Capítulo VIII - Espaço para surpresas
Até ao jantar estive a escrever no meu diário que resolvi criar para aquele verão, relatando tudo o que tinha acontecido até ali. Escrevi umas passagens bastante emotivas a contar especialmente o meu encontro com Chester Bennington no bar. Acho que as cervejas fizeram-me falar demais nessa ocasião e dizer o que nunca diria normalmente, mas isso fazia parte da magia da coisa.
A noite na mansão foi de convívio e correu muito bem, tendo em conta que as peças se posicionavam nos respetivos lugares naquele imenso tabuleiro de jogo em que se iria competir pela amizade com os Linkin Park. No fim da experiência, iríamos mesmo ser todos amigos, uns mais do que outros, não me iludia a esse respeito, e o vencedor esmagaria os vencidos, quer efetivamente, quer tacitamente. No entanto, a noite foi boa. Jogámos às cartas, houve quem visse filmes, e às tantas contámos anedotas dos respetivos países.
Com a manhã soalheira chegou, finalmente, o dia em que reencontraríamos a banda. Estávamos tão excitados como quando fomos ver o seu concerto – era como a primeira vez, era como se fosse uma novidade. A Susi e a Nani preparam-nos um brunch, uma mistura de pequeno-almoço com almoço, uma refeição reforçada que incluía café, sumos, leite, torradas, fruta, pratos de carnes frias, massas gratinadas, tartes salgadas e molhos, com um sortido de sobremesas que eram pecados comestíveis. Eu não iria engordar dez quilos a comer assim, iria engordar quinze...
O John veio buscar-nos, desta feita na companhia do Brian. Lá fomos nós na nossa carrinha, alegremente, por ruas e estradas até aos estúdios situados em Burbank, uma cidade que fazia parte da imensa teia metropolitana do condado de Los Angeles. Foi uma viagem de duas horas, mas nem demos pelo tempo passar.
À entrada dos estúdios deram-nos os habituais cartões de identificação e fomos conduzidos até a uma sala de espera, onde aguardámos que nos chamassem. O John estava lá connosco e contou-nos que não podíamos fazer barulho durante a apresentação da banda. Era um ensaio de algumas canções que podiam ser tocadas num espetáculo que se estava a preparar para acontecer no fim do programa do verão com os Linkin Park. Tratava-se de uma sessão de trabalho para afinar o alinhamento dos temas, corrigir introduções, incluir novos sons, e os músicos precisavam de estar concentrados naquilo que faziam. Nada de gritos, nada de lhes chamar a atenção, nada de aplausos.
Depois de concordarmos com os termos da nossa presença ali, o John levou-nos para uma segunda sala – o estúdio onde os Linkin Park iriam tocar; melhor dizendo, onde iriam trabalhar. A Lara entrou de mão dada com a Lia, seguiram-se o Henry, o Matteo e o Chris a fingir que estavam descontraídos. Eu fui o penúltimo e fiquei junto à porta, a ver por onde andava a Bela. Que mania que a brasileira tinha de ficar para trás! Precisava de lhe dar uns conselhos sobre isso, porque de facto ela era baixinha e podia facilmente diluir-se no cenário. O John indicou-nos um sofá enorme no canto da sala onde todos se sentaram – menos eu, que marcava os passos da Bela que se encantara com os discos de ouro e platina emoldurados, que enfeitavam as paredes do corredor. Chamei-a com um psst! enervado e acenei-lhe para apressá-la.
O estúdio tinha as paredes forradas com uma esponja cinzenta que limitava as reverberações e o chão estava coberto por tapetes berrantes. Havia vários instrumentos espalhados pelo local, guitarras, baixos, teclados, e havia os músicos que deram início ao ensaio. Primeira canção, Somewhere I belong. O meu coração deu um salto com o início da música. Gostava bastante do tema. Olhei brevemente para a frente. O Chester e o Mike estavam próximos de nós, de uma maneira diferente daquela que tinha acontecido no espetáculo de há dois dias. Eram palpáveis, humanos e frágeis, estavam a cantar para eles e para nós, numa apresentação crua e intimista, ainda por limar, a exibir defeitos, enganos, desafinações, hesitações sem pudor.
A Bela finalmente entrou na sala. Agarrei-lhe na mão e puxei-a para o sofá onde a obriguei a sentar-se, dizendo-lhe em surdina, movendo os lábios a formar as palavras, que estava a cuidar dela. Ela franziu a testa. Não percebeu...
O ensaio foi curto e foi cheio de pausas no meio das canções, troca de instrumentos, improvisações, graçolas, momentos exasperantes em que o Brad conferenciava com o Mike, ou o Joe fazia-o com o Chester, e não acontecia nada. Mas como estávamos sentados e estávamos confortáveis, não nos importámos tanto com as interrupções, os falsos arranques e as desarticulações entre eles, enquanto experimentavam versões dos seus famosos temas. Terminaram com Good goodbye e tão logo soaram os derradeiros acordes, os músicos olharam para nós. Sentimos a necessidade de os aplaudir com entusiasmo, pois entendemos o sinal como a deixa para que nos manifestássemos na nossa qualidade de admiradores. Como fãs que éramos, o nosso amor media-se nos decibéis dos nossos gritos.
Pelo sorriso do Chester, ele tinha apreciado a nossa reação ao ensaio.
A sessão terminava e impunha-se a descompressão. Nós saímos do sofá e fomos ter com a banda. Aproximei-me do Rob. Mike e Joe guardavam cabos e equipamento, e foram abordados pelo Henry e pelo Chris. O Dave mantinha o baixo a tiracolo, conversava com o Matteo. A Lara e a Lia rodeavam o Brad. A Bela manteve-se no sofá, a observar os pormenores da sala que despertavam o seu interesse. Decididamente, aquela mulher gostava de se isolar. Ia para chamá-la para junto de mim quando um par de baquetas apareceram diante dos meus olhos.
– Queres ficar com elas?
– Eh... Rob, não te vão fazer falta? – disse eu.
– Falta? Não! Temos dezenas de pares de baquetas. Tenho as minhas, especiais e personalizadas. Nos ensaios usamos umas baquetas genéricas. Iguais àquelas que costumamos distribuir no final dos nossos espetáculos. Topas?
– São valiosas porque vêm deste ensaio e foram tocadas por ti.
– Ficam mais valiosas se forem autografadas. Se conseguires que o Joe te assine as baquetas, eu também assino. Os outros são mais fáceis de convencer...
– Isso é um desafio?
– Sim, é um desafio.
Saltei de imediato até ao DJ que estava agachado atrás da mesa de mistura. Verificava ligações e afins. Aclarei a garganta para lhe chamar a atenção e nem assim se dignou a ver quem estava ali a querer falar com ele. O coreano era temperamental e não era muito dado a demonstrações de afeto para com desconhecidos.
– Joe? – chamei. – Preciso que...
– O que queres? – resmungou, ainda sem olhar para mim.
Sim, o que queria eu? Era essa a palavra-chave. Aproveitei-a. Era a minha única hipótese de ganhar aquilo... porque a perder já eu tinha começado aquela corrida.
– Quero que me autografes esta baqueta.
Olhou-me de esguelha. Antes que ele reclamasse, acrescentei:
– Preciso de ganhar uma aposta e tu tens de me autografar a baqueta. Não me vais deixar ficar mal, seria injusto e logo no segundo dia em que estamos juntos. Por favor.
– Isso foi ideia do Rob?
– Assinas ou não? Vá, despacha-te. Se é para me humilhares, não percas tempo.
– Tu és muito descarado, português.
Joe levantou-se de repente e arrancou-me a baqueta da mão. Apanhou um marcador preto e fez um rabisco na madeira. Devolveu-me o objeto com um gesto seco, quase como se aquilo estivesse contaminado e o estivesse a enojar. Recuperei a baqueta.
– Isso é a tua assinatura?
– Vais ter de confiar em mim, português. Agora, regressa para junto do teu amigo Rob e pergunta-lhe se isso é mesmo a minha assinatura. Só te perdoo o descaramento porque és um escritor e gosto de ficção científica. Vai lá e não me aborreças! Esta ideia de confraternização com os fãs teve o meu voto contra. Olha... se disseres isto a mais alguém, eu nego. Ouviste-me?
– Muito obrigado, Joe. Não me esquecerei do que disseste. Descansa. O teu segredo morre comigo.
– Ah, pois sim...
O Rob acabou por reconhecer a assinatura do companheiro e concedeu em assinar também a baqueta. A seguir fui até ao Chester que era o mais acessível de todos e pedi-lhe ajuda. Foi uma excelente estratégia. Passado um pouco, e depois de ter andado a cirandar pelo estúdio, o vocalista devolveu-me as duas baquetas enfeitadas com seis rabiscos, que eu assumi tratar-se dos autógrafos dos seis Linkin Park.
– Muito obrigado, Chester! – agradeci com alegria.
– O que vais fazer com isso?
– Vou guardá-las, claro.
– Não as vendas. Se as venderes, não passas de um mercenário.
A nossa pequena confraternização no estúdio de ensaio durou mais alguns minutos. Houve conversas, a Bela até experimentou o baixo do Dave. Estando desligado não se ouviu som nenhum, mas deu para perceber que ela sabia qualquer coisa sobre o instrumento. Eu também sabia tocar uma música nas teclas, e tão depressa pensei em mostrar esse meu talento mínimo, como depressa esqueci essa ideia disparatada. Só iria passar uma vergonha diabólica. O Chris andava com o Henry e com a Lia a saltar de músico em músico, a falar ora com o Rob, ora com o Brad, ora com o relutante Joe. O Matteo controlava a Lara que se antes se tinha atirado ao Mike, atirava-se agora ao Chester. A Bela estava sempre muito próxima do Mike, fingindo que agia casualmente. E eu, olhando para as minhas baquetas, percebi que tinha ganhado o prémio da tarde.
O equipamento estava todo guardado, o resto seria acondicionado pelos estagiários que asseguravam o funcionamento do lugar. Só no fim reparei que o Joe da LPTV, mais o Jake e o Jimmy, estavam também no estúdio e que deviam ter captado umas boas cenas do ensaio e da nossa presença, sentados quietinhos no sofá.
O John bateu com uma mão na outra e chamou-nos a atenção. Recordou-nos de que ainda havia uma surpresa para o resto do dia e sustive a respiração, antecipando o anúncio com alguma apreensão benigna. As surpresas eram boas... mas não gostava muito de surpresas, para ser sincero.
O Chester chegou-se ao John e nós todos olhávamos para os dois homens em antecipação, formando uma meia lua diante deles. A Lara estava um passo à frente de nós e o Matteo não se apercebia dessa posição da russa, porque já se tinha aproximado da Bela, e agora preferia o calor dos trópicos ao gelo do norte da Europa.
O John passou o braço pelos ombros do vocalista, o sinal para que ele falasse, e o Chester disse:
– Ei, pessoal. Quero convidar-vos a todos para irem até à minha casa para uma pequena festa. É essa a grande surpresa do dia. Gostaram? – Piscou-nos o olho e sorriu.
A Lara, obviamente, devido à sua posição de destaque, foi a primeira a guinchar e a pular. E facto curioso, ninguém mais guinchou ou pulou, o que a deixou numa situação um tanto ou quanto ridícula. Os outros receberam o convite com alegria, mas com serenidade, até alguma maturidade. Isso demonstrava que estávamos a passar etapas naquele jogo e a ganhar vantagens. De fãs normais chegámos a fãs privilegiados por termos ganhado o concurso, para sermos a seguir fãs especiais. Tínhamos de continuar a fazer o percurso para deixarmos de ser apenas fãs e sermos, definitivamente, amigos. Acho que um dos objetivos magnos daquela experiência seria esse, tipo a cereja em cima do bolo. Fazer uma amizade mais ou menos sólida com os Linkin Park.
Adorei a surpresa de um encontro na casa de um dos membros da banda. Essa confraternização com contornos de intimidade, afinal só convidamos quem gostamos e em quem confiamos para a nossa casa, nem sequer estava prevista no programa oficial do verão. Senti-me especial, senti-me acolhido. Iria entrar na casa do meu ídolo. Não sei como os outros se sentiram, mas eu estava nas nuvens com a possibilidade de conhecer onde o Chester morava.
Pelo caminho, na carrinha, o John enviou-nos as regras da festa. Sim, o John ia sentado no banco da frente e mandava-nos mensagens com detalhes de como a tarde iria acontecer. Essencialmente horários e notas sobre comportamento. Seria um encontro com direito a jantar, bebidas, salão de jogos e quarto de música, onde se poderia dançar. O fim da festa estava marcado para as nove horas da noite.
Uma hora e meia na via rápida e alcançámos o bairro residencial. Era um local sossegado, com muito arvoredo e passeios sombreados pelos galhos frondosos, limpo, cheio de luz, as propriedades enfeitadas com bonitos jardins delimitados por sebes. As casas eram grandes, mas sem serem excessivamente imponentes. Não esperava outra coisa do Chester – recusava a ostentação e tentava agir sempre como uma pessoa normal. A sua casa era grande por necessidade, porque tinha uma família grande.
Comentei brevemente com o Henry que achava que só teríamos direito a visitar a casa do Chester, a dos outros Linkin Park estaria fora de questão. O Henry achava que haveria outras cinco surpresas como aquela, ao longo do verão. Ri-me e disse-lhe para esquecer essa ideia. A razão de estarmos ali era porque o Chester estava solteiro novamente, após o seu mais recente divórcio. Acrescentei que não me parecia que o Rob, o solteiro do grupo, tão cioso da sua privacidade, ou mesmo o Brad, o outro divorciado, bastante reservado, quisesse aturar o clube dos sete no seu cantinho.
– Clube dos sete? – admirou-se Henry.
– Sim, nós somos o clube dos sete e eles são a banda dos seis.
– Tens muita imaginação, meu.
Gostei do elogio, porque um escritor sem imaginação era como comida sem sal.
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