O VENDEDOR DE POEMAS
Jamais permitirei que me fuja da memória o dia de ontem. Nunca me foi crível que a loteria da vida presenteasse pessoas já fartas de dias, de experiências e de lembranças com a euforia de um passado longínquo. Contudo, eu me equivoquei. Afinal, a velhice é repleta de experiências, mas abarrotada de equívocos. Pensando bem, todas as fases da vida são assim, não é mesmo?
Onde eu estava? Ah, é mesmo! Ontem, dia ensolarado com céu azul – um azul hipnotizante –, eu caminhava pelas movimentadas ruas de minha cidade; creio que ia à padaria de Franco, um velho amigo que sempre exigia que eu fizesse minha primeira refeição em seu estabelecimento. Convenhamos, quem recusaria café em fartura e a companhia de um amigo por nenhum centavo? Eu não.
Pois lá estava eu, em busca de minha xícara de café matinal. Eu seguia lendo algo no jornal e, mesmo que conciliasse a leitura com a atenção ao trajeto para não atropelar nenhum bom cidadão que atravessasse meu caminho, não consegui evitar que isto ocorresse. Minha atenção muito bem administrada me fez esbarrar em um homem robusto, elegantemente vestido, de sapatos lustrados – essa foi a primeira visão que tive após o tombo – e de mui bela aparência. Esperei levar uma esculhambação; ele, entretanto, estendeu a mão para mim e eu, muito envergonhado, segurei-a e fui erguido com firmeza.
— Machucou-se, meu senhor? — Aquela voz meiga arrebatou-me, instantaneamente, para um certo dia de minha vida adulta, para uma lembrança trancafiada no calabouço de meu subconsciente, para uma época em que aquele azul hipnotizante era tomado por negras brumas originadas da insensibilidade humana, para o dia em que conheci um rapaz que mudou a minha vida para sempre, o vendedor de poemas.
Confesso que nunca desejei a inexistência com tanta intensidade até aquela época, a Segunda Idade das Trevas, como os livros de história denominam hoje. Naquele período, a natureza decidiu, por si mesma, refletir todas as atrocidades do ser humano. Compaixão, benevolência e amor, caíram no esquecimento da quase totalidade da população e foram substituídos pela dureza de coração, pela arrogância e o desejo exacerbado de possuir. Não se ouvia sequer uma saudação de bom dia, afinal, todos se encontravam deveras preocupados com os afazeres pendentes em seu mundo interno. As ruas pareciam trilhos para trens desgovernados e ai daquele que ousasse descarrilar. As brumas negras que ocupavam todo o espaço a nossa volta e impediam-nos de ver o céu, materializava toda a podridão que havia na humanidade.
A essa altura do campeonato, caro leitor, presumo que estejas ansioso para saber onde, exatamente, eu estava. Pois bem, eu estava a vagar, veloz e silenciosamente, sobre os meus trilhos, sujeitado ao rigor da maçante maioria. Houve um dia, porém, que saí dos trilhos.
Há uma certa hora, não me recordo com exatidão, acredito que era quase meio-dia, eu corria apressado pelos trilhos, havia uma conta pendente que eu não poderia deixar para a próxima hora. Veloz feito bala, furioso como um touro, eu fazia meus pés viajarem acima de duzentos por hora. Todavia, como passei a dizer após aquela experiência, ao apressado Deus sempre dá o brusco abrandamento. Fui parado por uma mão estendida. Uma criança franzina havia posto diante de mim um papel amassado e muito gasto.
— Senhor, não quero incomodá-lo, mas poderia me ajudar? Compre um? — Observei aquela criança raquítica e movi-me de íntima compaixão - eu era a exceção das outras máquinas. Tomei para mim o papel, observei-o e voltei a fitar aquele pobre-diabo — Quanto custa, menino?
— Apenas cinco, meu senhor. — Esmerou-se para me responder. De imediato, puxei uma nota de vinte e dei-lhe como pagamento pelo papel. Ele, por sua vez, observou a cédula, descrente. — Eu lamento, mas tenho apenas alguns centavos, não posso devolver-lhe o que sobra.
— Não vendeste sequer um papel?
— Não, meu senhor. — Disse o franzino, cabisbaixo.
— Pois fique com isto, vá matar sua fome.
Eu jamais tiraria do pobre garoto aquelas moedas, aliás, dei aquele tanto, porque concluí que era improvável que ele vencesse daquele dia. Ele merecia comer decentemente, pelo menos uma última vez antes de sair deste plano.
Engoli em seco, pus-me nos trilhos novamente, mas antes de partir, a curiosidade ocupou-me um grande espaço na boca:
— Meu rapaz! — Chamei-o e ele encarou-me com um olhar esperançoso, cogitando, talvez, que eu o levaria comigo, mas isso não aconteceu. Apenas ergui o papel entre os dedos e indaguei-o — O que há neste papelzinho?
— Um poema, senhor. — Sua resposta me fez franzir o cenho: dentre tantas coisas para se vender, como um garoto decide vender poemas? Ri, guardei o papel no bolso direito da calça social e segui meu caminho. Aos poucos, o vendedor de poemas tornava-se apenas mais um na multidão de desgovernados.
Assim que parei em frente ao lugar onde pagaria minha dívida, precisei respirar. Esqueci-me de mencionar que, graças às brumas, todos que desejavam manter sua saúde intacta, precisavam usar máscaras em seus rostos quando saíam de suas residências. Após anos de estudo, descobriu-se que aquela neblina era, a longo prazo, prejudicial à saúde, portanto, recomendava-se a utilização de máscaras como proteção. Não era um item obrigatório, então alguns esqueciam aqui ou acolá. Meus problemas cardíacos não me permitiam esquecer-me disso, entretanto, eu nunca fui de lembrar-me das coisas que detesto usar. Voltemos ao conto:
Após um longo tempo com as mãos nos joelhos, levantei-me, inspirei aquele ar impuro – era o único que nós tínhamos para respirar – e rumei a quitar minha dívida.
Assim que saí, passei a mão no bolso para guardar o dinheiro que me sobrara do assalto de instantes atrás, tirei o papel que me custara vinte e, curioso, li o conteúdo. Silêncio. Assim que terminei de ler o que estava naquele papel, algo acendeu dentro de mim. Não há palavras que se consigam dissimular para definir aquela sensação. De repente, eu não estava mais sobre trilhos, eu não era mais um descontrolado, alienado pelos males que me cercavam. Aquelas palavras... Libertaram-me!
Voltei correndo pelas mesmas pisadas, fiz a mesma rota para me reencontrar com aquele menino. Corri, corri e corri, meus problemas de saúde não me eram como uma moléstia, eu não me preocupava com eles, afinal, em que eles me acrescentavam? Infelizmente, para mim, o pequeno vendedor de papeis não estava mais lá.
Fui para casa, tristonho. As perguntas serpenteavam e giravam em minha mente, assim como as brumas lá fora. Eu não parava de imaginar por onde aquele franzino perambulava. Provavelmente ele já estivesse morto. Acometido pelo luto incerto por dias, nem ousei sair de minha residência, sequer abri as janelas da casa. A cama tornou-se o único espaço no qual eu era onipresente.
Após conformar-me sobre a morte do menino, resolvi sair do luto à contragosto. Eu precisava seguir com a minha vida; afinal, apesar dos pesares, aquele garoto vendeu-me minha carta de alforria e, em sua honra, eu precisava fazer valer a pena. Pus-me em pé e corri para abrir as janelas, pois aquelas trevas já não me incomodariam mais. Assim que destranquei a primeira janela, fui acometido por um sentimento inexplicável. Uma luz ofuscante pairou sobre mim, me causando vertigem: o sol! Corri como nunca a escancarar as portas e janelas da casa. Quando olhei para a avenida, tudo estava tranquilo, não havia mais nenhuma nuvem negra, as pessoas mostravam lindos sorrisos livremente e o ar estava... Limpo. Quando elevei meu olhar, um azul cintilante, hipnotizante tomava conta do horizonte, outrora contaminado pela escuridão. O céu. Lembro-me perfeitamente que saí serelepe pela rua e não contive a gargalhada, todos estavam livres dos trilhos! Todos estavam livres das brumas! Todos estavam livres das máscaras! Todos eram, verdadeiramente, livres!
— BOM DIA, SENHOR EDGARD! — Uma criança gritou, sorridente.
— BOM DIA, LINDA CRIANÇA! SEJA FELIZ! — Devolvi com o mesmo entusiasmo, entretanto, algo em sua delicada mão prendeu-me. Ela carregava consigo um papel, como o que eu tinha desde e o encontro com o garotinho dos poemas. Observei todos ao meu redor com mais atenção e todos carregavam pequenos papeis nas mãos, poemas!
Voltei correndo para casa e tratei de emoldurar aquele papel; tive a certeza que aquele franzino era o responsável por tamanha benção. Passei a revirar por todos os lugares, os becos, as praças, cada canto repleto de indivíduos em situação de mendicância e, apesar de muito esforço, não o encontrei. Tristeza. Após anos, encontrei-me com o velho Franco e ele explicou-me, a grosso modo, que o cabo das brumas e dos trilhos, deu-se graças a uma mulher que saiu a espalhar vários versos de um caderno que encontrara próximo à um lixão; ao lado do corpo de uma criança esquelética - assim diziam os rumores -, no fim de cada folha lia-se o nome do autor:
O Vendedor de Poemas.
A notícia foi-me uma apunhalada no flanco, confesso. Pois, nunca tive a oportunidade de dar os devidos agradecimentos àquele pobre menino. Ele salvara o mundo. Seus poemas trouxeram à tona a completa ambiguidade humana, que há muito fora derrotada pelo lado obscuro de cada alma daquela cidade. Aquele franzino trouxe a luz para o interior de cada homem que lera as palavras escritas naqueles papéis amassados.
— O senhor está bem? — A voz preocupada do homem robusto, tirou-me do mundo das lembranças, num instante eu estava em pé, encarando seus pés e segurando firme em suas mãos.
— Sim, filho, eu estou bem. — Ergui o olhar para agradecê-lo devidamente, porém franzi o cenho, algo me parecia... Familiar. Então ousei perguntar-lhe o nome — Qual o teu nome, meu bom homem?
— Augusto, meu senhor.
— Por acaso, nos conhecemos? — Indaguei-o. Ele em troca devolveu-me um sorriso tão gentil que me trouxe refrigério, paz, conforto. De repente, as lágrimas não se contiveram em meus olhos. Naquele momento, cri que a vida surpreende até o mais farto de dias. Aquele homem abraçou-me, agradeceu-me e sussurrou, espargindo felicidade, em meus ouvidos:
— Eu sou o vendedor de poemas.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro