2: Olhos de Buracos Negros
Acho que comecei a duvidar um pouco da minha tendência crônica à má sorte somente quando me mudei para uma nova cidade, aos quinze anos.
Quer dizer, há um planetário nela, além de ser maior e mais exuberante do que a que moramos anteriormente, com poucos insetos dispostos a sugar o meu sangue de canudinho e pessoas ligeiramente mais simpáticas. A porcentagem esmagadora dos jovens passa suas tardes jogando Pac-man ou Super Mário no fliperama de paredes desgastadas que se recusa a fechar no centro, ou tomando refrigerante barato de marcas meio vagabundas na praça principal, onde os skatistas, artistas e todos os outros tipos de pessoas se reúnem desde sempre perto do crepúsculo abafado.
Quase tudo é bom. Leia o quase com um enfoque enérgico, beirando o desespero, que é o que sinto no exato momento em que saio da lanchonete e o vejo.
Decerto, a coisa mais incuravelmente chata que existe nessa cidade pacata possui olhos da cor de buracos negros e mechas pálidas no topo da cabeça, que está sempre girando em órbitas abstratas demais para que a maioria dos terráqueos consiga entender.
Apollo.
Antes de tudo o que irei falar sobre ele, preciso contextualizar uma coisa para você, para que não pense erroneamente que minhas observações acerca do garoto se devem a qualquer tipo de atenção direcionada da minha parte - coisa que não é verdade, e nunca vai ser. Nunquinha da Silva.
Sempre gostei de observar o mundo ao meu redor e, involuntariamente, prestar atenção nas diversas coisas que ele poderia oferecer, como uma espécie de telespectador que assiste a vida passando na televisão, deitado em seu sofá confortável enquanto se alimenta de uma dose generosa de porcarias culinárias que provavelmente vão lhe conceder um belo câncer no futuro.
Faço isso mais do que interagir com o planeta, na verdade. Creio que seja uma tendência inerente a mim, como as rotações da Terra em torno do sol. E é por causa dela que eu percebo muito do que acontece à minha volta; e ouço, também, mesmo sem querer.
Vários boatos sobre Apollo costumam escorregar de boca em boca pelos corredores do colégio, aderidos com algum tipo de cola invisível às centenas de teorias bizarras ao seu respeito.
Regina Moraes, por exemplo, pode jurar enquanto lixa costumeiramente suas unhas que ele já fora suspenso por ter sido pego transando com uma garota na sala do diretor. Já Tobias Barreto afirmou uma vez, de cima da sua bicicleta com freios que possuem a tendência crônica a falhar e lhe renderem algumas quedas, que Apollo é, na verdade, um traficante ultra-estratosfericamente-perigoso que foi flagrado passando drogas para os estudantes.
Os mais radicais alegavam que ele já cometera um crime real que optaram por manter debaixo dos panos, como agredir algum pobre coitado quase até a morte, enfiar uma faca no rim de alguém dentro dos limites escolares e outras coisas bizarras do gênero.
No entanto, se você perguntar sobre Apollo à irmã de oito anos do garoto, ela com certeza vai chamá-lo de incrível, enquanto permaneceria concentrada devorando o seu sorvete favorito com jujubas em cima. Se questionar à mãe como ele é, a mulher com tendência incurável ao tabagismo cruzaria os braços sobre seu avental costumeiro e falaria por horas sobre como acha seu filho de dezessete anos um gênio incompreendido.
Entretanto, se você o observar às três da tarde de uma segunda-feira, horário em que costuma caminhar pelas ruas da cidade com as mãos nos bolsos da calça jeans, uma típica gravata frouxa sobre a camisa social arregaçada até os cotovelos, um brinco de pena lhe caindo de uma das orelhas e um óculos de sol estilo Matrix escorregando pelo seu nariz debaixo de um céu nublado, com certeza pensaria que ele é, no mínimo, um sujeito inusitado.
Às vezes, imagino que as pessoas que param para fitá-lo em sua caminhada são menos educadas com as palavras em seus pensamentos. Nossa mente é quase como uma terra sem lei, afinal de contas.
Por exemplo, uma mulher acabou de virar a cabeça em um ângulo de quase 360 graus sobre a sua bicicleta para fitá-lo perto do meio-fio. Posso jurar que ela gritou dentro da própria cabeça que Apollo é louco, antes de voltar a pensar em como poderia assassinar a sua chefe com apenas uma colher plástica de mexer café.
O garoto alvo dessa atenção direcionada, no entanto, nunca pareceu dar a mínima para tudo isso. Apenas segue o mesmo cronograma todos os dias, que envolve fingir que é um vegetal semiconsciente e quase capaz de fazer fotossíntese, limitando suas interações humanas à única dupla de gêmeos do ensino médio que estudam no mesmo colégio que nós.
E, infelizmente, a mim.
Porque, peço perdão por não ter dito antes, mas Apollo Costa é meu vizinho.
Mais especificamente, há dois anos, três meses e cerca de treze dias.
Não que eu esteja contando.
- Lunático! - exclama logo que me vê, puxando os óculos escuros de aros estreitos para longe do rosto, como se quisesse me vislumbrar da melhor forma possível.
Ele está apoiado no porta-malas do carro do pai; um Opala 73 que há muito deveria estar tomando milk-shake de óleo em um ferro velho, mas insistem em forçar o coitado além da vida. Os nós dos dedos da mão esquerda - a que usa para escrever - estão repletos de escoriações avermelhadas, e os rasgos nos joelhos da sua calça permitem vislumbrar um band-aid mal colocado na rótula direita. A ausência das lentes escuras em frente às suas orbes revelam as manchas arroxeadas de olheiras que as circundam.
Apollo tem hábitos estranhos. Por vezes, se dissolve no ar feito um fantasma durante vários dias e depois retorna ao mundo como se nada tivesse acontecido, mas sempre com vestígios impressos na pele de alguma batalha que eu acredito ser muito mais interna do que externa.
Não é da minha conta, de qualquer forma.
Troco o peso de uma perna para outra com impaciência, pressionando um pouco mais o saco de papel repleto de batatas fritas por entre as minhas digitais. Acho que estou torcendo para que chegue logo o momento em que ele vai me dar tchau.
- O que está fazendo aqui? - resolvo perguntar.
Ele dá de ombros.
- Resolvi sair para caçar um pouco de heroína. - Curva os lábios em uma pretensa careta cínica, olhando ao redor. - Puxa, estou bem na rua mais movimentada da cidade! Como não percebi que não dava para achar narcóticos aqui? - Arregala as orbes com espanto fingido.
Resmungo baixo por força do hábito. Seu senso de humor quebrado é uma das coisas que ainda não sei se odeio com todas as minhas forças ou é justamente o oposto disso, e me detesto por gostar tanto.
- Vim na Relicário comprar mais um disco para a minha coleção. - elucida, sem demorar muito. - Daí, te vi aqui na lanchonete e quis esperar para te dar uma carona.
- Quanta bondade da sua parte. - Contenho o ímpeto de ser irônico.
- Eu tenho um coração enorme. Não precisa agradecer.
Ergo as sobrancelhas, e um sorriso torto repuxa seus lábios avermelhados em contrapartida, fisgando o círculo prateado do piercing abaixo do inferior.
- Tenho medo de aceitar suas caronas. Nunca sei até que ponto é um gesto inocente ou a realização do seu desejo de me assassinar escondido e jogar meu corpo em uma vala.
- Quem te contou sobre isso? - Arregalou os olhos em fingido choque, seu tom pretensamente espantado.
Repreendo uma risada. Não se pode rir para Apollo, a menos que queira tê-lo no seu pé contando piadas ruins por toda a sua existência.
- É mesmo só uma carona, sem que queira nada em troca? Nem mesmo uma ajuda com química? - indago, pouco crente nas minhas próprias perguntas.
Apollo vive me pedindo ajudas aleatórias desde quando nos apresentamos há pouco mais de dois anos. Variava de auxílios com matérias quaisquer da escola a coisas do dia a dia. Uma vez, me ligou às cinco da manhã de um sábado para ajudá-lo a exterminar um rato que se enfiara dentro do seu guarda-roupas.
Já perdi a conta de quantas tardes passei tentando colocar química na cabeça dele, torrando meus miolos com as questões que se espalhavam por toda parte nos livros da disciplina encaixados no chão do meu quarto. O fato era que qualquer coisa parecia mais interessante para Apollo do que química, principalmente capturar as minhas canetas coloridas no estojo em um dos inúmeros momentos nos quais ficava fora do ar, como se o mundo chiasse em interferências semelhantes às de uma televisão antiga nos seus ouvidos.
Com a ponta dos objetos, ele tinha a mania incurável de traçar os meus sinais e manchas de vitiligo, compondo constelações abstratas e outros desenhos surreais na minha epiderme enquanto eu tentava, em vão, lhe explicar sobre átomos e cientistas que já morreram.
- Juro que é só uma carona. - ele diz, e ergue o mindinho em garantia.
Suspiro, aceitando sua resposta. Então, levanto o meu mindinho também, selando a promessa à distância. Um tanto relutante, corto o espaço até o veículo, enfiando-me no banco do passageiro sem muita demora.
O ar aqui dentro tem um cheiro pungente de gasolina e fumaça que alertam a velhice preocupante do veículo, mas Apollo não parece ligar muito. Ao mergulhar atrás do volante, somente coleta algumas embalagens de comida no espaço do porta-moedas entre nós e as enfia no porta-luvas, deixando somente um maço de cigarros pela metade do lado de fora.
Ele não deveria fumar, considerando que os seus pulmões não são exatamente um exemplo de saúde desde que teve uma crise de asma no ano passado. Lembro-me de cada detalhe daquela noite, desde o momento em que fui acordado com a sirene da ambulância, até dos meus pés correndo rumo à porta da frente da minha casa, guiados pela sensação enclausurante de que havia algo muito errado no ar.
Desde então, Apollo sempre carrega uma bombinha de corticoides para onde quer que vá.
Uma vontade pulsante de estapeá-lo por estar sendo tão inconsequente turge minhas células. Mas então, suas íris enegrecidas caem nas minhas, e não posso evitar ser fisgado pela escuridão milenar do universo amplo que se dilata nas suas pupilas. De repente, parece que estou pairando no espaço, orbitando um amontoado de anãs-brancas cujo fulgor cintilante ondula meus poros em nuvens elétricas de calor.
Ele sorri um pouco, e estica o braço na minha direção. Seus dedos delgados se infiltram nas minhas madeixas bicolores, bagunçando o emaranhado de fios brancos e castanho-enferrujados. Em seguida, estala um peteleco fraco na minha testa com o indicador, e eu retenho o impulso de mandá-lo à merda.
- Já parou para pensar em quem organizou o alfabeto em ordem alfabética? - pergunta de repente, alheio à minha raiva.
- Com certeza um daqueles velhos inteligentes das civilizações antigas. Mas por que encucou com isso? - inquiro, apertando os cílios.
- Tive um sonho estranho. - Dá de ombros, virando a chave na ignição.
A tosse quase tuberculínica do motor gasto irrompe nos meus tímpanos, e o cheiro familiar de combustível flutua com mais ardor no ar junto ao de chocolate que Pollo costumeiramente exalava, por causa do seu creme de cabelo.
No horizonte por trás do para-brisas empoeirado, o céu é um desarranjo de nuvens desbotadas nadando no mar vermelho do crepúsculo que explode gradativamente, disseminando seus tentáculos róseos sobre os prédios e demais estabelecimentos ao redor feito um polvo gigante.
O vento sacoleja as mechas descoloridas de Apollo e faz a camisa dos Gorillaz abraçar ainda mais o seu tronco magro. Ele comprime os lábios distraidamente, pressionando o piercing com o atrito enquanto manobra o volante.
O garoto não deveria dirigir, já que sequer fez dezoito anos e, consequentemente, não possui carteira. Mas, desde que seu pai o havia ensinado a suprema arte da direção, ele por vezes pega o seu carro emprestado, para o meu desespero particular.
Não que conduza mal feito uma toupeira semi-cega - se toupeiras dirigissem automóveis. A questão é que eu prefiro me acomodar dentro de um veículo que, de preferência, tenha um motorista devidamente habilitado atrás do volante para diminuir o máximo possível as chances daquela coisinha chamada morte.
- Quais são os planos pra hoje, Lunático? - pergunta, dando uma ênfase irritante para burro no apelido que colocara em mim desde que tomou consciência do meu gosto por astronomia.
Sopro o ar, capturando algumas das minhas batatas no interior do saco marrom.
- No momento, terminar essas batatas fritas incríveis. - Enfio uma porção na boca. - Depois, começar a planejar o resto do meu dia. - Estico a mão e pressiono o botão de girar do rádio recém instalado, ligando-o.
Uma MPB qualquer preenche o interior do veículo, acalmando um pouco os meus pensamentos difusos. Fiz somente para testar a paciência de Apollo, aproveitando-me do fato de que ele não simpatiza de jeito nenhum que mexam nas suas coisas; então, ao notar que não demonstra dar a mínima, bufo baixinho.
- Você e seus planejamentos... - Ri. - Já pensou em só viver o dia sem pensar em nada específico para fazer?
- Já. Mas isso está totalmente fora de cogitação, considerando que eu quero viver muito do que a vida pode me oferecer nesses... - Aperto os cílios. - Sessenta anos de vida, considerando a expectativa média do Brasil. Vou fazer tudinho graças à minha organização, e me tornar um velho muito feliz que vai terminar seus dias ao lado da Brunna.
O nome me remete automaticamente à primeira vez que a vi, de cima da minha bicicleta à caminho do colégio. Fiquei tão hipnotizado pela beleza daquela garota cheia de sardas miúdas nas bochechas, com uma mochila da Barbie pendendo atrás dos ombros, que acabei perdendo o equilíbrio e tombando bem na frente dela.
Para a minha felicidade, Brunna correu para me ajudar. Recordo-me que seus fios marrons escorriam pela testa em uma pequena cachoeira de mechas lisas, quase atingindo os olhos pintados do tom de castanho mais espetacular do universo inteirinho, que me analisaram com genuína preocupação logo que se abaixou à minha frente e me ajudou a levantar.
Ela tinha um aroma inesquecível de chiclete tuti-fruti, nuvens de canela e manhã de verão.
- Não sei o que você tanto vê nela. - Apollo se manifesta, um tanto áspero. - A garota é um porre. Só sabe falar sobre veganismo, causas ambientais, incêndios na Amazônia e a possível extinção do lobo-guará!
- Correção: Ela é perfeita. - Ergo a sobrancelha, mais do que disposto a defendê-la. - A preocupação da Brunna com o planeta é adorável.
- Neurótica para cacete. - corrige, arregalando ligeiramente os olhos para dar ênfase.
- Ela queria, até mesmo, iniciar uma campanha na Internet para a preservação do peixe Pacu!
- Sabe o que rima com Pacu? - Um riso se esconde na pergunta.
- Não, não! Nada das suas piadinhas escatológicas com ânus enquanto eu tô comendo. - protesto, enfiando mais um amontoado de batatas na boca.
A risada eufórica de Pollo reverbera, inundando o ambiente com as notas melodiosas do som. Ignoro o amontoado de vaga-lumes bioluminescentes que se põem a bater asas no meu estômago, ameaçando subir até o esôfago com suas patinhas miúdas.
- Garanto que sua garota "perfeita". - Remove uma mão do volante para desenhar aspas no ar. - Também faz e diz coisas nojentas, como...
- Você não vai conseguir me traumatizar! - Levo as mãos aos ouvidos, tapando-os antes que fale coisas bizarras que me façam mentalizar cenas muitíssimo esquisitas.
- O que eu tô querendo dizer, Sr. Universo... - Seu timbre grave sobe uma oitava, ficando alto o suficiente para que eu escute. - É que você está criando uma fantasia na sua cabeça. Não está apaixonado por ela, mas pelas projeções que faz dela.
Pollo sempre fala a mesma coisa sobre o que eu sinto pela Brunna desde que descobriu por conta própria, como se soubesse mais do que eu mesmo sobre meus sentimentos. E é tremendamente irritante, considerando que ele nunca sequer havia se apaixonado, e, por consequência, não faz ideia de todo o fervor que rodopia no meu peito direcionado à garota de olhos deslumbrantes.
Deixo os braços penderem novamente ao lado do corpo, liberando minha audição, e bufo.
- Pollo, vai ver se eu tô na esquina da casa do cacete.
Seu riso se dissipa por entre as partículas de oxigênio. Então, despreocupadamente, leva a mão até as minhas batatas, saqueando uma dose imensa delas.
- Odeio você. - afirmo.
- Que pena. Eu gosto muito de você.
Forço-me a rolar os olhos para camuflar o calor que me sobe às bochechas.
- Presta atenção na droga da pista. Se a gente morrer em um acidente, eu te mato de novo depois.
Sua gargalhada ondula o ar. Como que para me provocar, ergue a palma cheia de batatas, manobrando o veículo somente com a esquerda enquanto deixa três de uma só vez escorregarem rumo à sua língua.
Idiota. Estúpido. Irracional. Imoral. Inconsequente. E bonito para cacete. Esses são somente alguns dos adjetivos que eu posso pensar para defini-lo.
Saudações, terráqueos!
Sim, mais um capítulo. Não resisti, tive que apresentar logo o Apollo para vocês.
E aí, o que acharam dele?
Meio quebrado ou nem?
Será que ele tem uma quedinha pelo Cosmos?
E o mais interessante: Será que o nosso próprio Sr. Universo tem um abismo não compreendido por ele?
Será que o Apollo está certo sobre a paixão do Cosmos pela Brunna?
Montem aqui suas teorias.
Se for da vontade de vocês, depositem aqui elogios, críticas, perguntas importantes sobre meu gosto duvidoso por macarrão com feijão e o que mais der na telha.
Tenham um ótimo domingo! Beijos de nuvem pra vocês <3.
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