Capítulo IX - Armadilhas dissimuladas
O Chester chegou primeiro do que nós para nos receber convenientemente, fazendo jus ao seu papel de anfitrião. Viera a conduzir o seu próprio carro, um Mercedes Classe S Limousine prateado. Ele e os outros Linkin Park conduziam agora carros dessa marca, para honrar o patrocínio do fabricante alemão que já acontecia havia cinco anos. A banda fazia publicidade à Mercedes e, em troca, cada um dos seus membros recebia automóveis e financiamento para as suas digressões. Um negócio que beneficiava ambas as partes.
Apeámo-nos da carrinha. O John despediu-se, relembrando que estivéssemos prontos à hora combinada para o regresso à mansão, não se admitiam atrasos. Renovou também os avisos sobre abusos, especialmente no álcool. Se os excessos fossem realmente graves havia penalizações que não seriam brandas. Tratou-nos basicamente como um grupo de miúdos da escola que estavam na sua primeira visita de estudo. O Chris pediu calma ao John, disse-lhe que éramos todos adultos e responsáveis, mas eu percebi que o John iria ser sempre zeloso e que nos iria aborrecer até à náusea com as suas recomendações. Ele era o timoneiro daquele navio que cruzava um oceano desconhecido que podia chegar a ser perigoso se o vento levantasse uma tempestade imprevista. Se o navio naufragasse, ele, como capitão, não iria abandonar a embarcação; nós acabaríamos a salvo nos botes, mas o John iria ao fundo. Uma metáfora para explicar que liderar-nos e orientar-nos era o trabalho do homem que ele procurava executar na perfeição. Se falhasse, não receberia o prémio prometido, podendo até, no limite, ser despedido. Havia objetivos envolvidos e bastante ambiciosos. Para os fãs, a experiência era uma brincadeira. Para o John e para os outros funcionários do evento era a sua possibilidade de ganharem um bom dinheiro.
Assim que o John nos libertou, fomos entregues nas mãos do Chester que nos recebeu, literalmente, de braços abertos. Desejou-nos as boas-vindas exaltado e feliz, como era condizente com o seu feitio hiperbólico. Disse-nos que os outros iriam chegar em breve. Sim, Mike, Dave, Joe, Brad e Rob também estavam convidados para a festa, a surpresa só faria sentido se contasse com os Linkin Park em peso. Depois de apertos de mão aos rapazes e de um beijo na face das meninas que se derreteram todas, sem exceção, até a Lia que preservava mais o seu espaço pessoal, o Chester encaminhou-nos, um por um, até à porta da frente escancarada.
Entrei na casa e emocionei-me. Estava no lugar onde o meu ídolo morava e vivia. O seu reduto, o seu santuário. Ali dentro o Chester era o Chester. Provavelmente nunca veríamos o verdadeiro Chester naquele encontro com os fãs, durante aqueles quarenta dias, porque as pessoas famosas sabem manter a máscara da persona pública durante o tempo que for necessário, mas entre aquelas paredes eu sabia que havia o seu espírito genuíno. Algures, havia pedaços, sombras, brilhos, risos e lágrimas, segredos que eram só do Chester. Os meus olhos humedeceram e tive de fazer um esforço considerável para suster um soluço que me faria chorar de pura e inocente alegria.
Cruzei a entrada e cheguei à sala, um espaço amplo decorado com móveis modernos. Grandes janelas ocupavam a totalidade da parede ao nosso lado esquerdo com as cortinas descerradas a mostrar um jardim bem cuidado. Havia outras salas, contava-nos Chester, para exercício físico, para relaxar, para brincar, compartimentos com televisões e consolas de jogos, com equipamento de som onde se podia ouvir música e dançar, com instrumentos musicais onde se podia improvisar. Podíamos visitar todas essas salas, à vontade, sem restrições. Pediu-nos, contudo, que nos mantivéssemos no primeiro piso. Os quartos de dormir ficavam no segundo piso e eram território proibido.
Brad chegava, acompanhado de Dave – a porta da frente não ficou fechada nem foi trancada para poder ir recebendo todos os convidados. O Henry perguntou se viria mais alguém, para além da banda e dos fãs. O Chester disse que não. Seríamos só os treze – o que perfazia um número interessante, acrescentou – mais o Joe da equipa da LPTV que faria umas imagens daquela festa. Nada de demasiado elaborado, para mostrar como era uma ocasião descontraída e improvisada.
O vocalista levou-nos para as traseiras da casa, para um quintal enorme, talvez do dobro do tamanho daquele da nossa mansão que já não era pequeno. Uma piscina ao centro, mesas dispostas no relvado, uma bancada comprida de apoio tapada por uma toalha branca junto a uma churrasqueira elétrica.
– Vamos ter churrasco? – perguntou o Chris.
– Quem vai cozinhar? – perguntou a Lia.
– Eu! – respondeu o Chester, de forma natural. – Oh, não façam essas caras. Não se preocupem. Estou habituado a receber gente em casa e a cozinhar para vinte pessoas. E não é um exagero ou um número redondo. Quando digo que cozinho para vinte pessoas, são mesmo vinte bocas e vinte estômagos. Tenho uma família enorme, como sabem e tenho muitos amigos, como também sabem. Então, ter-vos aqui acaba por ser igual a um domingo qualquer. De qualquer modo, vocês vão ajudar-me.
– Claro que vamos ajudar-te, querido. Eu quero muito ajudar-te – disse a Lara dengosa.
– Ótimo! Vamos tratar dos aperitivos primeiro.
– Não tens uma empregada... ou assim? – perguntou Henry, olhando em volta. – Para te ajudar... aqui e nessas outras festas que costumas dar?
– Sim, ele tem – respondeu Brad e piscou o olho ao texano. Notei que o Henry corou bastante e baixou a cabeça, acanhado.
– Mas deve tê-la dispensado. Antes a Maria esteve a fazer alguns preparativos, aposto – acrescentou Dave. – Ah, olha o Joe chegou. – Colocou dois dedos na boca e assobiou. – Aqui, meu! Estamos aqui.
Tratava-se do Joe cineasta da LPTV e não o Joe DJ.
– Claro que dispensei a Maria – explicou o Chester. – Queria ser eu a fazer tudo. Um agrado para os nossos fãs. É a minha festa... E vou dar conta do recado. Confiem em mim, porra! Vamos comigo? Por aqui, por favor. Venham, venham... Não sejam tímidos. A minha casa é a vossa casa... pelo menos, por esta tarde. Depois não quero confianças, hum? Vamos, amigos. Por aquela porta chegamos à cozinha e temos coisas para trazer para fora que vamos deixar naquela bancada ali. Loiça, talheres, copos, travessas, tigelas. Também os aperitivos. Para começarmos a trincar alguma coisa.
A Lara enrolou-se no braço do Chester e foi até à cozinha colada a ele, com a Lia a trotar ao lado dos dois. Matteo bufou, de braços cruzados. A russa escapulia-se por entre os seus dedos. Era normal... o italiano jamais conseguiria competir com o cantor dos Linkin Park.
– Como é que os conseguem distinguir? – perguntei eu ao baixista. – Aos dois Joe? Têm o da banda e têm este, o que faz filmagens...
– Um é o Joe e o outro é o Mr. Hahn. Não há confusão possível – respondeu Dave lacónico.
O Chris chamou o Matteo e o Henry para irem também ajudar o Chester. Entretanto chegava o Rob, que entrava no quintal a pentear a franja comprida com uma mão. Reparei que, mais uma vez, a Bela não estava... A mania que aquela miúda tinha de se deixar ficar para trás! Respirei fundo para não me zangar, porque ela não tinha culpa nenhuma de ser assim, e entrei na sala, a fazer o caminho inverso até à porta de entrada. Vi-a num corredor a admirar as fotografias emolduradas que decoravam a parede.
– Gostas mesmo de te perder, não gostas?
Sobressaltou-se com a minha voz.
– Oi... oi, André.
– Bela, vamos. Já estamos todos no quintal das traseiras... Bem, nem todos. Ainda faltam chegar o Joe... o Mr. Hahn e o Mike.
– O Mike ainda não chegou?
– Deve estar a chegar. Anda.
– Que casa espetacular, André. Você viu?
Era engraçado porque quando estávamos os dois juntos falávamos em português, com e sem sotaque.
– Sim. O Chester trata-se bem...
– Como? Não entendi.
– O Chester vive numa casa espetacular, é verdade – corrigi, porque ela não percebia algumas das minhas expressões que eram bastante lusitanas. – Vamos para ao pé dos outros. Anda lá. Não te quero perdida outra vez, como aconteceu depois do concerto.
– Estava vendo as fotos do Chester. Tão lindas! Todas são com sua família bonita. Seus filhos, suas mulheres... ex-mulheres. Vem comigo, André, saber o que existe neste corredor. O Chester disse que podemos circular por aqui, só não podemos subir as escadas e visitar os quartos. Eu não quero visitar quarto nenhum! Imagina o que pode ter os quartos...
A Bela agarrou-me na mão e abrimos algumas portas. Apenas uma fresta, porque ainda que o dono da casa nos desse permissão para andarmos pela sua casa, não me sentia totalmente à vontade para agir como se fosse o meu direito ser tão abelhudo. Havia limites e não queria aborrecer ou irritar o meu ídolo...
Num dos compartimentos descobrimos um piano branco de cauda sobre um tapete felpudo. A Bela suspirou, enlevada. Disse baixinho que haveria de voltar ali, mas eu ouvi-a.
Ao fim da nossa curta exploração achámos por bem ir para junto dos outros, para não nos acusarem de estarmos a conspirar contra eles por falarmos português em privado. Passámos pela cozinha e coloquei as minhas mãos sobre os ombros da Bela. Empurrei-a gentilmente para que ela chegasse, finalmente, ao quintal das traseiras. O Mr. Hahn já estava lá, de copo de coca-cola na mão, a outra no bolso dos calções, a conversar com o Rob. Disse à Bela para escolher uma mesa, eu sentava-me com ela. O Chester acabava de ligar o sistema de som e o quintal encheu-se de música. A Lara bateu palmas, entusiasmada. Parecia apoiar tudo o que o Chester fazia. O Matteo enchia uma bolas coloridas insufláveis com a boca. O Henry dizia-lhe que devia haver uma bomba para encher aquilo, algures, e o italiano insistia que ele tratava daquilo, quando o texano aparecesse com essa famosa bomba já teria as bolas todas prontas. A Lia e o Chris, juntamente com o Dave, arrumavam travessas de batatas fritas e de salgados diversos na bancada, onde já estavam outras travessas com fatias triangulares de pizza. O Brad rodeava calmamente a piscina, analisando a água e talvez a possibilidade de um mergulho. O Joe da LPTV preparava a máquina para captar as tais imagens descontraídas e improvisadas. Contei-nos rapidamente... Treze. Éramos catorze. Faltava o Mike.
O Chester estalou os dedos ao passar por mim e dei meia-volta, entrando na cozinha atrás dele.
– Vais ajudar-me. Não te esqueças.
– Vou ajudar-te... queres que te ajude com o churrasco?
Ele olhou-me para além da porta do enorme frigorífico que tinha aberto.
– Hum? Queres ajudar-me com o churrasco? Também pode ser. Mas não é aí que preciso de ajuda. Consigo tratar do churrasco numa boa...
Dobrou-se para agarrar nuns recipientes selados que estavam nas plataformas inferiores e que colocou na bancada, que continham as carnes temperadas que iria assar para o nosso jantar. Entrecosto, costeletas, hambúrgueres, salsichas. Fechou a porta do frigorífico. Passou uma mão pela cabeça rapada, numa timidez que me desarmou.
– Vais ajudar-me... com a tua amiga – confessou quase a medo.
– Qual amiga? A Bela? Estás a falar da Bela...
– Sim, estou a falar da Isabela. A brasileira boazona. – Um pânico momentâneo atravessou-lhe o olhar. – Espera... estás interessado nela também?
– Não, não estou – apressei-me a negar, para tranquilizá-lo. – A Bela é mesmo... só uma amiga para mim. São todos amigos para mim. Amigos novos. Até... até vocês.
Chester recuperou a sua confiança. Endireitou as costas.
– Vais ajudar-me – reforçou e repetia tantas vezes aquilo que percebi que estava inseguro naquela questão.
– Sim... vou ajudar-te. Mas tu precisas... de ajuda nessa área? Depois de três mulheres?
– Duas mulheres e uma namorada. Se soubesse fazer bem as coisas não me tinha voltado a divorciar, não achas?
– Mas a Bela... O que pretendes? Não vais querer casar com ela...
As minhas hesitações confundiram-no. Fez um gesto de mão e calei-me.
– Estamos no verão, português – cortou, ligeiramente impaciente. – Vamos divertir-nos. E acredito que a Bela vai também querer divertir-se.
– A russa quer divertir-se.
Riu-se alto.
– Essa é demasiado fácil, português. Queres ficar com ela para ti?
– O italiano anda atrás. Não uso material em segunda mão, sem antes ter passado um tempo mínimo de quarentena. Para limpar germes e outros resíduos, entendes?
Voltou a rir-se. O Chester achava-me piada e enchi-me de vaidade.
Convidou-me para um mergulho, ele ia para a piscina com o Brad que já tinha pedido para lhe fazer companhia. Depois assumiria o assador, mais fresco. Eu disse-lhe que tinha de ir ter com a Bela. Preparar o terreno, acrescentou ele, em jeito de confidência. E eu senti-me mal por estar a agir assim... Estava a mentir. A ele, a mim, talvez iria mentir à Bela.
Resolvi que iria aproveitar-me da situação de ser detentor de parte da informação secreta e tentar uma outra solução, que não magoasse tanto. Porque alguém iria sair ferido daquele fogo cruzado. E ainda estávamos só no quarto dia daquela experiência!
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