaram em dar o dia por finalizado, satisfeitos com os resultados obtidos.
O fim da experiência na casa do Mike foi bastante pacífico, tendo em conta tudo o que tinha acontecido.
Regressámos seis à mansão. A Lara ficou com o Chester. Mais uma vez, ninguém estranhou. Toda a gente tinha percebido que a russa e o vocalista estavam a dar-se muito bem na cave da casa dos Shinoda.
Deixei os outros seguirem à frente e retive a Bela. Perguntei-lhe:
– O que foi que aconteceu entre ti e o Mike? Foste conversar com ele, não foste? No fim da sessão...
A Bela confirmou imediatamente que a minha suspeita estava correta.
– Sim. Está tudo terminado – disse, cansada. A tristeza tinha-lhe drenado as forças. – Definitivamente terminado! A Anna está grávida e não posso... não devo interferir mais no casamento do Mike, mesmo que... mesmo que saiba que o casamento já teve um fim. Mesmo que saiba o que o Mike sente por mim... Não interessa! Discutimos, André. Eu exigi que ele se decidisse e ele decidiu. Fica com a esposa. Há o bebé, sabe? Há o bebé. O bebé é inocente no meio desta confusão toda...
Entregou-me o livro que a Anna lhe tinha oferecido.
– Pode ficar com isto. Eu iria deitá-lo no lixo, mas com você... o livro fica a salvo. O livro também é inocente. Não sabe que foi criado por uma bruxa!
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