Capítulo O6 - O Sol
"Devemos pagar caro pelos nossos erros se quisermos ver-nos livres deles,
e depois podemos até dizer que temos sorte."
Johann Goethe
Foi difícil deixar o cigano aos cuidados de estranhos, mesmo que eu já tenha visto os rostos das duas Posses que haviam sido designadas para zelar pela vida do ruivo.
Não conseguia pensar em nada que não fosse Bóris enquanto Elizabeth me forçava a caminhar com ela pelo jardim, amarrada aos meus braços como uma corda grossa e extremamente forte. Ela andava curvada, e sua pele suava sangue enquanto gemia de dor com as mãos sobre a barriga.
— O senhor tem bastante sorte. - No meio do caminho, se ajoelhou em meio a grama, respirando vagarosamente.
— Porque eu não tenho indigestão? - Ela me olhou com raiva, deitando na grama verde enquanto seus cabelos se misturavam com a relva, fechando os olhos logo depois e rangendo os dentes. - Quem você bebeu?
— Um pedinte. Ele estava muito bêbado. - Colocou as mãos na barriga novamente em uma pontada de dor. - Não gosto disso, é agoniante.
— Você aprende a se acostumar. - Sentei ao seu lado, abraçando os joelhos e brincando com uma pequena flor rosada que nascia no gramado.- Por que me chamou aqui?
— Ora, estou doente! Fique um pouco comigo! - Tossiu, expelindo sangue pela garganta. - Essa é a consequência do dom de meu sangue. Maldição!
— Não posso deixar Bóris sozinho. - Ela se calou, estreitando os olhos para mim. - Ele está em um lugar estranho, com pessoas estranhas e além de tudo, perigosas.
— Meu querido Orfeo. - Riu pelo nariz, depois começou a gargalhar de modo como se tivesse ouvido uma piada, logo depois se arrependendo quando a dor abnominal a atingiu novamente. Ignorei suas provocações e deitei ao seu lado, observando as pequenas estrelas que inundavam a escuridão do céu. - Você, do modo que eu o conheço, não seria alguém que rastejaria pelo amor de um mortal.
— Rastejar?
— Sim, meu querido. Desde que chegou aqui, tenho percebido seu empenho em conquistar esse garoto. - Sorriu. - Talvez se sinta desafiado, pois com esse rosto, ninguém nuca resistiria à você.
— Bóris não é um desafio para mim.
— Então preste mais atenção a sua volta, veja o que Mephisto está fazendo para recuperar sua atenção, o seu afeto. Apenas tente observar o quanto ele se esforça.- Se sentou na grama, ainda com a mão na barriga. - É ruim ser o segundo amor dele, na verdade, acho que ele me vê apenas como uma estátua quebrada.
— Então por que me diz essas coisas?
— Porque quero vê-lo feliz. - Sorriu tristemente, passando um lenço na testa vermelha. - E ele só será feliz ao seu lado.
— Elizabeth, já basta. - Estreitei os olhos. -Eu amo Mephisto. Mais do que você, mais do que qualquer mortal ou vampiro que exista nessa terra. Eu o amo mais do que posso dizer, pois eu o criei. Eu o fiz com partes de mim mesmo.
— Então mostre isso para ele! - Se deitou novamente, desfazendo os laços do vestido, relaxando o tórax.
— Mephisto não é mais minha responsabilidade, quebrei nossos laços assim que o expulsei. - Levantei do chão, observando o estado preocupante de Elizabeth. - Ele é responsável pelos seus próprios atos, como o que ele está fazendo agora. Terá um preço colossal. - Passei os braços abaixo dos joelhos da garota e por suas costas, levantando o corpo ensanguentado.
— Não deveria falar isso alto.- Fechou os olhos e afundou o rosto em minhas roupas. - Ele está em todos os lugares.
— Sei disso melhor do que ninguém. - Ela começou com um sorriso, depois aumentou para uma gargalhada e acabou em uma tosse violenta. - O que foi?
— Não está preocupado comigo, está apenas aliviado porque achou um pretexto para voltar a ficar com seu humano. - Deu pequenos socos em meu peito enquanto passei pelos portões do fundo, deixando o baile de pessoas mascaradas para trás. Saltei os degraus sem pressa, rindo mentalmente de seu julgamento equivocado. - De qualquer modo, conte comigo para velar a vida seu mortal.
Nessa época, mesmo com minha idade, eu era um vampiro ingênuo para algumas coisas, e uma delas, era ser consumido pela preocupação com todos os desgraçados a minha volta, sendo vampiros ou humanos.
Entrei nos aposentos de Elizabeth. As paredes eram bem diferentes das demais, decorada por quadros e coberta com madeira brilhante, assim como o chão; Haviam várias ervas espalhadas pelo ambiente em vasos decorados, candelabros se mantinham acesos acima dos armários, iluminando os corpos quentes de seus humanos adormecidos juntos na cama. Sem acrordá-los, depositei o corpo dela em seu caixão, observando o rosto juvenil, estudando a pele morena, os lábios incrivelmente cheios e manchados de sangue.
●●●
Voltei para os meus aposentos, encontrando Bóris na presença do menino que Mephisto havia atacado. O cigano improvisava alguns curativos no pescoço do mais novo, que sentado na cama, gemia de dor quando a ponta dos dedos do ruivo encostavam no lugar.
Com os olhos baixos, percebeu a ponta dos meus sapatos e logo depois o meu rosto, se levantando desesperadamente com as bochechas coradas e o coração descompassado. Ouvi Bóris reclamar por sua atitude repentina e puxou seu braço, fazendo o jovem cair novamente sentado no colchão.
— Não se incomode comigo. - Falei, escutando o coração do mortal quase sair pela boca. Para interrompe o silêncio que se formava, comecei a falar. - Isso dói muito? - Bóris levantou uma sobrancelha.
— Acho que não, está apenas infeccionada. - Respondeu meu cigano, irritado e deixando a ironia sair de forma natural. A Posse lhe enviou sinais de repreensão em relação a sua linguagem, temendo que eu fizesse algo.
— Não tenha medo. - Suas mãos tremiam violentamente, e pressenti que entraria em pânico. Liberei os feromônios, tranquilizando a Posse até certo ponto.
Apontei para Bóris com o olhar, mordi meu indicador e levei o dedo á ferida no pescoço do jovem, espalhando a substância vermelha pelo machucado em forma de mordida, regenerando a pele em poucos segundos.
— Sente-se melhor? - Agachei para observar seus olhos negros.
— E-eu não.. Não posso receber seu sangue. - Mexia os dedos em sinal de nervosismo. - Sou posse do senhor Mephisto. - Levantou e correu até a porta, saindo logo em seguida de modo apressado.
— Ele vai contar ao outro Strigoi. - Bóris cruzou os braços e fez uma careta. - Você estará encrencado... Aliás, nós estaremos.
— Não, não vai. - Caminhei para perto do cigano, olhando bem para seu rosto, fazendo-o corar e desviar o olhar logo em seguida. - Meu príncipe, algo o perturba?
— Eu não quero ficar aqui para sempre. - Semicerrou os olhos. - Sinto falta de ver o céu.
— O sol e as nuvens? Ou talvez a dama lua e suas estrelas? Este último é um conjunto muito mais bonito. - Sentei ao seu lado na cama. Bóris encolheu as pernas, evitando contato.
— Quero ambos.
— Você é ambicioso. - Encontrei seu olhar novamente. - Gosto disso.
Alguns momentos se passaram, e senti o ar constrangedor que se formou em torno de nós, com Bóris implorando mentalmente para que eu saísse de perto. Mas permaneci ali, como se estivesse amarrado ao lugar.
Curiosamente paralisado.
— Bóris, se caso eu o mandasse novamente a Londres... - Levantou as duas sobrancelhas ruivas. - Sozinho, você iria sem hesitar, não é?
