Capítulo 43. O Corpo Vivo e a Alma Podre de Bóris
"A Preocupação dobrou as sobrancelhas de Lilith.
'Eu não sei o que fazer para você Despertar,
porque você verdadeiramente é Amaldiçoado por seu Pai.
Se eu fizer isso, você poderia morrer. Você poderia mudar para sempre.'"
O Livro de Nod
A atmosfera naquela mansão enorme era fria e sombria. O cheiro de madeira velha estava enraizado profundamente em todos os cantos daquele lugar e seus pés doíam por conta do chão frio.
Bóris conseguia ver que o local era extremamente limpo, os móveis brilhavam e curiosamente, apesar da neve pintando o ambiente de branco fora da janela, haviam flores frescas, recém colhidas e cheirosas dentro dos vasos sobre as cômodas.
Ele ainda segurava a capa de Carmilla sobre seu corpo, apertando o tecido pesado em seu peito.
A vampira estava de costas para ele, ela estava mexendo na lenha em brasa dentro da lareira, atiçando o fogo que aos poucos começava a lamber a madeira cortada.
- Eu não tenho criados nesta casa. Não costumo usá-la e não pude me preparar para recebê-lo pois sua presença foi precipitada. - Ela falou, se virando depois de largar o atiçador acima da lareira e se sentando na cadeira estofada de verde jade na ponta da longa mesa de jantar, enquanto rastejava para seu colo, uma cobra albina enorme e longa enrolada no chão ao lado da vampira. - Caso você queira, eu posso contratar alguns para cuidar de você-
- Eu não quero mais nada de você. - Ele respondeu rápido sustentando seu orgulho, olhando para os olhos frios e incrivelmente bonitos de Carmilla. - Por que você veio me ajudar?
- Ela não me mandou, se é o que está pensando. Eu o trouxe por conta própria.
- Por que? - Bóris rangeu os dentes.
Ele não sabia o que aquela vampira estava pensando e não gostava da ideia de permanecer tão perto dela, apenas deixou que ela o tocasse antes porque estava entorpecido pelo rosto vermelho e molhado de Diego.
Podia sentir o cheiro dela, aquele cheiro gelado e de certa forma acolhedor, como se fosse jasmim emanando de sua capa preta. Bóris queria jogá-la no chão, mas ele estava nu, com frio e além de tudo, não havia mais nenhum lugar para ir.
Miserável, como sempre.
Ele mordeu os lábios enquanto a vampira o olhava curiosa. Sua boca vermelha subiu em um sorriso discreto e zombeteiro.
- O motivo? Bem, acho que eu senti pena de você. - Disse Carmilla inclinando a cabeça para o lado, deixando a expressão de Bóris sombria.
- Mas eu não quero sua pena. - Respondeu rangendo os dentes.
- Então o que você quer? - Ela perguntou levantando uma sobrancelha, impaciente. - Você pareceu tão firme com a ideia de me acompanhar mais cedo. O que mudou?
- Eu não tinha uma escolha. Ou eu vinha com você ou eu prejudicava mais aquelas pessoas. Eu não iria escolher a segunda opção. - Bóris apertou a capa com mais força, as veias de suas mãos e testa saltaram enquanto se lembrava do cheiro de carne queimada. Seu rosto estava sujo de fuligem.
Bóris continuou a alimentar sua fúria por alguns segundos, mas um vento frio e cortante entrou pela janela que se abriu sozinha com um gesto dos longos dedos de Carmilla. A neve que voou com o vento para dentro da casa, pousou em seus longos cabelos ruivos e nos seus cílios, causando-lhe um arrepio incômodo.
Ele virou o rosto, limpando as bochechas e o cabelo, suavizando a expressão e depois olhando curioso para seus dedos sujos de preto, percebendo que ele estava todo manchado.
Carmilla suspirou.
- Quando você nasceu, Lilith trancou parte do sangue dela de dentro de você para que coisas assim não pudessem acontecer tão cedo. - Explicou a mulher. - Mas você incitou a fúria dela, e como punição, ela libertou o sangue Lilin dentro de você.
Bóris rangeu os dentes, apertou-os uns nos outros até doer, até que estivessem prestes a quebrar.
Que tipo de pessoa cruel faria aquilo?
- Qual foi o sentido disso? - O ruivo olhou para baixo e mordeu a língua engolindo o soluço, tentando impedir que sua voz entrecortada se parecesse mais frágil do que aparentava.
- Ela queria que você deixasse aqueles ciganos. - Carmilla olhou suas unhas afiadas. - Você negou sua ordem na primeira vez, então ela conseguiu outro modo de você fazer sua vontade. Foi uma manipulação.
Então foi aquilo.
Ela o havia feito matar as pessoas de sua família.
Ela o havia obrigado a cometer um massacre.
Ele havia matado.
Bóris rangeu os dentes de novo.
Um novo sentimento havia começado a devorar seu coração.
- Enfim, eu virei aqui para vê-lo duas vezes por mês e ajudá-lo a suprimir o sangue de Lilith. - Ela se levantou, ajustando a fenda de seu vestido mostrando a coxa branca. A cobra se arrastou atrás dela quando a vampira parou na frente de Bóris. - O seu cheiro é muito forte. Isso pode ser bom algumas vezes, mas pode lhe dar grandes problemas quando você não controla a quantidade de seus feromônios.
- Feromônios? - Ele perguntou.
- É a sua essência. Ela pode ser liberta quando você quiser manipular os sentimentos ou o corpo de alguém. - Carmilla tomou uma tulipa do vaso de ouro sobre a cômoda e estendeu para Bóris, que pegou a flor hesitante. - Quando você não controla os feromônios, a quantidade acaba prejudicando a mente da pessoa que pode ser sensível á eles, humanos normais são um exemplo. Aquele garoto mais cedo, você estava inconscientemente liberando feromônios de todos os tipos para ele desde que o conheceu, isso acabou confundindo a cabeça dele.
- Mas você disse que Carmilla havia suprimido o sangue dela de meu corpo. - Bóris falou rouco lembrando de Diego. - Ele já estava... agindo estranho há muito tempo.
- Ela trancou apenas uma parte do sangue para deixá-lo fraco. - Ela sorriu. Bóris levantou os olhos para olhá-la, seu rosto distante, como se aquela mulher tivesse sido esculpida diretamente pelas mãos de alguma divindade.
Carmilla juntou as mãos e dedos elegantemente em frente á sua barriga.
- Você sendo um humano e ao mesmo tempo um Lilin descendente direto de Lilith, faz com que seus feromônios sejam mais fortes e afete a todos nós. - Ela suspirou se abaixando para olhar o rosto de Bóris. - Agora mesmo você está nervoso. Seu cheiro está mesmo muito forte.
Bóris juntou as sobrancelhas sem saber o que dizer, aquelas coisas embaralhando sua mente.
- Mas não se preocupe com isso agora, de qualquer forma, feromônios vindos de machos de qualquer espécie não podem me afetar. - Ela sorriu vendo os olhos inquietos do menino.
Bóris esfregou um pé no outro, seu cabelo molhado grudando no rosto.
- Você sabe me dizer quantos deles sobraram? - Falou sussurrante. Carmilla inclinou a cabeça, deslizando os cabelos platinados sobre os ombros cobertos de renda negra. - Quantos do acampamento sobraram?
- Eu não sei. - Ela suspirou.
Bóris mordeu seu lábio até tirar sangue quando um silêncio inquietante de estabeleceu. Carmilla o olhou indiferente, como se este fosse um filhote de cachorro assustado, sujo e doente que poderia manchar ou morder a barra de seu vestido caro e impecável.
- Esquente água e vá tomar um banho ou você ficará doente. - A vampira lhe deu as costas enquanto se abaixava e levantava a serpente com os dedos longos e pálidos, colocando o corpo do animal a volta de seu pescoço e cintura. - Se você morrer por isso, Lilith fará de minha imortalidade um inferno.
Em instantes, ela fez outro círculo no ar com suas mãos desnudas, mas desta vez nada aconteceu, causando um pequeno tremor dos ombros da vampira. Na terceira tentativa, uma pequena fenda começou a se romper no ar e um portal redondo, alto com as bordas trêmulas e escuras se abriu para algum lugar que Bóris não conseguiu ver.
Carmilla entrou nele e foi embora.
Bóris estava completamente sozinho novamente, os flocos de gelo da janela caíam aos montes ao lado de seus pés.
Ele mal se lembrava daquela sensação do vazio escuro á sua volta e sentiu um pânico crescente em seu coração. Ele conseguia até mesmo ouvir o barulho dos sapatos de sola grossa de seu pai batendo firmemente contra o chão de madeira de sua casa na infância, sentia até a dor de barriga que aquele barulho lhe causava.
Naquele momento, ele descobriu que sempre esteve sentindo aquela sensação lhe corroendo por dentro, mas não tinha tempo de se atentar á ela porque sempre estava rodeado de pessoas, porque Diego sempre estava com ele.
Era como uma ferida suja e infeccionada cuja aparência feia e fétida fosse coberta por um curativo, e então o sentimento de estar tudo bem fosse apenas um convencimento de si mesmo para acalmar sua mente.
A ferida ainda estava infeccionada, pus já estava espirrando daquela abertura suja que se tornava cada vez mais podre, mas um curativo cada vez maior parecia ser o suficiente para escondê-la e seguir sua vida insignificante. Se ninguém visse aquele pedaço podre, ninguém sentiria nojo.
Mas agora a ferida estava doendo, seus ombros tremiam porque o calor da multidão que ele seguia havia se esfriado. As poucas pessoas que se importavam com ele ao menos um pouco, haviam desaparecido por culpa dele.
As pernas de Bóris pareceram fracas, ele caiu de joelhos naquele salão sozinho.
Ele não conseguia chorar.
Nos dias que se passaram, Carmilla cuidou dele como havia prometido, porém sempre mantendo distância daquele pequeno animal, lhe deixando comida e lenha para que ele mesmo preparasse suas refeições enquanto verificava o quanto aquele garoto estava progredindo para suprimir o poder doloroso.
Bóris sentia que aos olhos de Carmilla, estava doente. Imaginava que ela o enxergava como um leproso, como se seu corpo estivesse coberto de pústulas de pus e feridas. Ela não se atrevia a chegar perto dele, o máximo que ela fez foi tocar seu ombro no dia em que o levou para a mansão. O rapaz ficou ainda mais boquiaberto e irritado no dia em que ele tentou lhe devolver a capa lavada, porém com desprezo nos olhos, Carmilla se afastou do tecido dobrado que Bóris estendia e mandou que ele jogasse aquilo no fogo.
Bóris estava olhando para o rosto dela enquanto ele segurava um grande saco cheio de neve dentro sobre sua cabeça ruiva. Ele estava sentindo muita dor, e pelo que Carmilla disse, aquela dor era o sinal de que Bóris não estava acostumado com o poder do sangue Lilin e que possivelmente iria piorar se ele não progredisse no exercício dos seus pensamentos.
- Se houver dor pior, eu prefiro morrer. - Os olhos dele estavam incomodados com a claridade das velas, então Carmilla gentilmente apagou todas elas sem fazer nenhum movimento, deixando apenas uma sobre a mesa onde estava sentada em frente ao garoto.
Bóris estava olhando para o rosto de Carmilla. Ela era muito pálida, suas maçãs do rosto eram altas e seu queixo afiado sempre apontando para frente, a fazia parecer mais majestosa do que nunca. Os belos olhos dela eram sempre semicerrados, dispostos em seu rosto como um par de olhos de fênix, como se ela estivesse sempre entediada.
Ele se perguntava como era possível que, além do formato do rosto dela, os dois pudessem ser tão diferentes fisicamente.
- O que está olhando? - Ela perguntou irritada causando um sobressalto no garoto.
- Você disse que é minha irmã. - Falou ele sem hesitar. - Eu não herdei nenhum traço físico do... do homem que Lilith escolheu para ser meu pai além da cor de meus olhos. Eu percebi que sou exatamente como ela, mas minha expressão é mais bruta e afiada porque sou homem. Já sobre você, deveria seguir a mesma lógica. Nós dois não deveríamos ser mais parecidos?
Carmilla arregalou os olhos por um momento e depois surpreendentemente sorriu. Por um momento, os fios dos cabelos platinados dela escureceram e se tornaram pretos como carvão, depois fio por fio em uma incrível velocidade, viraram amarelos claros, depois queimados e por fim, ruivos da cor alaranjada como são os cabelos de Bóris. Mas ele não pode ver como eram em sua cor natural junto com seu rosto, pois antes que a cor completasse todo seu cabelo, eles rapidamente voltaram á cor platinada.
Carmilla levantou e olhou a mão que também havia se revelado da cor de mel escuro até metade o pulso, mas agora voltava ao disfarce pálido mortal e perolado.
- Eu realmente me pareço com você. - Desviou os olhos para Bóris. - Nós dois somos idênticos á ela. - Suspirou voltando sua mão para a mesa. - Mas eu tenho a feliz escolha de não querer isso.
Bóris teve que fazer esforço para fechar a boca e desviar os olhos dela.
A vampira passava poucos minutos com Bóris, suas conversas não passavam de uma troca de palavras em que Carmilla lhe dizia instruções rasas de como suprimir o sangue de Lilith para sua cabeça não doer.
- Você não vai melhorar se não seguir o que eu digo. Precisa apenas ocupar sua mente com outra coisa ou então esquecer completamente o que está incomodando você. - Ela falou recebendo uma sobrancelha levantada de Bóris enquanto o garoto apertava mais o gelo contra a testa. - A raiva, o ódio, a tristeza e o ressentimento dão espaço para que o sangue Lilin dentro de você ache que está em perigo e entre em modo de defesa. Há algo incomodando você desde sempre que o faz estar em constante pânico?
Bóris lembrou daquele homem chamando seu nome, seu pai piscando os olhos azuis escuros e frios na direção dele, os bastões batendo e rompendo sua carne enquanto aquele velho o observava satisfeito.
- O que eu devo fazer para esquecer isso? - Ele perguntou. Ela segurou uma mecha platinada entre os dedos.
- Pense em um modo de matar isso dentro de você. - Ela falou.
- Oh, sim! Por que eu não pensei nisso antes? - Ele Falou sarcástico, sentindo que a cada vez que piscava os olhos, seus globos oculares doíam. - Que piada! Você claramente estava mentindo quando disse que me ajudaria quanto á isso!
Carmilla suspirou se levantando.
- Sentimentos humanos são um obstáculo. Quanto mais você se afastar deles, melhor. - Ela suspirou e lhe lançou um olhar de pena. - Quando você parar de ser um completo inútil cheio de dor, vou lhe ensinar a dominar seus feromônios. Isso é tudo.
Ela foi embora novamente.
Apesar de ser simples e aquilo parecer ridiculamente fácil, ele não conseguia.
Quando estava sozinho naquela mansão, Bóris se pegava contando os dias para que Carmilla voltasse.
Ele já havia andando por todo aquele lugar, e finalmente havia encontrado com espanto, algo que havia realmente gostado tanto, que se sentiu trêmulo de ansiedade.
Ele colocou várias capas e casacos pesados para sair na neve, deixando pegadas no gelo espesso com as botas de couro que Carmilla havia levado para ele.
Bóris caminhou bastante ainda dentro dos portões daquela mansão enorme, observando que onde ele estava, deveria ser um bonito jardim em época de primavera.
Os pinheiros estavam cobertos de neve, as várias fontes de pedra circulares tinham estátuas de sereias cheias gelo sentadas sobre o topo, derramando água de dentro de odres que seguravam nas mãos pequenas.
Bóris se aproximou da fonte maior, se inclinando em direção á água até que as pontas de seus cabelos tocassem parte dela, arregalando os olhos quando viu peixes vermelhos nadando dentro da água com uma fina camada de gelo quebradiço. Ele se sentou ali, na borda de pedra com os pés a centímetros da água congelada enquanto observava aqueles pequenos animais amarelos, vermelhos e brancos nadando de um lado para o outro.
Ao menos aquele pouco tempo havia ajudado a esfriar sua mente e sua dor de cabeça desapareceu por algumas boas horas. Aquilo havia melhorado um pouco seu humor, e quando Carmilla havia chegado no outro mês, havia pedido á ela ração para que ele pudesse alimentar aqueles peixes.
Ela revirou os olhos e, sem dizer que sua fonte era um sistema natural em que aqueles grandes peixes de alimentavam de outros menores que também viviam ali, por algum motivo ela se sentiu comovida e comprou a ração.
Bóris fazia muitas coisas durante o dia para fingir que não se lembrava das coisas que haviam acontecido, enrolando ataduras e curativos maiores em sua ferida mental. Contudo, quando a noite chegava, ele sempre acordava pela madrugada aos gritos.
Em um dos seus desesperos para fazer algo e ocupar sua cabeça, descobriu que gostava mesmo de cozinhar. Ele esquecia um pouco dos seus pesadelos enquanto cortava os pedaços de rabanetes; Enquanto temperava a carne, esquecia a dor de garganta por acordar gritando e sentindo as mãos queimadas de Dinna apertando seu pescoço; Enquanto cortava as pimentas e as colocava no azeite para fazer uma compota, esquecia de Diego carregando o corpo de Liu e jogando-o na floresta para ser comido por animais para livrá-lo da punição.
Esquecia o rosto culpado de Diego jogando aquelas palavras no rosto dele.
Bóris estava fazendo tudo tão rápido que derramou o azeite no chão e cortou seus dedos no processo.
No final do dia, ele se sentava em frente á lareira crepitante enrolado em um dos milhares cobertores grossos que havia encontrado nos armários da mansão.
O barulho do vento assobiando na janela o assustava, e quando ele não se atrevia a virar para esperar apavorado os olhos vermelhos daquela mulher que deveria chamar de mãe observando-o atrás da janela, ele se enterrava mais fundo naqueles cobertores, se perdendo na escuridão onde ninguém poderia alcançá-lo.
No final, ele ainda era uma criança perdida e abandonada. Não tinha as mãos de Brigitte para confortá-lo quando estava triste ou sentindo dor, não tinha mais os braços de Diego para envolvê-lo quando ele estava com medo do escuro, também haviam acabado os pequenos tapinhas no alto de sua cabeça pelas mãos de Petrônio quando ele levava a melhor nos treinos.
Tudo havia acabado.
A cabeça de Bóris começou a doer novamente, então ele engoliu as lágrimas que se recusavam a sair dos olhos.
Poucos dias depois, os peixes na fonte se tornaram monótonos e tão melancólicos quanto aquela paisagem branca. Mesmo que Bóris tentasse se agarrar naqueles animais, mesmo que tivesse dado nomes fantasiosos, títulos de príncipes e princesas á eles, sua cabeça já estava estragada demais.
Ele foi atrás dos animais aquáticos segurando o saco de ração quando não aguentava mais aquela dor no âmago de seu cérebro e esperava que eles o ajudassem como sempre. Contudo, Bóris não sabia o que havia acontecido quando tocou na água para alimentá-los naquele dia e poucos segundos depois, estavam todos com as barrigas brancas viradas para cima na água que antes fora translúcida, naquele momento estava caudalosa e preta segurando os cadáveres dos seus únicos amigos.
A solidão e o trauma começaram a comer sua mente como um verme devora um cadáver apodrecido, forçando Bóris a alimentar uma pequena ilusão contínua de conversar animadamente com Diego e Petrônio nos fins da manhã. Bóris lamentavelmente chegava a colocar dois pratos de sopa á mais na grande mesa oval, ria e contava piadas para sua imaginação.
Sua mente tentava protegê-lo de si mesmo, tornando aquelas sensações tão reais que Bóris conseguia ouvir a voz de Diego reclamando de sua comida, sentia Petrônio suspirar o vapor da sopa e agradecer enquanto virava o pote na boca e lhe pedia mais.
No meio de uma das conversas e de uma risada, ele estava terminando de contar uma história quando baixou o olhar e viu que ninguém estava na mesa, não havia ninguém segurando as colheres, ninguém nunca havia tocado naqueles objetos e as sopas já estavam geladas.
Estava prestes a se levantar e procurar pela dupla de pai e filho pela casa, mas ao chamar o nome de Diego, percebeu que estava sozinho.
Novamente, ele não conseguiu chorar e sua cabeça latejou tanto que pareceu explodir.
Naquela semana, Carmilla chegou na mansão com os braços cheios de compras, roupas e mais lenha, já que aquele garoto frágil odiava tanto o frio.
A vampira levantou uma sobrancelha quando ela chegou na mansão com planos de deixar as compras sobre a mesa e ir embora no mesmo momento, mas acabou se deparando com seu móvel manchado de preto, a ponta convertida em cinzas e três potes de sopa quebrados no chão de madeira.
Bóris estava de costas para ela, parado olhando a enorme janela triangular enquanto segurava seu punho esquerdo trêmulo, a manga da roupa desse braço, completamente queimada.
Ele não disse uma palavra enquanto Carmilla deixava as compras no chão, não respondeu nenhuma de suas perguntas enquanto ela caminhava até ele e parou atrás de seu corpo de pé em frente a janela.
- O que há para olhar tanto aí fora? - Ela perguntou irritada por perder aquela mesa tão cara e antiga. A vampira parou observando através do vidro, vendo apenas neve.
Camilla se aproximou das costas de Bóris com raiva, puxou o ombro quente do garoto, que logo caiu frágil e mole em suas mãos com o olhar atordoado, falando palavras indecifráveis como se houvesse um nó em sua língua.
A mão dela foi até a testa do ruivo.
- Febre? - Ela falou revirando os olhos. - Por que vocês têm que ser tão quebradiços sempre?
Ela velou o sono de Bóris por uma semana, cuidado daquele garoto humano e frágil.
Cada vez que lavava seu corpo inconsciente rachado de cicatrizes escuras e trocava suas roupas, se perguntava se aquele menino não era apenas uma criança boba e inútil. Ela tentou se lembrar de sua infância, mas não havia nada que pudesse captar entre os fragmentos espalhados de sua cabeça.
Ela não se lembrava bem de como crianças deveriam ser cuidadas ou como elas pareciam mais frágeis, também não havia se dado conta de que Bóris ainda era uma delas.
Em meio aos delírios por conta da febre alta, ele se remexia na cama e chamava pela palavra "mãe", contudo Carmilla sabia que ele não estava se referindo á Lilith, pois logo depois ele sorriu e soltou um nove avulso: "Brigitte".
Bóris estava pensando naquela mulher bochechuda e gentil que cuidou dele desde que era apenas uma criança.
Ele não se lembrava muito das boas coisas daquela época, mas durante seus delírios enfermos, ele se lembrou do rosto de Brigitte.
Ela sorria para ele quando aquele menino contava as coisas que havia descoberto sobre as borboletas coloridas do Jardim que ele tanto adorava. Ela o ajudava secretamente á caçar os insetos alados, e no fim do ano, os dois fizeram um grande mural nomeando as diversas borboletas coloridas conforme suas espécies.
Brigitte também o havia ensinado a tocar a rabeca. Ela havia levado o violino de sua própria casa para que Bóris pudesse aprender a tocar aquele instrumento, mas quando ele finalmente soube reproduzir as canções, encontrou amor por aquele som e queria mostrar a música nova que aprendeu para Brigitte, todos no palácio estavam revirando as coisas do quarto dela aos gritos.
Quando Brigitte foi enforcada por tentar matar seu pai, ele desmaiou repetidas vezes de tanto chorar em frente ao corpo dela suspenso pela corda no pescoço. Alguém sempre vinha levá-lo inconsciente para sua cama e ele sempre voltava pouco tempo depois.
O corpo foi exposto por dez dias, e em todos eles, nenhum pedido de Bóris para ver Brigitte foi negado, ele sabia que seu pai estava gostando de seu sofrimento, que seus pedidos estavam sendo atendidos apenas porque a posição dele ajoelhado naquela lama enquanto chorava a morte daquela mulher, deixava seu pai feliz.
Não havia ninguém na praça de execução enquanto Bóris estava lá, seu pai não gostava que os outros pudessem vê-lo então não permitia que ninguém entrasse naquele espaço ou esticasse o pescoço para olhar. Tal coisa alimentou a fúria dos filhos de Brigitte que queriam ir até a mãe e implorar de joelhos e rostos enfiados na lama ao czar para enterrá-la, mas estavam sendo impedidos por causa do jovem príncipe que não se retirava de lá até que desmaiasse, mas ele acordava e voltava tão rápido que não dava tempo dos homens irem até a mãe.
Bóris conseguiu a fúria dos filhos de Brigitte e a culpa pela morte da mãe deles.
Quando o corpo da mulher já estava escuro e inchado, a pele mole se descolando dos músculos e bolhas de líquido estourando dela atraindo animais e exalando o cheiro de podridão, Bóris foi segurado e levado aos berros para dentro da mansão.
Enquanto ele gritava nos braços do soldado de seu pai, o corpo de Brigitte foi colocado sem nenhum cuidado em uma carroça e levado junto com outros enforcados por crimes de roubo e assassinato.
Os filhos dela tiveram tempo de ver apenas o estado podre e caudaloso do corpo de sua mãe indo embora junto com a escória do país como se ela fosse um pedaço de merda.
Bóris ainda estava chorando no ombro do soldado, tentando descer quando no meio de seu desespero animalesco, mordeu com raiva a orelha do homem retirando sangue. Quando ele gritou e o soltou, o ruivo caiu no chão sujando sua roupa, mas sem se importar correu até o meio das pessoas que estavam assistindo, algumas empregadas gritaram e pararam para tentar segurar seu corpo pequeno e fraco, mas ágil demais para ser apanhado.
Todos abriram caminho para aquele garoto de cabelos vermelhos correr até a carroça com os corpos podres dos chamados traidores. Bóris queria dizer que Brigitte não deveria estar entre eles, que ela era um anjo e ele queria convencê-la voltar á vida, que ela não estava realmente morta porque anjos não poderiam morrer.
Ele não percebeu que estava chamando o corpo morto na carroça coberto de moscas pelo nome de mãe.
A maioria ficou com pena ao mesmo tempo em que ficavam surpresos enquanto viam aquele menino pela primeira vez, menos os filhos de Brigitte, que olharam para ele com fúria enquanto corria para onde estava o corpo.
Antes que ele pudesse pular e pegar a mão inchada de Brigitte para colocar em sua bochecha e tentar senti-la novamente, aquele soldado o tomou pelo braço, levando-o de volta arrastado.
- Mas por que estão fazendo isso? - Ele estava berrando enquanto soluçava, as grossas lágrimas descendo em suas bochechas.
As pessoas que assistiam a retirada do corpo tiveram que parar e olhar aquele jovem senhor cujo rosto ninguém nunca havia visto. Ele era uma criança tão bonita, mesmo quando chorava.
- Aquele é o filho de nossa Majestade. - Uma mulher falou surpresa entre os gritos estridentes de Bóris.
- Uau, ele é mesmo uma graça! - Outro respondeu. - Me pergunto o motivo de deixá-lo trancado no Palácio por tanto tempo.
- Este garoto foi o culpado da morte de nossa mãe, não diga que ele é uma graça! - Um homem falou. - Ele agiu como o príncipe mimado que é, se recusou a nos deixar ver o corpo dela por pura pirraça e ainda tem coragem de chamá-la de mãe.
- Você quer ser morto também? Pare de falar!
Bóris não queria ouvir o que os outros estavam falando, estava desesperado tentando se desvencilhar das mãos daquele homem que o levava para longe de Brigitte.
- Eu quero a minha mãe! Me levem com a minha mãe! - A garganta dele começou a arranhar. - Eu quero ir para onde minha mãe foi! Eu quero ir para o céu ficar com ela!
Mais tarde, ele recebeu aqueles golpes nas mãos. A palmatória de madeira bateu trinta vezes em seus dedos até que dois se deslocaram e três se quebraram. Os bastões bateram em suas costas mais trinta vezes, até que ele desmaiou sem voz para gritar.
Ele estava chorando enquanto Carmilla limpava sua testa molhada de suor. Surpreendentemente ela sentiu que não tinha mais nojo de tocá-lo.
Bóris sentiu mãos quentes em seu rosto, depois outro calor envolveu seu corpo como se estivesse o abraçando, sentando na cama e segurando-o no colo como se ainda fosse uma criança. Ele não conseguia ver claramente quem estava cuidando dele, mas então depois de pensar com sua mente confusa, parou de chorar.
Ele parou de chorar como uma criança porque achou que estivesse finalmente morto e Brigitte estivesse com ele.
Mais tarde ele acordou em seu quarto, a lareira estava ligada e crepitando enquanto iluminava parcialmente o ambiente. Seus olhos pouco embaçados enxergaram Camila parada na porta, as sombras dificultando seu rosto de ser visto.
- Há quanto... quanto tempo você está aí? - Perguntou com sua voz rouca de tanto gritar, levantou os braços que pareciam pesar muito para limpar os olhos inchados.
- Eu acabei de chegar. - Carmilla desviou os olhos e Bóris ficou satisfeito. Quanto menos pessoas tivessem visto sua loucura, melhor.
Ele se perguntou por quanto tempo dormiu sem ter ideia de que passou naquela luta por quase uma semana sendo alimentado, cuidado, esquentado e consolado por Carmilla.
- Você parece mal. - Ela falou enquanto Bóris se levantava da cama com dificuldade. Ela suspirou de alívio por ele não perceber as roupas trocadas. - Está com fome?
- Como um Strigoi como você saberia cozinhar? - Perguntou mal humorado, mas curiosamente sentia que seu estômago estava cheio e sua boca continha o gosto salgado de salsinha e o ardido do gengibre.
Ela não deu tempo para Bóris reclamar, saiu por alguns minutos e voltou com um grande pote de sopa de cogumelos e nozes da grande panela que havia feito mais cedo, havia também um pedaço de pão branco ao lado da bandeja.
Ele semicerrou os olhos quando Carmilla colocou a bandeja em seu colo. Ele podia enxergar apenas a luminosidade da lareira contra os braços e cabelo da mulher.
- Se você morrer, Lilith não irá me deixar em paz. - Ela falou. Bóris engoliu em seco e virou para o pote, sentindo o cheiro agridoce subir em suas narinas. - Não vou te envenenar.
Carmilla suspirou olhando o rosto de Bóris. Ela havia esquecido como era trabalhoso cuidar de uma criança.
Bóris virou a tigela na boca sem ter o trabalho de tomar as colheres, se sentindo surpreso por aquilo estar bom. Carmilla engoliu em seco com vontade de repreendê-lo, mas ficou quieta enquanto observava.
- Nós teremos uma visita daqui a dois dias quando o sol se pôr. Esteja atento e apresentável. - A vampira se virou e saiu sem ver o rosto de Bóris se contorcer em uma careta.
Carmilla estava incomodada com a parte da frente de seu vestido formigando quando encostava em sua pele. O tecido estava completamente encharcado das lágrimas e do muco do nariz de Bóris quando teve que abraçá-lo para que parasse de bater a cabeça, os braços e pernas contra a parede e cama.
Ela amaldiçoou baixinho quando percebeu sua manga suja do caldo salgado da sopa de batatas e gengibre que havia tentado dar á Bóris no dia anterior, mas ele cuspiu a maior quantidade que pode nas suas roupas.
Ela não conseguiu evitar a expressão se contrair em nojo, mas algo havia mudado. Antes, ela teria deixado que Bóris estourasse sua cabeça contra a parede e quebrasse seus dedos na madeira da cama apenas para não ter o trabalho de tocá-lo, agora ela pensava que resolveria aquele problema ínfimo trocando o vestido e nada mais.
Além de tudo isso, a vampira estava incomodada com o fato de ter acidentalmente compartilhado das lembranças trágicas de Bóris quando tocou nele. Imaginou se aquilo havia acontecido por conta dos laços sanguíneos que os uniam, por conta da única mãe que ambos os demônios possuíam.
Uma lágrima teimosa desceu vermelha de seus olhos.
Quando sentiu cócegas em sua bochecha, a captou sem expressão com a ponta do dedo indicador, olhando aquela pequena gota cor de rubi que há muito tempo não aparecia.
Bóris desceu do quarto no final da tarde se aprontando para pegar o esfregão e limpar toda a mansão até seus músculos ficarem rígidos, esvaziar aquela fonte e fazer um funeral digno para aqueles peixes, mas se assustou quando viu aquela mulher de cabelos platinados segurando várias flores cheirosas debaixo do braço e trocando as que estavam murchas nos vasos pelas frescas em sua mão.
Carmilla ainda estava lá com ele.
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Oi gente!
Bem, espero que vocês explodam a cabeça com esse capítulo que explica bastante coisa, tipo o cheiro de tulipas que o Orfeo menciona na maior parte dos capítulos. Como ele é também parte Lilin, ele possui esse poder dos feromônios que os vampiros usam pra fazer as vítimas se calarem na hora que estão se alimentando ou também pra atrair as vítimas.
Poreeeeem diferente dos vampiros, o Bóris pode usar os feromônios tanto nos humanos quanto nos vampiros, nos Upirs, licans, bruxas e etc.
Curiosidade: Diferentemente dos vampiros que podem usar o feromônio com todos os humanos, os feromônios do Bóris não podem afetar VAMPIROS que se interessam apenas pelo gênero oposto ao dele, o que é muito raro, até porque os vampiros geralmente se atraem pelas pessoas e pelos pares vampiricos sem obtenção de amor romântico, porém há exceções né gente? Existem vampiros românticos nesse mundo cruel.
*Qualquer humano é suscetível ao feromônio de manipulação do Bóris*
(Tem uma charada nesse capítulo que se vocês ligarem com um outro antigo, conseguem resolver um mistério imenso, tá?)
Por favor, sofram comigo, com o Bóris e com o Orfeo que tá assistindo.
Bóris pra Carmilla:
00:00 - Não quero nada de você!
00:01 - Pelo amor de Deus minha irmã, me compra um saco de ração pra eu dar pro seus peixe.👁💧👄💧👁
Se estiverem com dúvidas é só perguntar, e sim, eu estou matando minha sede com as lágrimas de vocês. Quanto mais vocês chorarem, mais minha imunidade aumenta.
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