Capítulo 20 - Vamos nos permitir
"O tempo voa, amor
Escorre pelas mãos"
(Tempos modernos – Lulu Santos)
Estava sentada na cama, com fotos do último ano espalhadas ao redor, algumas tiradas no piloto automático e muitas que ela havia tirado desta segunda vez. Sorriu, saudosa por antecipação. Os sentimentos eram dúbios, porém estava contente por ter revivido tudo aquilo. Uma pena que o contato com aquela turma iria diminuir no decorrer do ano seguinte, até chegar a quase nulo, exceto com Sabrina, por causa da morte de Guilherme.
Regina decidiu organizar uma despedida, mesmo que os demais não soubessem que era isso o que ela estava fazendo, no show que a Miscelânea faria no primeiro sábado de março.
Naquela noite viu Tariel pela primeira vez. Ela estava entrando na escola e o rapaz não a notou, pois estava ocupado numa ligação. Ele fazia o tipo de Regina: moreno e sorridente. Porém, diferente do que acreditou que aconteceria, ela não o achou atraente, seu coração não disparou e não teve vontade de adiantar o encontro.
Começou a se questionar se havia prolongado o relacionamento com Tariel apenas porque estava fragilizada com a morte de Guilherme e depois com o acidente de Ivan e Roberto. Uma pena perceber que aquele namoro teria sido apenas uma forma de fugir de suas tristezas e, pensando bem, também por causa dele ela teria se afastado das primas. A culpa não seria apenas de William — o namorado insuportável de Angélica — seria de Tariel também.
Ao chegar em casa, conectou o computador na internet com a intenção de pesquisar um assunto para a escola, mas nem chegou a começar o trabalho, pois Guilherme estava online.
O icq tinha aquela ótima opção em que o usuário poderia ficar "invisível" a menos que respondesse alguma mensagem, por isso Regina poderia fingir estar eternamente offline.
sonolento 08:32: namorando com quem?
sonolento 08:33: acho que você não está por aqui
sonolento 22:33: eu posso ser seu amante hehe
Sim, tinha a opção de fingir estar offline, porém não o faria.
charmed 23:08: Oi... Tô aqui.
sonolento 23:09: Oi! Agora me explica isso direito Impossivel que minha irma nao teria reclamado aos quatro cantos que tinha sido abandonada por voce se voce realmente tivesse começado a namorar
charmed 23:12: ué, eu poderia estar namorando escondido
sonolento 23:13: e voce ta?
charmed 23:14: não... Não estou namorando de nenhum jeito. Desculpa ter falado que estava.
sonolento 23:16: Desculpo mas porque vc falou isso?
charmed 23:17: nem sei viu Gui...
sonolento 23:19: Voce tá com medo de ficar comigo de novo? Voce acha que eu vou te pressionar pra voce transar comigo porque eu sou mais velho?
Regina riu para a tela do computador e agradeceu por não estarem tendo aquela conversa pessoalmente. Mal sabia ele que a questão era exatamente oposta.
charmed 23:20: Não. Eu não acho que você seja desses.
sonolento 23:21: nao sou mesmo A gente nao precisa fazer nada que você nao queira.
charmed 23:22: ... é que tem um cara na minha aula do técnico... Ele é legal, é bonito... Acho que eu vou acabar namorando com ele...
sonolento 23:24: e voce nao quer que eu queime seu filme? To ligado
charmed 23:25: Quase isso. Se eu e vc começarmos a ficar eu vou ficar confusa.
sonolento 23:26: Entendi De boa Mas e ai, voce vai levar ele no show da Miscelanea?
charmed 23:26: Sabrina te falou do show?
sonolento 23:27: falou, eu vou de carro com o Cabecao... quer dizer, isso se nao tiver problema
charmed 23:28: não, claro que não, eles gostam que a gente leve mais gente. Mas eu não vou levar o Tariel...eu ainda não tô ficando com ele.
Regina preferiu omitir o fato de que ela ainda nem o conhecia.
sonolento 23:31: voce nem ficou com ele e ja ta achando que vai namorar?! E se voce beijar ele e for uma bosta? E se ele for chato ou ciumento?
charmed 23:32: kkkk. Acredite, eu vou namorar o Tariel. Ele é bonzinho.
sonolento 23:32: Bonzinho? Rê! Bonzinho é como a gente descreve um animal de estimação!
charmed 23:33: kkkk enfim, não vou ficar aqui descrevendo as virtudes e qualidades dele. Aliás, desculpa ficar falando de outro cara com você.
sonolento 23:34: É mesmo Eu falei pra voce nao me contar quando conhecesse seu principe.
charmed 23:35: ah, mas ele não é meu príncipe, vai por mim. Vou conhecer meu príncipe daqui uns bons anos.
sonolento 23:35: Eu nao to entendendo entao por que voce vai ficar com ele se já sabe que nao vai dar em nada
charmed 23:36: porque eu achava que ia.
sonolento 23:36: Meu Deus mulher! Como voce é confusa!
charmed 23:38: Eu sei... Por isso que não vou ficar com dois ao mesmo tempo. Imagina o nó no meu cérebro.
sonolento 23:39: to vendo...
charmed 23:42: minha mãe tá fazendo sinal aqui, vou ter que desligar a internet.
sonolento 23:43: vai lá...
Os quatro chegaram à casa de Ricardo cinco minutos antes da banda começar a tocar. Dessa vez tinham sido precavidos e pararam para comer um sanduiche antes de irem para o show. Os olhares trocados entre Regina e Guilherme pareciam inofensivos e ela estava feliz por poder se despedir dele também.
Ela e Sabrina desceram do carro e correram para se juntar a Andrei, Diogo, Amanda e Marcela, num dos cantos da garagem. Eles obviamente estavam falando mal do namorado de Babí que mal os havia cumprimentado.
Regina sorria constatando que seus amigos realmente tinham incorporado o pessoal do fundão como parte da turma, a ponto até de sentirem ciúmes. Aliás ela já não considerava a existência de duas turmas separadas, pois não havia mais um fundão depois que o ensino médio havia chegado ao fim.
A garagem estava um pouco vazia, além dos amigos de Sabrina havia apenas mais meia dúzia de gatos pingados, sendo assim eles se sentaram todos no chão para curtir o show quase exclusivo. Regina se acomodou entre Sabrina e Marcela e alguns segundos depois sentiu um movimento atrás de si. Guilherme estava sentado num banco e sorriu para ela. Regina piscou em resposta e apoiou as costas nas pernas do rapaz, que não protestou.
De vez em quando ela respirava fundo, tentando guardar na memória o cheiro daquele lugar, o som daquela banda, a aparência de seus amigos na adolescência.
Numa das músicas mais animadas, os espectadores se levantaram para acompanhar o ritmo com chacoalhos desengonçados de corpos. Regina aproveitou o momento para se afastar e beber um copo d'água e quando retornou a banda iniciava a música "Drive" da banda Incubus, numa versão ainda mais calma.
Ela sorriu e parou ao lado de Guilherme que passou o braço por cima de seus ombros e os dois começaram a se balançar no ritmo da música. Eles tentavam acompanhar a letra, porém esqueciam diversas palavras e riam atrapalhados.
Na música seguinte eles voltaram a se sentar no chão, Guilherme ao lado dela. E em virtude do pouco público, a banda decidiu encerrar o show mais cedo.
— Da próxima vez a gente devia fazer o show de domingo mesmo, porque de sábado vai todo mundo pra balada. — Silveira enrolava os cabos elétricos.
— Pode ser, pode ser... Ou, vocês deviam começar a procurar algum barzinho pra tocar. — Regina sugeriu.
— Pode ser também.
O grupo de amigos, agora com Silveira e Ricardo junto deles, continuava sentado, conversando, sem vontade de se separarem. Babí colada à boca do namorado, se despedia do lado de fora da garagem. Cabeção os observava de longe, fumando próximo ao portão e conversando com uma menina que eles não conheciam.
As laterais dos corpos de Guilherme e Regina estavam grudadas e eles recebiam olhares curiosos dos demais, porém fingiam não perceber.
— Gente... Como vocês se imaginam daqui dez anos? — Amanda abriu uma garrafa de vinho e deu um gole direto no gargalo — Eu me imagino terminando meu mestrado — e ofereceu o objeto para Andrei, que estava imediatamente a seu lado.
— Rico. — Ele respondeu e todos gargalharam.
Depois de dar um gole, repassou a garrafa para Marcela, que ficou um tempo balançando a cabeça:
— Sei lá gente... Com um emprego bom, pelo menos.
Regina recebeu a garrafa e sorriu:
— Dez anos é muito pouco. Quero saber daqui vinte. Eu vou estar trabalhando com algo que eu consiga fazer a diferença na vida de algumas pessoas, vou estar casada, com uma filha e um apartamento próprio.
Guilherme a encarou rindo:
— Ainda essa certeza?
Regina deu de ombros e repassou a garrafa sem beber. O rapaz deu vários goles no vinho e falou:
— Em dez anos eu quero estar morando em outro país, curtindo a vida loucamente e em vinte anos... Sei lá! Morto por overdose.
— Credo! — Sabrina deu vários tapas no ombro do irmão enquanto o restante dava risada.
Regina fechou o sorriso e se impediu de ter qualquer outro tipo de reação.
— Tô brincando, calma, calma! — Guilherme se defendia — Vai, é a sua vez Bina!
— Eu? Eu não quero prever nada não, eu vou deixar a vida me levar! — Virou a garrafa sob aplausos.
— Eu... — Ricardo dava seu gole — Em dez me imagino quase desistindo, mas em vinte anos imagino a Miscelânea participando do Rock In Rio.
— E casado com a irmã do Diogo... — Andrei falou alto demais.
— O que?! — Diogo arregalou os olhos.
— Angay eu vou te matar! — Ricardo fingiu que ia bater no colega, porém não saiu do lugar.
— Você ficou com a minha irmã? Foi no dia do baile né, seu filho da puta? — a expressão de Diogo já havia se suavizado.
— É... — Ricardo balançou a cabeça e todos explodiram numa risada coletiva.
Regina estava aliviada ao constatar que o rapaz não estava assim tão fissurado nela.
— Todo mundo pegou todo mundo nesse dia... — Amanda riu, maliciosa — Não importa, se matem depois, vamos continuar a brincadeira.
O namorado de Babí tinha ido embora e ela se juntou à roda de amigos, pegando a garrafa:
— Eu tô com o Ricardo, em vinte anos a Miscelânea vai estar famosa.
Depois de beber ela entregou o vinho a Silveira.
— Sei lá gente... — Silveira deu um longo gole — Eu não sei nem o que vou fazer amanhã... Posso me imaginar só sem uma barriga de chopp?
— Pode. — Regina respondeu de pronto, ficando vermelha e despertando mais uma gargalhada nos amigos.
O último da fila era Diogo, ele virou a garrafa e olhou irritado para Silveira:
— Não deixou nada pra mim? Taí, daqui dez ou vinte anos, eu vou continuar sendo o cara que todo mundo esquece de deixar um gole e que vocês só conversam porque tem uma irmã bonita.
— Pra não dizer gostosa... — Ricardo sussurrou somente para quem estava a seu lado.
— O que você falou aí?
— Ai meu Deus, que drama! — Babí jogou seu chinelo na direção do rapaz.
Amanda abriu mais uma garrafa e a entregou a Diogo:
— Então vamos fazer o seguinte, daqui exatamente vinte anos a gente se reencontra e todo mundo vai trazer uma garrafa de vinho pra você, tá bom?
Diogo sorriu e deu o primeiro gole:
— Fechado!
A segunda garrafa fez o caminho de volta e o assunto agora era o que cada um estava fazendo naquele ano.
Regina deitou a cabeça no ombro de Guilherme e sorriu, ouvindo a voz dos amigos, descrevendo cheios de ânimo aquele primeiro trimestre de dois mil e dois.
— Gente, onze horas, vambora? — Cabeção jogou mais uma bituca de cigarro através das grades do portão. Os demais convidados e a menina desconhecida já tinham ido embora.
— Bora.
Os jovens ficaram em pé aos poucos, gemendo e reclamando do chão gelado e dos ônibus que não funcionavam depois da meia noite. Guilherme estendeu as duas mãos para ajudar Regina a se levantar, ela sorriu e esticou os braços, num misto de sono e melancolia.
Ele a puxou para um abraço e direcionou a boca para a dela, mas ela desviou, apoiando a cabeça em seu peito:
— Chega Gui... Tá na hora de eu ir pra casa.
O rapaz não entendeu o significado real daquela frase, porém não insistiu em mais nada naquela noite.
Quando se sentaram no banco detrás do carro, Sabrina apertou os olhos e perguntou apenas mexendo os lábios e gesticulando "Você tá ficando com o meu irmão?".
Regina sorriu e negou com a cabeça.
Sabrina observou a amiga e depois Guilherme, que sorria como um bobo no banco da frente e não acreditou na resposta. Tudo bem, ela descobriria a verdade mais cedo ou mais tarde.
Quando estacionaram em frente a sua casa, Regina abraçou a amiga, coisa que não costumava fazer:
— Tchau Bina.
— Tchau... — ela deu uma risadinha — a gente se vê no seu aniversário?
A garota já estava do lado de fora do carro, olhou para Sabrina e suspirou antes de fechar a porta:
— Eu te ligo.
Acenou para os meninos e entrou em casa limpando as primeiras lágrimas.
Na sexta-feira seguinte, após comer pizza com os pais, Regina se trancou em seu próprio quarto.
— Finalmente... — sussurrou — Faltam dois dias, só dois dias.
As últimas semanas pareciam ter durado o dobro do tempo normal, mesmo com os afazeres da escola e de casa. Ela mal podia esperar para abraçar Tiago e Clarinha depois daquelas cinquenta e duas semanas.
Sorriu aliviada e ligou o computador. Talvez daria uma última olhada nas notícias do dia e trocaria alguma mensagem com as amigas.
Havia um e-mail de Guilherme intitulado "oi". Sentiu um aperto no peito, respirou fundo e abriu a mensagem:
"Não adianta eu continuar fingindo, então, vou dizer de uma vez: Eu sou a fim de você Rê. Não quero ficar com você só quando a gente se cruzar de vez em quando por acaso. Quero ficar, ficando. E quem sabe o que mais pode acontecer...
O que você me diz? Tem uma festa da minha faculdade, vamo comigo? Ou a gente pode ir no cinema se você preferir, sei lá... Vamos se ver, conversar... Beijar... Porque...
'Ando meio desligado
Eu nem sinto
Meus pés no chão
Olho, e não vejo nada
Eu só penso
Se você me quer...
Eu nem vejo a hora
De lhe dizer
Aquilo tudo
Que eu decorei
E depois do beijo
Que eu já sonhei
Você vai sentir
Mas por favor
Não me leve a mal
Eu só quero
Que você me queira
Não leve a mal
Não me leve a mal
Não leve a mal...
(Ando meio Desligado - Pato Fu)'"
Apoiou o rosto na mão e ficou algum tempo lendo e relendo a mensagem. Ela não se lembrava de Guilherme ser o tipo de cara romântico, na verdade ela não se lembrava de nada, exceto que ele era o irmão bonito da melhor amiga.
E pelo visto ele era um pouquinho desavisado, já que a música citada no e-mail era na realidade do grupo "Os mutantes", mas ela não iria pegar no pé dele por isso.
Clicou em responder:
"Gui... Adorei receber seu e-mail, mas eu preciso pensar sobre tudo isso que você escreveu. Faz o seguinte: me liga segunda-feira na hora do seu almoço. Até lá eu vou ter uma resposta definitiva. Beijo!"
Na segunda-feira, se tudo saísse como previsto, ela estaria de volta a sua própria realidade e seu eu do passado lidaria com a situação.
Regina desligou o computador, vestiu o pijama, escovou os dentes e se jogou na cama.
— Agora é só esperar...
No domingo a família de Regina mais uma vez havia organizado um churrasco na casa de Cassandra. Segundo suas próprias contas, aquela seria a última vez que se encontraria com as versões jovens de seus familiares e com sua avó.
Cada vez que alguém chegava Regina abraçava a pessoa com força e eles tinham reações diversas:
— Tá bêbada Regininha?
— Tá doida prima?
— Desse jeito a dinda vai achar que você quer algum presente caro de aniversário.
— Gente, não posso estar feliz? Não posso mostrar pra vocês que estou feliz?
— Tia Bri, você deu uns remédios pra sua filha né? Onde já se viu adolescente todo sociável assim?
Regina sorriu, entrou na casa para usar o banheiro e trombou com Cassandra vindo da cozinha.
— Oi vó, desculpa.
A mulher deu uma piscada para a neta:
— É hoje, num é?
A garota engoliu a seco.
— Ãh?
Cassandra se inclinou e deu beijo na testa de Regina, que era quase da sua altura, e seguiu para o quintal.
A garota franziu a testa e continuou a andar na direção do banheiro. Na volta sentou entre Angélica e Ingrid e as três, petiscando uma picanha recém saída da grelha, riam das brincadeiras de Ivan. Ele sabia imitar todos os apresentadores de televisão e o cantor Roberto Carlos.
No início da noite Regina fora intimada a lavar a louça e ligou o rádio da cozinha para acompanhá-la. Os primos jogavam dominó na bagunçada mesa de jantar da avó e a cada música que começava, os quatro cantavam juntos.
Regina sorriu ao ouvir a introdução da música seguinte:
— Adoro essa!
Começou a secar uma xícara e foi aumentando a voz, acompanhada pelos primos:
— "Mesmo com tantos motivos, pra deixar tudo como está, nem desistir, nem tentar, agora tanto faz, estamos indo de volta pra casa."
A xícara escorregou entre seus dedos e caiu a seus pés, no piso marrom.
— Aí droga!
Deu um pulo para trás e bateu as costas na geladeira. O piso não era mais marrom, era bege.
Ela estava de volta a sua própria cozinha.
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