— Mas é claro que sim. - Respondeu sem pestanejar, e meu corpo de esvaiu, desfaleceu como um peixe que tenta respirar fora d'agua. - Se você decidir que quer ficar aqui com o outro Strigoi, irei o mais rápido que eu puder. Já pensei nessa possibilidade porque sei que está cogitando isso.
— Mas e se formos juntos, se sairmos daqui? Você ficaria feliz? - Inclinei meu corpo para frente, encostando minha bochecha em um dos seus joelhos já cobertos pelo fino tecido da calça de algodão.
— Seria tudo do mesmo modo que sempre foi. - Seu rosto avermelhou e desviou o olhar.
— Por que enrubece sempre que me aproximo? Diga-me o que teme.- Empurrou meu rosto com uma das mãos, e lhe tomei o pulso, zombando de sua situação. - Tem receio de que eu beije-lhe os lábios?
— Não diga este tipo de coisa! - Apertou os olhos com força, enquanto tentava se livrar de minha mão que apertava o seu pulso. - Strigois não pensam este tipo de coisa.
— Então isso significa que eu sou diferente dos outros? - Me aproximei mais vendo Bóris revirar os olhos e seu rosto corar mais. Decidi continuar com a piada. - Veja, estamos em paz, ninguém está ouvindo.
— Está sim, as Posses que mandou para me vigiar, disseram que ficam todas as noites, Strigois pregados no teto e paredes do quarto, como pulgas na pele de um animal.- Beijei as costas de suas mãos antes de soltá-las. Nunca havia notado as tantas cicatrizes que compunham sua pele. - Nunca estarei em paz aqui.
— Eles só estão curiosos, isso é passageiro. - Suspirei e me levantei do colchão macio, alinhando os cabelos para trás. - Espere algum tempo, eles nem ao menos olharão para você.
— Tempo? - Riu desgostoso e cruzou os braços. - Então me deixaria preso a esse quarto miserável até o fim de minha vida?
— Não fale assim. - Juntei as sobrancelhas.
— Eles beberam de mim, strigoi. Muitos deles, ao mesmo tempo. - Passou as mãos pelos braços. - Eu preciso sair daqui, preciso... preciso da luz do sol, preciso sentir a brisa da manhã e ouvir os cânticos dos pássaros. Não sou como essas... Posses, que servem de gado para vocês!
Engoli em seco.
— Eu entendo você, mas-
— Não, você não entende. - Desceu da cama, passando as mãos no rosto. - Você não é como eu, nem ao menos está vivo, como poderia entender?
Eu não tinha motivos para ficar irritado ou chateado, Bóris havia falado a verdade, talvez suas palavras estivessem carregadas de crueldade e raiva, mas eu havia me esquecido de que ele era um espírito livre, e o manti como um pássaro, preso a uma gaiola.
Suas palavras me atingiram como um soco.
Após sair silenciosamente do recinto, na companhia dos olhos do ruivo, permiti que minha mente conturbada sentisse culpa, ao perceber a pele esbranquiçada e pouco fina que se mostrava no corpo esguio de Bóris. Eu, sendo um tolo completamente cego, havia esquecido de que ele era um mortal, e precisava do sol.
●●●
Depois de algumas horas andando pela França, longe de Bóris e de todos os outros vampiros, acabei em Órlean. A cidade estava cheia, cheia de pessoas bem vestidas e luzes brilhantes, que refletiam nas paredes desgastadas, mostrando o pouco de sua beleza; O chão estava pintado de branco com os pequenos pedaços de gelo que caíam sobre ele.
Ao longe, havia uma mulher sozinha, com poucas roupas para o inverno que se mostrava impassível. Ela estava pintando uma tela com cores vivas, misturando as tintas em sua própria pele. Esticava os braços para esfumar as cores com os próprios dedos e limpava a borda da obra com o tecido da saia de seu próprio vestido. Depois de tudo, parava e admirava seu trabalho com um sorriso pintando o rosto, repetindo o processo novamente.
Andei até ela, sentindo mesmo a uma grande distância, o cheiro de seus cabelos cor de ébano, algo relacionado a flores e madeira mofada, me lembrando algo que eu não queria naquele momento. Em seu coração, havia um vazio enorme, um desespero enclausurado que estava sendo liberto naquela pintura extremamente colorida.
— Sei o que você é. Também sei o que pretende fazer. - Sua voz aguda se pronunciou em meio às árvores. Ela falava comigo, e de algum modo, sabia que eu estava perto.
— Sabe? - Perguntei desconfiado, ainda observando sua cabeleira ondulada. - Então deve saber que não-
— Não me importa como faça, mas faça rápido. - Sua voz estava embargada, enquanto sua mão desferia fortes pinceladas no desenho, o qual não me atentei a ver. - Não há mais motivos para que eu respire.
— Se sabe mesmo o que sou, saiba também que não tiro a vida de inocentes.
— Se matar a mim, saberá que está fazendo um grande favor, não posso mais viver neste mundo. - Largou o pincel no chão, observando a queda do objeto. Ainda de costas, levou os dedos sujos de tinta vermelha aos ombros, descendo a manga do vestido, despindo a parte de cima de seu corpo. - Não sou tão nova e nem tão bela, mas rezo para que meu pobre sangue o satisfaça.
Levantei uma sobrancelha e suspirei. Aquela mulher sofria, eu podia sentir em meus ossos o tamanho de sua tristeza, que torcia sem dó o coração humano que batia de maneira descompassada enquanto mesmo sem ver, sabia que as lágrimas caiam de seus olhos.
Caminhei com as mãos nos bolsos em sua direção, mas verdadeiramente, acho que minhas pernas se mexeram sozinhas. Parei quando cheguei perto o suficiente e deslizei meus dedos pela pele de seu ombro direito, afastando a cabeleira, que continha alguns fios brancos. Ela inclinou a cabeça para o lado, liberei minhas presas e mordi o local delicadamente, porém mesmo assim, ouvindo um pequeno gemido de dor vindo do fundo de sua garganta.
Suspirei, percebendo o elfúvio de Tulipas invadirem minhas narinas, uma miscelânea de aromas que me fizeram afundar mais ainda, os dentes em seu pescoço.
Enigmáticamente, tudo na mulher me fazia lembrar Bóris.
O primeiro jorro de sangue inundou minha boca, era quente e doce, tão doce como nenhum outro sangue que me lembro de ter bebido. Dando goles longos e fortes, passei as mãos a volta de seu pescoço longo, virando a mulher de frente para mim, aproximando mais do que pude seu corpo já débil para perto do meu, esmagando seus seios em meu abdômen.
Não me atentei para seus pensamentos ou desejos. Eu na verdade, não pensei em nada enquanto bebia a essência de sua vida. Nada me faria parar, afinal, eu agi com indiferença, visto que ela me ofereceu o próprio sangue, ansiando para que eu lhe servisse de ponte para a morte.
Ela agarrou meus cabelos, enfiando os dedos na raiz dos fios e os puxando firmemente. Soltei os dentes de sua carne e mordi meus lábios, depositando um beijo na ferida, deixando meu sangue cicatrizar a mordida. Caminhei com os olhos pelo seu rosto, o que me fez ofegar e trazer sua face mais para perto de meus olhos, constatando que, em uma de suas orelhas, longos brincos de ouro brilhavam, retorcidos em dois triângulos ligados, junto com vários outros brincos que adornavam a cartilagem.
Passei os dedos pelas madeixas negras tirando-as do rosto fino e bebendo a beleza das estrelas que transbordavam constelações em suas bochechas. Os lábios cheios contrastavam gentilmente com o nariz fino e seus olhos azuis desbotados que já permaneciam virados.
Apenas me lembrei de Bóris, era o único nome que ecoava em minha mente enquanto olhava para aquela mulher.
O rosto dela me fez crescer uma angústia colossal dentro do peito, uma sensação de pânico e culpa corroeu meu corpo tão profundamente, que joguei a mulher ao chão. Observei sua queda, como o pincel que ela mesma havia jogado, como uma pequena boneca de pano.
Aquela sensação era um pressentimento.
Um terrível pressentimento.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro