Capítulo 14. Confinamento
"
Houve um rei de Thule, que era
mais fiel do que nenhum rei.
A amante, ao morrer, lhe dera
um copo de oiro de lei.
Era o bem que mais prezava
e mais gostava de usar:
e quanto mais o esvaziava
mais enchia de água o olhar.
Quando sentiu que morria,
o seu reino inventariou,
e tudo quanto possuía,
menos o copo, doou.
Depois, sentando-se à mesa,
fez os vassalos chamar
à sala de mais nobreza
do castelo, sobre o mar.
E ele ergue-se acabrunhado,
bebe o último gole então
e atira o copo sagrado
às ondas que em baixo estão.
Viu-o flutuar e afundar-se,
que o mar o encheu de seus ais.
Sentiu a vista enevoar-se:
E não bebeu nunca mais!"
Johann Wolfgang von Goethe
Meus pés se acomodavam firme sobre o telhado de uma igreja tão alta, que se ostentava uma vista ampla de Roma, por isso Mephisto gostava tanto de andar sobre a cobertura, deixando-me trancado nas ruínas que mantinha seus vampiros abrigados, mas muitas vezes eu conseguia desviar de sua presença para andar acompanhado apenas de minha sombra. Ele sempre me encontrava quando eu queria, quando não mandava alguns de seus carrascos para me levar embora.
- Oh, finalmente o achei, Mestre. - Ele estava sentado em um dos braços da cruz que havia acima da torre, sorrindo como uma criança. Segurou o queixo com um dos punhos, e os cotovelos apoiados na coxa. - Devíamos parar de brincar de pique esconde. Pode acabar sendo perigoso para nós.
Voltei a encarar o céu noturno com traços laranjados e o róseo brilho poente, os quais mostravam que a manhã já chegava. O vento fresco chicoteava meu rosto cruelmente, puxando os fios soltos de meus cabelos amarrados.
- Já deu uma olhada em como tudo tem mudado desde que chegamos? - Já ao meu lado, colocou a mão sobre meu ombro, apertando o tecido com furor. - Em apenas um mísero ano, nós metamorfoseamos toda esta cidade.
Voltei a olhar para baixo, com as carruagens que tomavam as ruas coloridas e brilhantes como relâmpagos.
- Por favor, volte comigo antes do amanhecer. - Se aproximou novamente, desta vez sem o sorriso costumeiro e virou a cabeça para baixo. - Eles já sabem que estamos aqui.
Levantei meus olhos para encará-lo por poucos segundos, antes de virar o rosto contra o vento e novamente para baixo, observando oito pessoas vestidas de hábitos religiosos acinzentados, caminhando abaixo da igreja em que estávamos no telhado.
- Querem que partamos. - Um deles levantou a cabeça, mirando os olhos de Mephisto.
Não sei se a pessoa encapuzada conseguiu sequer pensar que havia alguém ali, pela maneira que nós deslocamos rapidamente do local.
***
Ele fez o que quis, construiu seu império sobre túmulos, ergueu seus castelos com ossos e os pintou de vermelho com sangue; Transformou crianças e velhos despudoradamente enquanto matava sem nenhuma restrição. Eu, como prometi, apagava seus rastros repugnantes enquanto aos poucos ganhava sua confiança.
Mephisto montou exércitos de vampiros sob as sombras das igrejas do Vaticano, traçou estratégias e conseguiu espiões habilidosos que levavam a ele detalhes sobre o tesouro incógnito que procurava.
Quanto aos outros três vampiros, eu pude convencê-lo tirá-los das celas fétidas e deixá-los selados em aposentos confortáveis, porém separados. As portas de prata os impedia de sair para qualquer lugar, mas eu podia visitá-los sempre que quisesse, e muitas vezes mandava-lhes cartas por meio de guardas corruptos que aceitavam suborno, apesar de que Ettore não gostasse muito de minha presença, então minhas visitas aos seus aposentos se tornaram pouco frequentes em comparação aos demais.
Os dois cúmplices que haviam se tornando quase amantes, se desentendiam quase todos os dias e todas as horas, especialmente quanto aos planos impulsivos de Mephisto, os quais Elizabeth não concordava e dizia que por não ouvi-la, seus espiões estavam aparecendo mortos como ossadas brancas e velhas com dentes de sabre, estendidos pelas ruas e atraindo a atenção de parte dos religiosos que tinham conhecimento sobre nós e o medo dos cidadãos.
Certa vez escutei uma discussão dos dois no enorme salão em que Mephisto escondia seus mapas marcados por círculos sobre países, ao lado vários nomes de santos. As portas estavam abertas e Elizabeth furiosa, de sua boca escorria sangue e se transfigurava em uma careta de ódio. Os cabelos grudaram em sua testa que transpirava suor enquanto entre seus dedos, estavam pedaços rasgados de um amarelado papiro antigo.
- Deveria me escutar mais! - O vampiro andava para longe da mulher, que insistia. - Se me ouvisse, nada disso aconteceria!
- Cale a boca. - Rosnou pausadamente, a encarando em sua forma mais bestial.
- Você acha que pode fazer tudo sozinho? - Cravou as unhas no braço de Mephisto, que grunhiu como um animal, apertando as pálpebras depois de lançar um olhar colérico sobre os dedos cheio de anéis que se grudaram à sua roupa como as pinças de um caranguejo. - Ora, se transforma em um louco quando tem de enfrentar a realidade, é por isso que mantém Orfeo aqui contra sua vontade, porque não consegue fazer absolutamente nada quando está sozinho, não é? - Alguns que observavam a discussão viraram seus rostos para mim, e surpreendentemente isso pareceu
envergonhar Mephisto.
- Solte-me agora. - Todos estavam horrorizados com a cena, as conversas se transformaram em um silêncio sepulcral e o piano cessou.
Quanto a mim, me mantinha inabalável junto ao umbral. Alguns dos recém criados cravaram um olhar pavoroso sobre a corajosa vampira que desafiava Mephisto. Discretamente, um menino com escoriações nos braços, reclamou sobre a quantidade de vezes em que limpara aquele chão de sangue e que naquele dia, não seria diferente.
- É por isso que seus soldados somem todas as noites. O seu descaso é uma incúria para as almas clamorosas de nossos irmãos mortos. - Levantou-se na ponta dos sapatos, aproximando os lábios do ouvido do vampiro. - Você é fraco, covarde, um estúpido mesquinho e egoísta. O que Lilith deve pens-
Mephisto transferiu um forte tapa no rosto de Elizabeth, que rodopiou pelo salão, e bateu as costas em uma das colunas. Ela se encolheu quando virou o rosto para vê-lo caminhar até sua direção, abafando com as mãos um soluço.
- Não diga este nome em minha presença. - Abaixou-se ao lado da mulher - Eu sou o único deus desta maldita terra.
Enquanto ele a olhava, Elizabeth estava tensa, sua dureza havia derretido como cera de vela, fez com que se tornasse tão vulnerável como um filhote de animal.
Com ela ainda no chão, o mais novo cravou os dedos no braço da mulher sobre o tecido de veludo púrpura, e com a outra mão, levantou a cabeça da mesma pelos fios cacheados, encarando os olhos castanhos de Elizabeth.
- Eu poderia jogá-la sob o sol, dentro de uma fogueira, ou até dá-la como um presente para meu confrade Sebastian. Adoraria ver o que ele poderia fazer a você pelo ódio que o consome. - Soltou os cabelos de Elizabeth e agarrou sua jugular, fincando as unhas na pele morena da moça e retirando fios de sangue. - Sua voz me irrita e seu cheiro me enoja. Não toque em mim novamente.
Após isso, saiu do salão sem dizer nenhuma palavra a mais, nem mesmo olhou para mim, e isso me deixou temeroso quanto as pessoas da cidade. Tal desconfiança me obrigou a segui-lo, confirmando a dúvida de ter mais uma vez que limpar seus rastros. A carnificina que ele deixava pelo caminho era como migalhas de pão comido por um mendigo faminto. Digo isso sem demasia alguma.
***
Alguns meses triviais passaram, apesar das mortes dos soldados de Mephisto terem aumentado juntamente com sua agressividade e indignação. Eu permaneci sem nenhuma descoberta a respeito das igrejas e nomes de santos que Mephisto escrevera nos mapas e me censurava por isso, também por pensar tanto em tais coisas, elas não entravam em minha mente. Todavia as mãos céleres de Ângela - A cria de Pônzio - rabiscaram uma cópia dos papéis, as coordenadas e os nomes das igrejas esparsas pelos continentes. Ela fazia um ótimo trabalho, me enchendo de papiros amarelados e quebradiços escritos em línguas antigas, então eu tentava fazer o meu melhor enquanto traduzia alguns que não faziam o mínimo sentido quando colocados juntos, apesar de que a maioria deles aparentassem textos bíblicos.
Pônzio havia sido morto há vários meses atrás desde a última vez que o vi passar pela porta de meus aposentos tentando unir um dos dedos decepados á mão branca. Mephisto o havia acusado de traição e o jogou por terra sob o sol, mas ninguém viu tal julgamento, apenas foram recolhidos seus ossos e enterrados aquém dos tijolos que haviam nas paredes. Ângela procurava vingança a respeito de seu criador, ainda que tenha sido acolhida por Mephisto e este, demonstrando uma falsa bondade, concedido á menina um perdão.
Naquele momento, eu mantinha os rabiscos do mapa em uma das mãos, sublinhando com os olhos as letras quase legíveis da vampira mais nova. Não entendia muitas coisas sobre mapas, e olhar para aquele papel por horas intermináveis não iria progredir em absolutamente nada. Enfiei o papel e um papiro pouco amassado no bolso do sobretudo anil, implorando mentalmente para que Cléo ou Sebastian pudessem ajudar, odiaria ter de pedir algo a Ettore, já que das poucas vezes que eu o visitava, ignorava minhas palavras ou procurava me ofender de alguma forma.
Algo bateu a porta de minha alcova, seguido de passos pesados e fortes pelo chão de pedra. Ao abrir, me assustei com o corredor lotado de vampiros sorridentes e urgentes correndo para o átrio como se lá estivesse a salvação de suas vidas miseráveis. Minha curiosidade não me limitou a escutar os passos dos indivíduos, obrigando-me a ir de encontro ao âmago da confusão, mesmo que todas as forças presentes em mim discordassem de minha atitude.
Se acumulavam a volta de algo, rindo como hienas disputando uma refeição cujo estado é putrefato. Do centro, saíram vários humanos com as mãos amarradas, suas roupas negras e douradas estavam rasgadas, sujas e encharcadas de vermelho. As pessoas abriam suas bocas em melúrias gritantes e sôfregas enquanto tapas eram desferidos em seus rostos manchados de uma amálgama púrpura.
- Oh queridos, vocês parecem tão suculentos. - A vampira de cabelos como piche, Milena, sorriu impiedosamente para um dos humanos beliscando suas bochechas.
Entre eles, um certo garoto esguio me deixou alerta.
Não via Benji há um longo tempo, mas pude ser capaz de reconhecê-lo em uma máscara serena, apesar das bochechas arranhadas pelos fortes tapas que eram desferidos em sua face constantemente, se mantinha inabalável. Ele virou e encontrou meus olhos, apertando as pálpebras e levantando uma das sobrancelhas enquanto me fitava, para logo depois ganhar um forte tapa na nuca.
Em meio ao caos dos vampiros amontoados, surgiu Mephisto com suas roupas grudentas e avermelhadas, fazendo um barulho estranho ao pisar na cerâmica do cômodo e deixando pegadas sanguíneas, abrindo caminho e dando as costas para os humanos. Deduzi que, surpreendentemente, ele havia acabado de voltar trazendo aqueles humanos da casa de Baltazar apenas oito estavam amarrados, banhados no sangue de seus semelhantes.
Ainda de costas para os mortais, Mephisto pareceu notar segundos depois a existência de Benji, e sorriu mostrando suas presas, virando-se para eles novamente como se dançasse animadamente, com o rosto inclinado e as mãos levantadas. Era incômodo como ele ficava encantador quando sorria, mesmo que isso significasse a breve morte de alguém.
- Ora, ora. Eu me lembro de você. - Puxou Benji pelas cordas que envolviam seu pulso segurando em seguida os cabelos de sua nuca. - Seu pequeno diabo, estava servindo Baltazar por todo tempo em que estivemos em Paris, não estava? - O rapaz permaneceu calado, com os olhos fixos em mim, o que irritou Mephisto e apertou as unhas sobre a pele do queixo do garoto. Rangeu os dentes e mostrou as presas. - Olhe para mim enquanto eu falo, verme.
- Se ousar encostar suas presas em minha pele, meu Mestre arrancará seus seus dedos e os comerá. - Mephisto jogou Benji ao chão, extirpando um grito estridente do fundo de sua garganta ao pisar em uma de suas pernas, partindo o osso ao meio. Em meio a gemidos sôfregos, o garoto tentou afastar-se do vampiro, mas então Mephisto pisou novamente na perna ferida, e dessa vez Benji urrou de dor. Os outros humanos reclamaram e ficaram agitados, recebendo empurrões. Uma das humanas era apenas uma adolescente, tampando os ouvidos em uma tentativa falha de inibir as gargalhadas tenebrosas.
- Oh, então o que seu Mestre fará agora? - Ajoelhou-se ao lado do menino, puxando seus cabelos entre os dedos.
Benji chorava como uma criança, seus olhos estavam embaçados e o peito subia tão rapidamente quanto descia. Provavelmente não conseguia distinguir as palavras que ouvia, o que fez Mephisto o soltá-lo novamente. Benji cobriu o rosto vermelho enquanto gritava palavras indecifráveis e chamava por seu Mestre, tentando não olhar para a fratura que já se tornava arroxeada. O vampiro quase desceu o pé sobre a outra perna do garoto, mas ignorando todas as minhas partes racionais, apressei minhas pernas até Benji e empurrei Mephisto inutilmente.
- O que acha que está fazendo? - Virei a cabeça, vendo um vampiro agarrando o garoto por baixo dos braços e sustentando-o pelo ar como se estivesse com nojo de tocá-lo. - O que está fazendo?
- Ora, acalme-se Mestre. Não vou matá-lo, preciso daquele humano ignorante. - Eu não tinha dúvida alguma que Baltazar já tivesse entrado por aqueles portões e se sustentasse atrás de nós com a fúria de mil demônios. - Não fique tão apreensivo. - Percebi a porta fechar com um gesto dos dedos do vampiro, uma interferência dos talentos que Mephisto herdara de mim.
Seu braço se alinhou por trás de meu pescoço e sorriu até mostrar os dentes, suspirando frustrado. Conduziu-nos por um longo caminho até o fundo da igreja a frente da pequena floresta de árvores, reclamando sobre os problemas que assolavam seus planos, em demasia, os supostamente humanos que caçavam seus vampiros e matavam todos que permaneciam fora da igreja pela madrugada até a alvorada.
Este empecilho passou pela minha cabeça, e mesmo que para mim fosse algo banal, haviam várias de minhas teorias para as mortes misteriosas. Haveriam vampiros contra a política de Mephisto atacando ás cegas? Tentei dizer isto a ele, mas me respondeu que encontraram ossadas de vampiros em lugares que, quem quer que fosse o assassino, por algum motivo, torturava-os com a luz do sol. Haviam muitas chances de humanos estarem realizando tal coisa, talvez a igreja católica fazendo algum tipo de ameaça.
Por um momento, imaginei que católicos invadissem a igreja pela manhã, enquanto estivéssemos dormindo, mas o sexto Ancião possuía um poder semelhante ao de Baltazar, porém suas forças eram escassas e sua habilidade lhe permitia esconder coisas apenas de mentes mortais, e isso lhe concedia envolver a igreja com uma grande camada protetora. Imaginei que, por causa de seu poder, a casa do primeiro Ancião tenha sido descoberta de algum modo.
Olhei para minha mão, observando os nós de meus dedos se tornando a cada dia mais salientes. Evitava olhar-me em espelhos por conta de meu rosto monstruosamente magro, embora isto não tenha afetado tanto em minhas habilidades, visto que minha força e velocidade ainda eram consideravelmente ideais, todavia isto não se aplicava á minha mente, que definhava como a de um velho doente.
A sede fazia isto comigo, e ela se intensificava á cada dia que se passava.
Havia me curado no enojo de sangue humano, mas mesmo assim, eu me alimentava minimamente, pois sempre que retirava minhas presas para pressioná-las sobre alguma pele, via Bóris morto em sua pele branca e fina.
A sede me mantinha prisioneiro, apertava-me a garganta e transformava-me em um desprezível demônio que nem mesmo eu podia reconhecer em minha própria carne.
- Mephisto. - Ele virou o rosto para mim, parecia indiferente quanto a seriedade de minha voz. - Por que sinto como se eu fosse o único a não saber sobre nada que estamos fazendo?
- Mas o senhor não é o único. - Disse com tranquilidade ao olhar sorrindo para mim. - Há várias pessoas deste lugar que não sabem o próprio nome, tampouco saberão sobre o que estamos fazendo.
- Eu sou como as outras pessoas para você? - Ele virou o corpo de frente para mim segurando ambas as mãos atrás do corpo. - Deveríamos compartilhar assuntos importantes.
- Não deveria ser tão curioso. - Ainda observando as árvores, lembrei de uma época remota de nossas vidas, a qual se mostrava presente naquele momento importuno. Demorei vários minutos para abrir a boca e algum som sair de minha garganta.
- Eu dizia isso para você quando era pequeno. - Engoli em seco e inibi um sorriso. - Você me fazia muitas perguntas. - Apertei as unhas contra as mãos. - Até que os anos se passaram, sua audácia venceu a obediência, e uma noite, me seguiu sorrateiramente.
- Ele comprimiu os lábios enquanto me fitava. - Vendo o que eu fiz com aquele homem, você se apavorou e fugiu por uma semana. Eu o procurei como louco, a cidade que desfalecia com o surto de peste me desesperou, e quando eu o encontrei, estava á beira da morte em uma vala qualquer.
- Ah, estou cansado de saber o final disso. - Virei para ele, suspirando ao pensar que poderia mudar tudo que fiz. - O senhor me transforou na criatura que sou hoje. Tudo que fiz, devo ao senhor, Mestre.
- Não me coloque como responsável. Eu apenas lhe dei as armas, você escolheu a guerra. - Respondi indignado com a acusação.
- E para que servem as armas se não para a guerra? - Escorou-se na pedra atrás de nós, que antes havia sido uma parede decorada por adornos de ouro e pinturas angelicais. - O senhor me subestima, Mestre. Não sou estúpido como presume.
- Não acho que seja.
- Mas mesmo assim, faz-me sentir fraco a cada sílaba que pronuncia. - Colocou as mãos no bolso, desviando o olhar de mim para as árvores a nossa frente. - Não posso esperar nada de alguém assim, mesmo que seja o senhor.
- Ingrato. - Cruzei os braços. - Agora que é crescido o suficiente para que eu precise levantar meus olhos para vê-lo, ainda não aprendeu nada do que lhe ensinei. Você me decepciona.
Mephisto riu.
- Ingrato? Ora, naquela época não sabia para onde havia de ir, voltava os olhos desgarrados para as estrelas, como se lá houvesse ouvidos para meu queixume ou respostas para minhas angústias. - Já em minha frente, abraçou meu rosto com suas mãos enluvadas e sujas de sangue. - Reconheço a magnitude de suas atitudes, afinal quem salvar-me-ia da escravidão e da morte?
- Entenda o que quero dizer! - Afastei suas mãos, recuando alguns passos da criatura dantesca que ostentava as cores rubras feito manchas. - Eu não quero ser mantido como um prisioneiro, além de que você está transformando mais pessoas do que deveria, está tratando deles como se fossem animais. Isso irá desequilibrar o mundo no futuro.
- O senhor os enxerga como animais? - Sorriu mostrando uma falsa surpresa, levando uma das mãos acima do peito enquanto estalou a língua em desaprovação. Rodopiou em seus pés e levou os olhos até a lua minguante acima de nós. - Trago aqueles desafortunados, rejeitados pela sua própria espécie para ampará-los, dá-los um motivo para viver. Eles me enxergam como um pai, uma figura bondosa e terna.
- Como um deus? - Levantei uma sobrancelha ao perguntar, mesmo sabendo da resposta óbvia.
- Sim. - Levantou as mãos, abrindo os braços e tombando a cabeça para trás ao tentar se assemelhar á Jesus em seu finamento - Aqui estou eu para formar novos homens a minha imagem, uma estirpe que a mim se assemelhe. Impetuosos, intrépidos e monstros. Quero levá-los ao mundo e delinear novos pensamentos e convicções.
- Isso seria o caos. - Normalizou sua postura sem deixar de sorrir.
- Mas não somos nós os deuses da calamidade?
***
Mephisto me deixou sozinho minutos depois, permitindo-me soltar uma lufada de ar e relaxar o corpo. Sua pressa repentina foi resultado de uma reunião com alguns anciãos, os quais eu havia visto algumas poucas vezes na igreja apenas por relance. Após a queda do Conselho, não troquei palavras com os vampiros nenhuma vez, e isso me permitia um pouco de paz ao espírito.
Coloquei os dedos por cima do bolso, sentindo a textura do papel. Apertei as pálpebras, sentindo o vento sôfrego acompanhado com o crocitar dos corvos e o ruído aterrorizante de uma coruja branca descansada sobre um galho de figueira. Abria o bico e gritava, assemelhando-se a um tecido se partindo, e com isso, um sentimento suspeito possuiu minha cabeça.
Lembrei de Bóris ainda em Londres explicando uma de suas lendas, exibindo uma de suas tentativas falhas de amedrontar a mim e Laura, com a narração da fábula sobre uma ave conhecida como "Rasga-mortalha", com um guincho que anunciava a morte do individuo que a ouvisse.
- Tolice. - Murmurei sem perceber que já me encaminhava para a nave da igreja ladeada por corredores. Revirei os olhos ao voltar e reconhecer que tomava o caminho errado.
Desci as escadas do subterrâneo da igreja abandonada, vendo poucos guardas cuidando dos aposentos que mantinham Cléo, Sebastian e Ettore presos. Os soldados andavam com sobretudos negros que cheiravam a tecido novo, e com o corredor estreito, o odor sufocou minha garganta fazendo-me sentir o gosto amargo.
Uma pequena impressão me permitiu sentir uma corrente de ar, um hálito com a emanação de fumo bateu sobre meus cabelos. Engoli em seco, mordendo o lábio ao sentir dedos invisíveis apertarem minha nuca. Virei o corpo para me afastar, mas o algoz com extrema velocidade, segurou-me os braços afundando as unhas em minha pele, rasgando o tecido de minha roupa. Meu corpo rodopiou e as pernas vacilaram, permitindo minhas costas baterem contra a parede fria e uma das mãos envolveu minha boca abafando um murmúrio.
O calor da respiração do ser desconhecido aqueceu minha orelha, despertando a ojeriza quanto ao toque ábdito e gelado que ultrapassava as camadas de tecido de minhas roupas e instalava o frio sobre minha pele. Os dedos ocultos apertaram meu ombro com intensidade e uma pequena risada nasal ecoou pela minha cabeça.
- Você não será perdoado, meu querido Orfeo.
OOIOIOIOIIII ♥ Sentiram minha falta? (Tomara que sim :v)
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