Capítulo XXVII - O que não se sabe esconder
Fui finalmente ver as fotografias. Não queria saber quem comia quem, naquela fase. No início já não me interessava, quando o Matteo andava a rondar as mulheres do clube dos sete, pelo que agora era assunto que me passava completamente ao lado. Acreditava que até ao fim do verão, daquele verão especial com os Linkin Park que haveria de terminar dali a vinte dias, mais coisa, menos coisa, ainda teríamos outras trocas de parceiros. A Lia podia cansar-se do Chris, o Matteo podia querer experimentar coisas novas com o Henry, a Lara podia fisgar o Chester que estava mais disponível, a Bela podia cansar-se do Mike e tentar o Rob que, segundo as suas palavras, era também muito gostoso. Funguei com esse pensamento. Desde que todos se protegessem, porque existiam doenças venéreas e uma coisa chamada fecundação se o dia no calendário fosse propício, estava tudo mais que ótimo. Sexo sempre foi uma boa ideia para libertar tensão acumulada, a todos os níveis. O problema era o dia seguinte e a gestão das expetativas. Eu era um bom exemplo, lamentei-me interiormente, no meu caso com a Clara. Mas que idiota me tinha saído, a pensar tanto no encontro de uma noite, na queca de circunstância numa casa-de-banho!
Parei em frente a uma foto gigantesca, muito provavelmente a maior daquela exposição. A imagem mostrava uma faixa líquida enrugada de cor azul, que se confundia com a faixa compacta, noutro tom de azul, que estava por cima. As proporções eram de um terço para dois terços, sendo a faixa líquida a imagem mais pequena e a que ficava na base.
A Clara postou-se ao meu lado. O perfume dela, floral, entrou-me subitamente pelas narinas e apeteceu-me raptá-la para a casa-de-banho da galeria. Talvez a nossa sina fosse conseguir entendermo-nos apenas em pequenos cubículos equipados com uma sanita. O meu orgulho, contudo, falou mais alto e deixei-me estar quieto, impassível, a lutar contra os meus instintos e o meu desejo, para não transparecer como ela me afetava.
– Gosto muito desta foto – admitiu ela, a bater devagar com um dedo no queixo, naquele tom casual que se usa entre desconhecidos. – Proporciona-me uma espécie de tranquilidade que entra no meu sistema através dos olhos, que se derrama depois pela alma, preenchendo cada recanto interior do meu ser.
Para além do tom, a declaração soou-me a merda fabricada do tipo intelectual de pacotilha que era só verniz, sem substância. Não iria alimentar aquela postura, porque havia uma aventura breve numa casa-de-banho entre nós. Eu e ela tentávamos manter uma certa distância que não transtornasse o nosso raciocínio, mas aquilo soou-me muito forçado.
Então... eu também a perturbava? Ela também considerava raptar-me para a casa-de-banho da galeria? Crispei a testa.
O melhor seria não espantar a caça... Iria devagar, com delicadeza, com a cautela de um atirador furtivo. Curiosamente, fiquei muito calmo. Também podia estar a experimentar os mesmos efeitos que a fotografia produzia nela. Como fora que dissera? Proporciona-me uma espécie de tranquilidade... Ela também me abordava com o tato gelado de um desarmador de bombas.
– Gostas do mar? – perguntei-lhe.
– Pode não ser o mar – respondeu-me, ufana, as palavras eivadas de um desdém mal disfarçado. – Pode ser o céu derramado, fotografado ao contrário.
– Para mim é água, esta parte aqui em baixo. É o mar. A Califórnia tem uma costa enorme e bastante mar para fotografar.
– Se o céu se derrama... é líquido e fica parecido ao mar.
– Então, o céu derrama-se na fotografia e depois derrama-se na tua alma. Como líquido. Como eu vejo o mar... Gostas que o mar te encha todos os recantos interiores do teu ser?
– Bastante. Vou algumas vezes à praia só para nadar nas ondas. Mas não se trata do mar – insistiu. – Trata-se do céu.
– Hum, muito bem. Também gosto muito de nadar nas ondas do mar – admiti, ignorando novamente a sua avaliação à imagem que contemplávamos. – Estive em Venice há uns dias.
– Passeio de turista. Típico.
Perdi a paciência. As cautelas que fossem para as urtigas!
– Escuta-me, Clara. Estás a evitar-me por causa daquilo que aconteceu entre nós no clube? Foi... Bem, o que aconteceu é passado. Eu não me importo com o que fizemos.
Encarou-me com aqueles olhos castanhos que me faziam querer beijá-la loucamente, mesmo que estivéssemos na exposição de fotos do Mr. Hahn.
– Eu também não, Andre.
Disse o meu nome e tive um espasmo. Não acentuou a palavra, mas pelo menos não me chamou Andrew. Então ela lembrava-se... mesmo que não se importasse.
– Podemos recomeçar? – pedi e mordi a língua dentro da boca. Estava a soar demasiado carente e dependente, mas aquelas mamas... Socorro! O esforço que fazia para não me fixar no peito dela e não na cara, naquela boca pequena, naqueles olhos que me enfeitiçavam e que me despiam da minha dignidade, era digno dos jogos olímpicos.
– Estava a ter a mesma ideia quando vi a foto do céu derramado.
– A foto do mar.
Ela arqueou uma sobrancelha, intrigada com a minha teimosia.
– A foto do Joe da entrada... é minha – anunciei, para ver se a acalmava com algo de positivo. Corrigi: – A foto do Mr. Hahn.
A Clara riu-se.
– A tua imodéstia é ofensiva. Estás agora a comparar-te com o fotógrafo que está a ser exposto nesta galeria de arte de renome, que atesta por si só da sua imensa qualidade, ou não estaríamos nesta cerimónia descontraída. É muito difícil expor aqui, para tua informação, meu querido. – Notei azedume naquela explicação.
Tinha conseguido evitar uma discussão por causa da fotografia do mar. Ela também tinha concedido não continuar a discutir comigo. Continuávamos empatados.
Indagou, intrigada:
– A foto é tua... como?
– É minha porque fui eu que a tirei – expliquei. – Foi durante uma sessão fotográfica dos Linkin Park, há uns dias. Foi pouco depois do acidente do Chester na praia, ele até apareceu de muletas. No fim do trabalho dos fotógrafos profissionais, andei a brincar com a máquina e tirei algumas fotos. Tirei aquela foto ao Mr. Hahn. Podes perguntar-lhe, ele confirma-te a minha história.
– Não preciso de perguntar nada ao Joe – replicou, agastada.
– Podes também perguntar... ao teu primo. O Brad conhece a verdade. Ele também esteve na sessão fotográfica e viu-me a tirar fotos.
– Também não quero perguntar nada ao meu primo.
– Então, só te resta acreditar na minha palavra.
– Convencido.
– És bastante desconfiada... Não me pareceste ser, quando nos conhecemos.
Ela mostrou as mãos e respirou fundo.
– Vamos recomeçar. Concordo. Devemos recomeçar. Isto está insuportável! Quero convidar-te para um encontro comigo. Amanhã à noite.
– Queres... um encontro comigo? Um desses vossos dates?
– Sim. Um date. Aceitas?
– Estamos a fazer as coisas ao contrário, então... primeiro o sexo, depois o encontro.
O seu rosto contraiu-se, os seus lábios formaram uma linha direita.
– Aceito, claro que aceito – respondi rapidamente para que ela não me fugisse. Estava zangada e pronta para me desfazer com as unhas. – Desculpa. Costumo falar demais.
– De facto.
– É do meu sangue latino. Sou eu e o meu amigo italiano. Desbocados sem remédio.
O Matteo estava encostado à Bela, a abraçá-la e a falar-lhe ao ouvido, todo delambido.
– Ah, os fãs. Os célebres fãs! O meu primo está constantemente a falar de vocês e começa a fartar-me. Parece que não tem mais nada de interessante na sua vida a não ser o verão com os fãs. Quantos são vocês, afinal?
– Somos sete, contando comigo. Eu sou português, como sabes. Depois temos um italiano, um australiano, um rapaz norte-americano e uma moça também americana, mais uma russa e uma brasileira.
– O mundo não está muito bem representado, não concordas? Falta alguém da Ásia...
– Não sei quais foram os critérios de escolha. Eram para ser seis fãs de todo o mundo, eu fui o sétimo. Talvez esperassem que saísse alguém da Ásia no sorteio... As probabilidades estavam a favor, já que eles são muitos e devem ter enviado muitas candidaturas ao concurso. Mas olha... Calhou-me a mim. Sou o sétimo fã. Nem esperava estar aqui, para te ser sincero.
– Mas estás, e estás a gostar bastante de tudo isto.
– Bastante – concordei.
– Não é aborrecido andar atrás da banda?
– Não. Os eventos do programa têm sido todos excelentes. Hoje estamos numa exposição de fotografias, no outro dia estivemos na gala de entrega de prémios, visitámos um clube noturno, estivemos na praia, num concerto... Depois, há os acontecimentos paralelos.
– Os acontecimentos paralelos.
– Sim. – Olhei-a nos olhos. – Tu sabes o que é. São aquelas coisas que acontecem que não estavam previstas no programa e que acabam por melhorar a experiência como um todo. Os acontecimentos paralelos. Os encontros, as amizades, as disputas, as discussões...
– Ah...
Pareceu-me pensar detalhadamente naquilo que lhe tinha acabado de dizer. Se se incluía ou não naquela classificação improvisada dos acontecimentos paralelos, não tinha a certeza e nem procurei esclarecer-me.
– Quanto ao... nosso encontro. – Engoli a saliva que tinha na boca. Estar ao lado dela, sem a poder levar para a casa-de-banho da galeria, baralhava-me as premissas. – Como vai ser? Dia, horas, lugar...
– Para amanhã à noite, um jantar. E mais nada.
– Sim, mais nada. Pode ser... Aceito o convite.
– Aceitas o convite? – resfolegou. – Como se o pudesses recusar!
– Estou a ser simpático e bem-educado, como a minha mãe me ensinou.
– As mães portuguesas ensinam bem os seus filhos.
– Sim, ensinam-nos mesmo muito bem! Nunca tive razões de queixa e sempre recebi elogios.
– É bom saber isso, Andre.
Tirou o telemóvel da sua bolsinha que pendurava no pulso esquerdo. Pediu-me o número de telefone e dei-lho sem vacilar. Disse que me enviava uma mensagem pelo WhatsApp a combinar tudo. Eu deveria arranjar maneira de ir ter ao lugar e ela só admitia um atraso de cinco minutos. Detestava pessoas que não fossem pontuais.
– Vou estar lá, querida.
Deu-me um beijo na face. Ou melhor, roçou os seus lábios na minha pele e fiquei com uma ereção. Passou a milímetros da minha boca numa clara provocação. Senti-lhe o hálito quente e doce, misturado com o perfume floral. O mar derramado sobre o seu corpo pequeno e firme, e eu a diluir-me nesse mar, só para fazer parte dela.
– Eu sei que vais lá estar – replicou. – E vamos pôr a nossa conversa toda em dia.
Agarrei num terceiro copo de champanhe e bebi-o de uma vez. Porra, aquela mulher tirava-me do sério! Tinha de me controlar, contudo. Amanhã à noite voltaria a estar com ela e não podia parecer tão desesperado. Seria sem sexo, mesmo que o propósito do nosso encontro fosse para colocar a conversa toda em dia, segundo as suas palavras cujo significado abrangente me escapava. Tinha um dia inteiro para me preparar para o meu estágio de monge e iria portar-me bem.
Por outro lado, não desgostava do programa de conversar apenas com a Clara. Parecia-me uma mulher interessante de se conhecer. Ou talvez se revelasse uma desilusão. No dia seguinte iria descobrir onde a classificar, se nas boas, se nas más surpresas. Ia de mente aberta e de corpo dado às balas. O que quer que fosse, duraria por aquele resto de verão especial. Vinte dias. Talvez ficasse, no fim, uma amizade bonita que pudesse ser alimentada à distância.
Dirigi-me aos lavabos dos homens para me refrescar. Precisava de lavar a cara. O champanhe estava a subir-me à cabeça e não queria embriagar-me num evento tão solene como aquela exposição de fotografias.
Na porta, a guardá-la, encontrei o Rob a mexer no seu telemóvel. Levantou os olhos e disse-me, conciso:
– Está ocupado.
Espreitei por cima do seu ombro e tive de me colocar em bicos de pés para fazê-lo, porque o baterista era bastante alto.
– Ocupado?
– Se estás muito aflito vai aos lavabos das mulheres. Despachas-te depressa, pode ser que te safes e não encontres nenhuma pelo caminho. É embaraçoso ser-se apanhado nos lavabos das mulheres.
– Rob...
Ele olhou-me intensamente, perfurando-me com aquele olhar dardejante.
– Português. Está ocupado. Não insistas.
Eu costumava ser um excelente observador, gostava de verificar pormenores, de detetar alterações subtis no ambiente, de perceber movimentações de pessoas. Podia estar enganado, e quase que jurava que não o estava, mas relanceando um olhar rápido pelo espaço da galeria faltavam a Bela... e o Mike.
Espreitei brevemente o corredor de onde tinha vindo. Eles estavam a comer-se dentro dos lavabos dos homens com o Rob a vigiar o perímetro.
Voltei a encolher os ombros.
Regressei à exposição e procurei pelo John para lhe perguntar sobre a compra das reproduções. Sugeri-lhe que a aquisição fosse debitada no programa do verão. Ele achou a ideia fantástica e pediu desculpas por não se ter lembrado disso mais cedo. Criou de imediato um código promocional que distribuiu no grupo "The Summer" e informou, de seguida, a pequena receção que aviava os pedidos feitos online. Disse-me que o Joe Hahn ficaria muito feliz com o interesse dos fãs no seu trabalho. O DJ circulava animadamente entre os seus convidados, como um menino numa loja de brinquedos.
Comprei a fotografia do mar que era um céu derramado. Pedi a maior de todas, porque havia de vários formatos, até de postal ilustrado que cabia num envelope. A senhora que me atendeu agradeceu a minha escolha, teceu elogios ao meu gosto pessoal, e acondicionou-me a fotografia num tubo enorme que tinha uma alça que podia colocar a tiracolo.
Sentia que naquela fotografia carregava um pouco da Clara comigo e sorri, mãos nos bolsos das calças, balançando-me sobre os calcanhares, feliz com a minha escolha.
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