Capítulo 9 - Tão feliz contigo
"E quando eu não te vejo
eu penso em você
Desde o amanhecer,
até quando eu me deito"
(Velha Infância - Tribalistas)
Decidiu seguir para a casa de Cassandra. A avó, recém aposentada, era voluntária num hospital durante as manhãs e possuía as tardes livres. A senhora se assustou ao ver a neta no portão, porém como sempre, a recebeu sorrindo:
— Regininha!
— Oi vó... Não queria ir pra casa hoje, posso ficar aqui um pouco?
— Claro! Já almoçou?
— Não, mas tô sem fome.
— Come uma fruta então, um pedaço de bolo... Quer?
— Pode ser o bolo. — Respondeu sem pensar muito e, enquanto a avó fechava a porta e pegava a forma de dentro do forno, ela repassou o olhar pelo cômodo principal da casa, bagunçado como sempre.
Nada alí denunciaria que a avó era quem era ou fazia o que fazia, e ponderou se os rituais eram feitos às três da manhã ou se havia um cômodo secreto.
— Vó, se eu te fizer uma pergunta, você responde com sinceridade?
— Respondo! — Sorriu e colocou o pires com um pedaço de bolo de chocolate na mesa, em frente a Regina.
— Você já fez algum feitiço de viagem no tempo?
Regina poderia jurar que o sorriso da avó diminuíra, mas em dois segundos ela desviou o olhar e cortou também um pedaço de bolo para si mesma:
— Não. Por quê? Ocê quer fazer?
— Queria voltar pro futuro.
— Voltar pro futuro? Ou ir pro futuro? — A mulher perguntou, de costas, enquanto pegava os talheres e por alguns segundos Regina teve dúvida do que responderia. Porém, conforme a recomendação das instruções iniciais, mentiu:
— Ir. Ir pro futuro. — Forçou um sorriso — As coisas não estão indo muito bem agora.
Cassandra se sentou ao lado da neta:
— Mas vai melhorar, a vó promete. Quando a gente é jovem, tudo parece fim de mundo, tão intenso, tão...
Regina suspirou, parando de prestar atenção, pois sabia como aquele discurso continuaria. Do mesmo jeito que os jovens nunca mudam, os adultos também não.
Comeu o pedaço de bolo em silêncio e por fim pediu:
— Me ensina? Ou me dá uma poção, sei lá, um ritual... Nem que a senhora me empreste um livro de feitiços e eu estudo se a senhora não tiver tempo.
— Num tenho livro, tá tudo aqui. — Cassandra apontou para a própria têmpora. — É o lugar mais seguro.
Regina baixou o olhar, decepcionada por saber que tudo se perderia junto com o Alzheimer.
— Mas eu preciso muito, muito mesmo. — Insistiu.
— Não. — Cassandra engoliu a última garfada debolo e recolheu os pratinhos, fazendo a garota entender que o assunto estava encerrado.
Regina se calou, apesar da vontade de gritar toda a verdade. Ficou por alí por mais meia hora, ajudou a avó a lavar a louça, conversaram sobre o clima e a escola e por fim ela avisou que voltaria para casa. Talvez pudesse tentar entrar na casa da avó em alguma manhã, ela sabia que Brigite possuía uma cópia da chave, poderia vasculhar a casa e tentar ela própria fazer a poção. Nem que fosse uma para ao menos acelerar o tempo e chegar logo em março de 2002. Sem anotações seria bem difícil tentar algum feitiço, porém, a avó poderia estar mentindo sobre elas não existirem.
Ao se despedirem, Cassandra a abraçou e sussurrou:
— Se você veio..., e eu num quero saber, você tem que entender que um feitiço num vai anular o outro.
Regina engoliu a seco e a beijou:
— Obrigada. Tchau vó.
— Tchau, fia.
Chegou em casa, tomou um banho e se sentou imóvel em frente à televisão desligada. Mais uma vez lembranças do futuro tomaram conta de sua mente...
Tiago tentou soar desinteressado ao pedir o telefone de Regina enquanto eles se vestiam. E ela tentou parecer indiferente quando também anotou o dele. Depois de saírem do motel e caminharem de mãos dadas até um ponto de taxi, trocaram um beijo rápido e foram embora em carros separados.
Regina estava sem sono, apesar de passar das duas da manhã, e durante todo o trajeto até sua casa várias vezes se surpreendeu sorrindo. Ela também era "muito certinha" pra fazer uma coisa tão impulsiva como aquela, porém, nunca tinha se sentido tão radiante.
Uma semana depois ela reencontrou as primas na casa de Cassandra e as duas a incentivaram a entrar em contato com Tiago.
— Ele deve ter mudado de ideia no dia seguinte, por isso não me ligou nem mandou mensagem. Ele pediu meu telefone na hora da empolgação. — Concluiu.
— Regina! Que que tem? Você não gostou dele? Liga pra ele então. — Ingrid a cutucava.
— Gostei, mas sei lá... Foi sexo casual, não sei como são as regras disso.
— Nossa! "Sexo casual", que jeito de falar. — Angélica franziu a testa.
— Mas é a verdade, não é?
— Ah sei lá, você que sabe, só que o "não" você já tem.
Regina deu um sorrisinho e chacoalhou a cabeça se afastando para se servir da sobremesa. E alguns minutos depois, acabou enviando um sms: "Oi... É a Regina, da semana passada. Tudo bem?"
A resposta demorou um pouco: "Tudo e você? Tava pensando em te ligar, mas, sei lá..."
"Me liga agora então..."
O celular começou a tocar quase que imediatamente e Regina atendeu rindo, se afastando para o quintal da casa da avó:
— Alô.
— Oi, tudo bom? E aí, tá a fim de sair comigo?
— Tô. Quando? — decidiu ser direta também.
— Sei lá... Amanhã?
— Pode ser... — Ficou pensando o que ele tinha em mente, afinal, eles já haviam transado e se perguntou se isso significava que um segundo encontro deveria ser necessariamente num motel.
— Quer ir no cinema?
— Quero. — Ela não controlou uma risadinha.
— Que foi? Que risadinha foi essa? Você prefere outra coisa?
— Não, é que eu tô surpresa que você não me chamou pra...
— A gente pode fazer isso depois, se você quiser...
— Vamos ver.
Decidiram o local e o horário para se encontrarem e antes de desligarem, Tiago acabou falando:
— Ainda bem que você mandou a mensagem...
No dia seguinte colocou um vestido longo sem mangas, lilás, e passou uma maquiagem leve. Tiago a observava de longe, usando calças jeans escuras e uma camisa polo preta.
Ela sorriu quando se aproximou, indecisa sobre o tipo de cumprimento que lhe daria.
— Caramba! Eu tinha esquecido como você é linda.
E nesse momento ela escolheu, apoiou uma mão no ombro dele e se inclinou para um selinho:
— E não é que você também é?
Tiago passou uma das mãos pela cintura dela e a puxou para um beijo de verdade.
— Oi...
— Oi.
Eles seguiram sorridentes para a fila do cinema.
Os dois começaram a se encontrar a intervalos regulares, de vez em quando indo a um cinema ou museu, outras vezes direto para um motel ou para a casa dos pais de Tiago, que frequentemente estava vazia, e outras ainda, os dois relembrariam anos mais tarde como sendo seus melhores momentos, eles decidiam de última hora realizar algo inesperado. Como por exemplo fazer aulas de escalada, ou então doar sangue com a intenção de tirar o dia de folga e ficar em casa assistindo filmes em plena quarta-feira, ou ainda dirigir três horas apenas para experimentar o que um site especializado dizia ser o melhor camarão na moranga em todo estado.
* * *
O momento em que Regina percebeu que o amava pouco teve a ver com os dois ou com os encontros marcantes que eles se presenteavam.
Estavam sozinhos na casa de Tiago num sábado à tarde, pois toda a família dele tinha ido viajar e sendo assim eles tinham bastante tempo para aproveitar.
Se beijavam no sofá da sala, enquanto um filme qualquer era ignorado na televisão, quando o celular de Tiago apitou. Ele gemeu, mas não parou de fazer o que estava fazendo. O celular apitou mais uma vez. E mais uma.
— Ai... — Ele bufou e esticou o braço para olhar a tela. Regina leu as mensagens junto com ele:
"Cara, tô mal..."
"É como se eu corresse e não saísse do lugar. Como se estivesse num deserto..."
"Desculpa te mandar essas mensagens, só queria desabafar..."
Tiago se levantou e suspirou, ajeitando os óculos:
— Desculpa, eu vou ter que ligar pro Douglas... — Era alguém de quem ela já tinha ouvido falar, porém não conhecia pessoalmente.
— Lógico!
Ele se levantou e começou a andar pela sala, com a testa franzida:
— Atende... Atende... Doug! Oi! Fala véio... De jeito nenhum! Sei... Cara... Não...
Regina observou emocionada aquela cena. Tiago era um cara inteligente, bonito e que apoiava os amigos. Ela estava na dúvida se merecia tanto.
— Tô indo praí, eu chego em dez minutos, não sai daí!
Ele desligou e encarou Regina com o semblante desesperado:
— Desculpa... Meu amigo precisa de mim.
— Não precisa pedir desculpa por causa disso. Nunca. Tá?
Ela quase soltou um "te amo", mas resistiu.
* * *
Era uma terça-feira e, como em muitas tardes, eles conversavam ao telefone enquanto Tiago saia do trabalho e Regina chegava em casa.
— Então tá, eu tô entrando no metrô.
— Ah, tá bom. Beijo.
— Beijo.
Regina suspirou, entrou em casa e se jogou na própria cama, sorrindo. Estava ciente que estava apaixonada, ao mesmo tempo que estava apavorada por não saber no que aquilo ia dar, se deveria ou não ter uma conversa séria com Tiago, correndo o risco de assustá-lo e perder o que já tinha com ele.
Menos de dez minutos depois seu telefone tocou novamente:
— Você tá em casa?
— Tô. — Ela estranhou.
— Eu acabei de ver uma coisa numa loja e lembrei de você, comprei e tô indo aí levar.
— Tá, pode vir. — Ela riu.
Quando a campainha tocou, Regina correu para o portão dando a entender aos pais que a pessoa não iria entrar. Cido e Brigite estavam na cozinha e apenas trocaram olhares desconfiados.
Regina ainda estava com a roupa que tinha usado o dia todo porque não sabia se Tiago chegaria enquanto ela estivesse no banho. Estava cansada e suada, entretanto não se negaria a vê-lo, tinha certeza de que quando botasse os olhos naquela covinha e o beijasse entortando seus óculos, valeria a pena.
Contudo não previa o que aconteceu em seguida. Tiago esticou o presente enquanto entrava na garagem.
— Oi, né? — Ela lhe deu um beijo achando graça porque ele parecia nervoso.
— Oi... — Ele riu — Desculpa.
Enquanto desembrulhava o pacote o sorriso de Regina se ampliou porque ela reconheceu um CD da banda The Corrs, que ela acreditava até pouco tempo antes ser a única pessoa de seu círculo social que conhecia as músicas.
Quando terminou de rasgar o embrulho, deu de cara com um post-it amarelo com a frase: "Quer ser minha namorada?".
Foi assim que a tradição da troca de bilhetes começou.
Ela levantou o olhar com ainda mais certeza de que tinha valido a pena:
— Quero!
Brigite chegou esbaforida como sempre, cumprimentou a filha, ligou a televisão e começou a fazer o jantar.
Regina continuou ali, indiferente, se deixando ser levada.
Mais tarde, enquanto comiam ela acabou dizendo, sem qualquer emoção:
— Eu tirei uma nota vermelha.
— Jura Regininha? Por isso que você anda quietinha assim?
Regina quase sorriu ao sentir o alívio na voz da mãe. Pelo visto estava conseguindo ser menos adulta, por isso apenas deu de ombros:
— Matemática.
— Que assunto? — Cido colocava mais arroz no prato — Eu posso te ajudar se você quiser.
— Matrizes.
— É, é bem difícil, mas no final de semana a gente pode sentar e estudar, pode ser? Com certeza você recupera.
Ela concordou com a cabeça. Não se lembrava dos pais serem tão compreensivos assim quando ela era adolescente, ou talvez, ela própria é quem era demasiado exigente.
— Sabe o que eu sonhei hoje? — A mãe já tinha mudado de assunto — Eu tinha queimado o arroz, a casa estava toda esfumaçada...
Regina largou o garfo, que fez barulho ao bater no prato de vidro.
— Que foi? — Brigite interrompeu o relato.
— Nada... Lembrei um... Negócio. — Permaneceu imóvel, encarando as próprias mãos, forçando a lembrança.
Já fazia três meses que havia voltado ao passado e não tinha sonhado uma noite sequer. Se questionou se uma coisa tinha a ver com a outra, se realmente não tinha sonhado, ou se apenas não se lembrava, o que seria bem estranho já que costumava se recordar de sonhos.
Talvez isso fosse uma prova de que ela já estava sonhando, o tempo todo. Ou existia ainda a possibilidade de estar em coma, pois poderia ter sofrido um aneurisma aquele dia no banheiro de seu apartamento.
E ela precisava acordar. Era só isso o que necessitava.
Naquela noite ela se deitou e, depois de se dar alguns beliscões sem que nada acontecesse, agarrou um urso de pelúcia e rezou para que despertasse.
Na manhã seguinte, já que nada havia mudado, ela optou por não entrar na primeira aula e utilizar um dos computadores da biblioteca para pesquisar sobre as hipóteses que tinha formulado. Encontrou diversas informações que justificavam a nova incapacidade de sonhar, ou ao menos a incapacidade de lembrar de possíveis sonhos, e muitas outras que a fizeram desistir da ideia de estar em coma.
Não havia nenhum motivo científico para o que estava acontecendo com Regina e ela teria que se conformar com isso.
___________________________________________________
Olá pessoal, para quem usa Spotify, criei uma playlist com a trilha sonora deste livro, hehe.
Tem músicas que são citadas na história e algumas outras que também serviram de inspiração, se interessar a alguém: ouçam ;)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro