Capítulo XX - O dia seguinte
Quando voltei à mansão estava muito bêbado e não tive a presença de espírito de funcionar como era suposto, de uma forma racional e coerente. Por isso atirei-me para cima da cama como estava e dormi vestido. Ainda consegui descalçar-me e foi um feito considerável, dado o meu estado alcoolizado. Agora acordava com uma faixa incómoda de luz sobre a cara.
Corri para a casa-de-banho para urinar. Lavei a cara com água abundante e regressei à cama, depois de ter fechado as cortinas ao ponto de escurecer completamente o quarto. Quando despertei pela segunda vez passava do meio-dia.
Tomei um duche. Debaixo do chuveiro, tentei lembrar-me da noite anterior no clube noturno que tinha terminado por volta das quatro da manhã, altura em que o John nos foi buscar, um por um, aos cantinhos onde estávamos a curtir os nossos excessos. Ora quietos, ora às risadas dementes, ora aos beijos, ora na euforia própria dos ébrios. Havia de tudo um pouco. Espremi o cérebro para me recolocar no meu cantinho, para saber o meu estado depois de... Merda! Tinha feito sexo com uma desconhecida chamada Clara e tinha sido estupendo. Rasguei um sorriso e senti-me um campeão.
Muito bem, podia organizar as minhas ideias a partir desse momento. Saí da casa-de-banho das mulheres, separei-me da Clara. Vi-a um pouco mais tarde, a dançar na pista de dança, mas não fui ter com ela. Ainda a embaraçava e cobria-me de vergonha, porque eu não sabia dançar. Regressei à plataforma. Pedi outra bebida que não me lembrava qual foi. Qualquer coisa forte, doce e aromática. Contei anedotas no círculo formado por mim, pelo Mr. Hahn, pelo Henry, pelo Dave e pelo Matteo. Acho que tinha visto o Chester na marmelada com a Bela no bar – até que enfim, Bennington! E nem foi preciso ter ido chamar a brasileira e sujado mais a minha reputação naquele negócio prejudicial para a minha saúde. Os beijos lambuzados do vocalista e da minha amiga combinavam, recordava-me com alguma hesitação, com as apalpadelas trocadas entre a Lia e o Chris no sofá. Houve muito amor naquela noite. E depois a Lara não se encontrava em lado nenhum, nem vi mais o Mike ou o Rob, ou mesmo o Brad. Continuei a beber, foram mais dois cocktails que desgraçaram completamente a minha derradeira resistência. Parei de repente, achei que já tinha a minha conta que era avultadíssima, e sentei-me à espera da morte. Quando levantei os olhos foscos, esfreguei-os para perceber o que estava a acontecer naquele sítio quente e claustrofóbico, descobri o John a dar-me um toque no braço que provavelmente não foi nada meigo, um soco em vez de um toque, mas a dormência deixava-me o corpo insensível. Fez um sinal com a mão, incrivelmente lento e cheio de latência, havia várias mãos do John, como os frames de uma animação. O Mr. Halloway chamava-me para irmos embora.
E fui-me embora, a tentar andar de costas direitas e sem dar nas vistas que estava com uma tosga daquelas.
De volta ao presente e à mansão, no dia seguinte a essa noitada, desci até à cozinha. Comi uma salada César preparada pela Susi, e mal consegui engolir as folhas de alface, quanto mais os nacos de frango grelhado. A empregada fazia-me festas na cabeça e eu encolhia-me, porque me doía bastante, mas não a queria magoada comigo se lhe dissesse que deixasse de fazer aquilo. A mulher estava a ser carinhosa, preocupada com a minha ressaca. Aconselhou-me a ingerir muitos líquidos, recomendou-me uns comprimidos. Preparou-me uma garrafa com água mineral aromatizada com umas gotas de limão e entregou-ma nas mãos, dizendo para a beber em intervalos de dez em dez minutos, para ir limpando o organismo.
Os outros estavam no mesmo estado do que eu, ou pior. Espojados pelos sofás, nas espreguiçadeiras do quintal, a dormitar ou a fingir apatia, rostos pendurados, corpos molengas. Olhei em volta, contei-nos e vi que faltava a Bela.
Subi até ao segundo piso. Bati na porta do quarto dela. Como ela não disse nada, abri uma fresta e espreitei.
– Ei. Bom dia, Bela adormecida.
Ela convidou-me a entrar. Tinha acordado havia poucos minutos. Estava desgrenhada, a cara torcida, os olhos ramelentos, cuspo seco nos cantos da boca. As costas enroladas e as coxas à mostra, a porção que os calções do pijama mostravam quase até à cueca. Estava linda de tão natural. Compreendi a razão de o Chester a desejar tanto. Seria interessante acordar com ela ao lado, numa cama, com aquele aspeto de princesa deserdada. Autêntica e nobre.
– Estás horrível – disse-lhe.
– Muito obrigada. Você também não está grande coisa.
Rimos um para o outro.
– Ninguém está muito direito hoje. Já viste que horas são?
– Acabei de abrir meus olhos. Não sei onde está meu celular. Não sei de nada. – Apoiou a cabeça na mão e pôs-se a suspirar.
– Já passa das duas da tarde, Bela. Foi por isso que subi, vim ver se ainda estavas viva. Não tens fome?
– Tenho muita sede. Sério que são duas da tarde? Parece que passou um caminhão por cima de mim. Estou exausta. Precisava de dormir mais. – Escondeu o rosto nas mãos. – Enchi a cara, não foi?
– Eu também bebi demais. Todos bebemos demais e nos divertimos bastante. Acho que não seremos castigados por isso. Precisávamos de ter uma noite como aquela. Era o evento do Rob e muito provavelmente mede-se pelo nível de álcool que ingerimos, sei lá, para verificar se correu bem... E tu, minha menina? Conta-me o que andaste a fazer... A última imagem que tenho de ti é nos braços do Chester.
– Ai, André! 'Tava mesmo muito bom com o Chester, mas eu não devia ter cedido, sabe? Porque antes...
– Antes?
Sentei-me na cama ao seu lado.
– Conta-me tudo, Bela – insisti.
Ela suspirou.
– Antes, dancei loucamente com o Mike e eu queria muito, mas muito ficar com ele. Sim, disso eu me lembro muito bem. E o Mike estava também querendo ficar comigo. Foi estranho... Foi a primeira vez que ele foi direto ao ponto. Eu e ele estávamos no maior clima quando dançámos. Mas tinha muita gente... e tivemos que nos separar e depois ele... ele sumiu. Eu me joguei nos braços do Chester e os beijos estavam muito quentes. Ele me convidou para ir até a sua casa, mas eu recusei porque acho que foi quando o John nos chamou e eu liguei o automático. A minha casa era aqui, não na casa do Chester, e lhe virei costas... Acho que ele ficou chateado comigo. Outra vez.
– Hum... E o Mike queria ficar contigo? Tu e o Mike... já aconteceu alguma coisa com o Mike? Nesta semana que se passou, tu até foste à casa dele gravar uma canção. 'Open Door', não foi? Uma canção nova. E tu e o Mike...?
– Não transei com o Mike se é isso que o preocupa. Mas... Sim, já nos beijámos.
– Bela, o Mike... ele é casado! – disse com mais exaltação do que devia, pois acabava de lhe apontar um dedo acusatório e moralizador. Não era, de todo, a minha intenção, mas não me contive ou fui capaz de ser mais diplomático e contornar a questão.
A Bela percebeu o meu tom de voz e crispou uma sobrancelha.
– André, eu não teria avançado se ele não se tivesse insinuado. Ele 'tá a fim de mim, assim como eu 'tou a fim dele.
– E a mulher do Mike, amiga?
– A Anna? Nem me fale... Sei, porém, que alguma coisa se passa naquele casamento. O Mike fica irritado quando a Anna lhe liga pelo celular, quando se fala nela. Nem tento puxar o assunto, sei que o Mike vai ficar chateado.
– Não estás a inventar um pouco? Porque é favorável para ti que o casamento do Mike não esteja bem.
– Se o casamento do Mike andasse bem, ele não andaria me encorajando, André! – exclamou agastada.
– Certo, certo. Desculpa. E o Chester? Disseste que estava um clima entre ti e o Mike e depois lançaste-te para os braços do Chester. E olha que a coisa entre ti e o Chester estava a pegar fogo! Lembro-me vagamente de estares sentada no colo dele e das mãos do tipo andarem a explorar lugares... íntimos. E se dizes que o Mike está interessado também em ti... És louca! O Mike estava lá também! E viu-vos juntos, de certeza.
– Eu sei! Porra, eu sei. Fiz merda!
– Tens de te decidir, de uma vez por todas. Ou bem que alimentas o sentimento do Mike, ou correspondes à paixão do Chester.
– Eu... eu sei! A culpa é sua.
– Minha... E vais ter a decência de me explicar porquê.
– Onde é que você estava para me proteger e me guiar? Só fiz merda porque você sumiu.
– Ei, querida. Eu também mereço alguma diversão.
– Você encontrou uma garota...
– Ou melhor, foi ela que me encontrou.
Contei-lhe brevemente e sem muitos detalhes o meu encontro com a Clara, como nos ligámos imediatamente através de um qualquer estranho magnetismo e como fizemos sexo na casa-de-banho das mulheres. Em como nos despedimos depois de um último beijo, sem trocar os nossos números de telefone, pelo que era virtualmente impossível reencontrar a Clara das mamas boas – essa descrição não contei à Bela, mas pensei-a e senti o meu pau a ficar duro – numa metrópole tão imensa quanto Los Angeles. Tinha sido mesmo uma aventura de uma noite e eu não me importava. A recordação era mais do que deliciosa. A Bela achou-me um irresponsável.
– O sexo foi seguro – expliquei.
Saí do quarto para que ela se pudesse despachar, tomar um duche, vestir qualquer coisa. Desci novamente à cozinha e pedi à Susi que fizesse também uma salada César para a Bela comer. Esperei por ela e fiz-lhe companhia à mesa. Ela comia devagar e eu aproveitava para ir bebendo a minha garrafa. A Susi, entretanto, preparou-me uma segunda garrafa, agora aromatizando a água com hortelã.
Tínhamos os próximos dias livres, indicava uma mensagem lacónica do John Halloway no grupo 'The Summer'. Em breve entraria em contacto connosco para uma grande surpresa. Como estava consumido por uma dor de cabeça e a vontade nula de me mover mais do que a conta, nem me entusiasmei.
No quintal, eu e a Bela sentámo-nos à mesma mesa. Ela mexia no seu telemóvel e eu recostei-me. Fechei os olhos, mãos de dedos entrelaçados sobre o peito, pernas esticadas. Deixei-me vegetar, encher de luz e de energia, como uma planta. Passado um pouco despertei de um curto sonho e fui buscar uns petiscos que a Susi e a Nani tinham preparado para nós para o lanche. Eram cinco da tarde.
O clube dos sete tinha uma nova configuração, que no fundo era o mesmo arranjo das peças, agora com posições mais vincadas. A Lia e o Chris assumiram o namoro e eram o postal ilustrado dos pombinhos apaixonados, a roçar narizes, aos risinhos, mãos dadas. O Henry continuava na sua solidão habitual, que eu agora compreendia um pouco melhor. O Matteo repousava numa ilha que ele próprio construíra, rodeando-se de uma cerca impenetrável, e mostrava-se macambúzio e inquieto. Evitava olhar para a Lara que sorria e mordia a unha do polegar enquanto escrevia freneticamente no seu telemóvel. Estavam os dois zangados. Ou melhor, o italiano é que estava zangado com ela, a russa simplesmente ignorava-o.
E eu continuava ao lado da Bela. Bebi mais um gole de água e soube-me bem. Estava a lavar os resíduos tóxicos que acumulava no sangue.
A Lara detetou a Bela próximo e foi-lhe contar que estava a namorar o Rob Bourdon, baterista dos Linkin Park. Eu arregalei os olhos, incrédulo. A Bela também achou esse namoro impossível, já para não dizer improvável. Trocaram uma série de farpas e resolvi entrar na conversa para colocar ordem naquilo, porque queria voltar a unir o clube dos sete e aquele tipo de atitude repisava os motivos que nos desuniam.
– Ei, miúda! – chamei.
– O que foi, português? – disse a Lara, olhando-me desdenhosa.
– Porque é que não calas essa boca de víbora? Deste para o Rob na carrinha da banda, foi? Isso não é um namoro. Chama-se uma one night stand. Os Beatles até têm uma canção sobre esse tipo de... namoros, 'Daytripper'. Como vês, desde os anos sessenta do século passado que esse tipo de cena acontece.
A Lara sorriu-me com condescendência.
– Meu Deus, vocês dois são patéticos. O português e a brasileira fazem um excelente dueto, não há dúvida. Para a tua informação, meu querido André, o Rob e eu trocámos telefones e temos estado a conversar sem parar! O Rob gosta de mim, quer vocês queiram, quer não. O Rob está louco por mim. Apaixonou-se, pobrezinho. Bem, já contei a minha novidade. Uma pena que nenhum de vocês tenha alguma coisa de interessante para contar. Porque não vos aconteceu nada ontem à noite... não é verdade? Que pena, meus queridos.
Deixou-nos depois de um giro teatral sobre os calcanhares, fazendo esvoaçar o robe curto e sedoso que vestia por cima do biquíni. Olhei para a Bela sem perceber nada e ela revirou os olhos.
– O Rob? A mandar mensagens à Lara? Desde quando o Rob usa redes sociais?
– Não liga, André.
No final da tarde fui tomar um segundo duche e sentei-me a escrever o diário. Tinha pedido à Susi uma sopa. Ela que a deixasse pronta no frigorífico, que depois logo a aquecia no micro-ondas. Estava a descrever a emoção, com uma certa ponta de saudade, do meu encontro com a Clara, quando escutei umas fungadelas pelo corredor e uma porta a fechar-se. Fiquei alerta e desconfiei de que se tratava da Bela. Fui até ao seu quarto, bati. Colei a orelha à porta para escutar e percebi que ela estava a chorar lá dentro. Voltei a bater, chamei por ela, e nada de ela me dar permissão para entrar. Quando rodei a maçaneta e ela percebeu, do lado de dentro, que eu iria entrar como sempre tinha entrado, espreitando primeiro e depois assumindo que era bem-vindo, ela disse, a voz fanhosa:
– Por favor, vá embora! Não quero falar com você, André. Não quero falar com ninguém hoje.
– Bela? Aconteceu alguma coisa? Foi a Lara?
– Vá embora.
Respeitei o pedido dela. Desci até à sala. Henry via um filme antigo, a preto e branco com o Humphrey Bogart, uma daquelas histórias com detetives e femmes fatales, muitas sombras, brancos em contraste, um assassino, um mistério, histórias do passado que não podiam vir à tona. Ele estava sozinho e parecia que estava realmente a gostar do que via.
– Ei, meu... onde está o resto do pessoal?
– Por aí. Nos quartos.
– Ah... certo. – Não lhe podia perguntar diretamente sobre a Lara e a Bela. Cocei a nuca. Nem sabia como perguntar indiretamente. Resolvi ser mais ou menos direto. – Houve confusão nestas horas?
– Confusão? Não. Ninguém discutiu depois daquela maravilhosa conversa que tu e a brasileira tiveram com a russa. Ela agora está feliz e satisfeita, o Rob deu-lhe o que ela mais queria. A Lara não vai incomodar ninguém nos tempos mais próximos.
E eu ia desistir de descobrir o que estava a acontecer com a Bela, quando ele acrescentou:
– Ah, e o Mike esteve cá.
– O Mike? Qual Mike?
– Ora qual Mike, André... o Shinoda! Entrou na casa, perguntou pela Bela. Carregava um envelope nas mãos que tinha de lhe entregar. Foi o que ele disse.
– O Mike esteve com a Bela?
– Hum-hum.
Estava explicado. Fui comer a minha tigela de sopa – no dia seguinte iria ensinar a Susi a fazer uma sopa portuguesa, com batata, couve, feijão e um naco de chouriço – e depois fui para o meu quarto. Esperei ainda algum tempo, deitado na cama, mãos atrás da cabeça, mas a Bela não apareceu para conversar, como eu esperava que ela viesse. Adormeci com a luz acesa. Despertei à uma da manhã, desorientado com a luz que estava no quarto. Apaguei tudo e voltei a dormir vestido.
No dia seguinte a Bela continuava reclusa. Só desceu para o almoço, uma salada numa dose de passarinho, e voltou a recolher-se. Porta trancada, silêncio opressivo, sem dar autorização a ninguém, nem a mim, para entrar no quarto e conversar com ela. Eu aceitei, pacientemente, sabendo que a Bela precisava de ter esse momento sozinha com os seus pensamentos e com as suas escolhas.
Mais tarde, ela haveria de decidir que precisaria de desabafar.
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