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Capítulo 2 - Todo dia era bom

"É que a gente quer crescer

E quando cresce quer voltar do início"

(Era uma vez – Kell Smith)

Os três foram os primeiros a chegar na casa de Brigite e Cido naquele domingo. Depois dos cumprimentos, a mãe de Regina apontou um envelope pardo, lacrado, em cima na mesa:

— Olha aí, a carta da sua vó.

Regina pegou o objeto e leu a mensagem escrita à mão num dos lados: "Para Regina, no seu 33º aniversário".

— O que será que é? — sorriu, franzindo a testa.

— Sua vó, você sabe, tinha aquela mania de falar que era bruxa.

As duas gargalharam e a campainha tocou, anunciando a chegada dos tios. Regina abriu a bolsa para guardar o envelope e sorriu ao encontrar um post-it com a letra de Tiago "Só pra lembrar que eu te amo. Falta uma semana para o melhor aniversário da sua vida".

Levantou a cabeça e encontrou o marido sentado no sofá, com Clarinha, sorrindo para ela. Aquela covinha que seformava na bochecha direita dele nunca deixaria de fazê-la sorrirtambém. Ele piscou por trás dos óculos e ela respondeu do mesmo jeito.

Tiago voltou a brincar com a filha, satisfeito por saber que faria Regina ainda mais feliz ao presenteá-la com uma viagem de férias pela Europa. Era um dos sonhos não realizados da esposa e ele havia providenciado tudo em segredo para que os três aproveitassem as férias de julho.

Angélica entrou na casa, empurrando a cadeira de rodas do pai, e Dália veio na sequência.

— Oi tio. — Regina cumprimentou Roberto e logo em seguida Clarinha correu para subir no colo dele.

— Clarinha, deixa seu tio entrar. Ele já vai brincar com você... — Tiago riu, interceptando a filha.

— Deixa ela... — A cadeira enroscou no tapete, fazendo Dália e Angélica precisarem manobrá-la.

— Pronto... Pronto. Vou ficar aqui. — Roberto parou próximo a mesa — E aí Clarinha, cadê os bonequinhos?

A menina começou a correr pela sala levando e trazendo bonecas e carrinhos.

— Vem, vô Cido! — Ela olhou para o senhor que vinha do corredor.

— Vai vô Cido! — Brigite imitou a neta e o homem obedeceu, rindo e sentando-se à mesa com eles.

Regina e Angélica começaram a pegar pratos e talheres para colocar na mesa:

— A tia Eva e a Ingrid não vêm?

— Eu chamei, mas vocês sabem como elas são atrasadas... — Brigite chacoalhou a cabeça.

Regina sacou o celular:

Grupo: Primas Prado

Regina 12:52: Ingrid, vocês não vêm almoçar na minha mãe?

Ingrid 12:53: Estamos chegando, até parece que vocês não conhecem a tia de vocês... Passou primeiro na casa do meu ex-irmão.

Regina 12:54: ok, vem logo.

— Toda vez que ela escreve isso sobre o Ivan eu tenho vontade de mandar um textão sobre perdão pra ela. — Angélica sentou ao lado de Regina no sofá — Quem ficou paraplégico foi meu pai, não o dela.

— Eu prefiro ignorar. A Ingrid é cabeça dura, já faz tanto tempo que eu acho que ninguém mais nem liga pra isso, só ela.

— Pois é...

— O que vocês estão fofocando aí? — Dália gritou da porta da cozinha.

— O de sempre mãe — Angélica riu — Faz trinta anos que a gente fofoca as mesmas coisas e ainda não acabamos.

— Falando nisso... E o cara do seu serviço? Fernando? — Regina perguntou, maliciosa.

— Fabrício...

Tiago entrou no apartamento com Clarinha nos braços e, ao mesmo tempo que a ajeitava na cama, Regina tirou-lhe os sapatinhos vermelhos e a cobriu .

Desmanchou a mochila da filha e colocou as coisas no lugar, enquanto a esposa separava a roupa que vestiria no dia seguinte.

Tiago entrou no banho e ela abriu a porta do banheiro minutos depois:

— Tá ocupado?

Ele deslizou a porta do box e sorriu travesso, tirando a espuma do rosto:

— Mas tem que ser rápido pra não desperdiçar muita água.

Ela riu e se despiu com pressa.

* * *

Regina saiu primeiro do banheiro, se trocou e seguiu para a sala. O envelope que havia trazido da casa da mãe, abandonado em cima da mesa de jantar, lhe chamou atenção. Ela o abriu e viu que dentro dele havia duas coisas: uma folha de papel dobrada e um pequeno frasco de vidro transparente, com um líquido alaranjado, um rótulo em branco e uma etiqueta amarrada ao gargalo, que era fechado por uma rolha: "Escrever um ano específico de seu passado no rótulo deste frasco e tomar todo o conteúdo. Dose única."

Franziu a testa e desdobrou o papel, reconhecendo a letra tremida da avó:

"Regina, esse é o presente mais maravilhoso que eu posso te dar: a crença. E quando ocê acredita, eu posso começar a ti ensinar.

E para que cê realmente acredite na existência da magia, te convido a viver novamente um ano de sua existência. Sim, isso memo. Este líquido vai te dá a oportunidade magnifica de viajar no tempo.

Mais tem regra e são as seguinte:

1- Você vai revive 52 semana da sua existência e depois vai retorná ao momento em que tomou a poção, como se nunca tivesse si ausentado.

2- Em troca, ocê perde um ano de longevidade, porque toda magia tem um preço. Então ocê pode escolher não usar a poção.

3- Quando retornar ao seu passado escolhido, nunca comenta com ninguém viu, ainda mais comigo, o que ocê sabe dos acontecimento do futuro."

E não havia mais nada escrito.

— Que coisa mais maluca! — Tiago sorria e franzia a testa ao lado da esposa quando ela releu a carta para ele — Eu sei que sua avó era meio excêntrica né, mas...

— Excêntrica? Você está sendo bonzinho.

Eles deixaram os itens em cima do balcão da cozinha estilo americano e foram preparar suas xícaras de chá, para acompanhá-los enquanto assistiam a qualquer porcaria na televisão. Era um ritual deles em alguns domingos à noite.

— Que ano você escolheria? — Tiago brincou enquanto colocava a água para ferver.

— Que difícil... Olha, depois do encontro com o pessoal que estudei ontem fico pensando em voltar pra época do colégio e aproveitar mais.

— Sério?

— Ah sim... Olha como tudo era mais feliz: Minha avó estaria viva, meu tio Roberto não estaria numa cadeira de rodas, a Ingrid ainda conversava com o irmão dela e a Sabrina não tinha perdido o Guilherme.

— É... Era um tempo mais fácil, né? Minha época do colégio era bem boa também, não posso negar. Eu passava a tarde toda jogando videogame e estudava só na véspera da prova... — Ele riu.

— Olha aí. Já eu só dava atenção aos livros e cadernos e no fim, você viu, até quem só tirava nota vermelha se saiu muito bem obrigado. Eu voltaria pra frequentar as festas pelo menos.

— Não sabia que no fundo você tinha essa vontade de ser mais... Farrista. — Provocou.

— Claro que sabia! — Ela sorriu maliciosa — Eu transei com você no dia que a gente se conheceu! Você foi a minha grande aventura!

— Olha... Se a grande aventura da sua vida foi ir pra cama meia hora depois de conhecer o bissexual mais geek que você poderia encontrar, então, realmente, você precisa rever sua juventude...

Regina gargalhou e deu um tapinha de leve no ombro do marido:

— Por favor, não desvalorize meu maior ato de liberdade!

— De jeito nenhum. Aliás, taí o ano para o qual eu voltaria: dois mil e nove. Lembro perfeitamente do que você estava vestindo aquele dia.

— Lembra nada! Você estava bebendo com seus amigos e já estava alegre quando eu cheguei!

— É, não lembro mesmo... — Ele riu e a beijou na bochecha — Ainda bem que você me mandou mensagem uma semana depois.

— Não é?

— Seu amuleto da sorte.

— Exatamente! Minha vida só começou a dar certo depois que eu te conheci.

— Também não é assim. — Ele riu.

— É... As coisas estavam começando a se encaminhar e você foi a cereja do bolo.

— Isso, prefiro essa visão.

— Eu não mudaria nada na nossa vida.

— Nem eu.

Sorrindo, Regina completou as xícaras com a água recémfervida:

— Agora imagina que legal, voltar aos dez anos de idade por exemplo. Ficar brincando o tempo todo... Não ter preocupações...

— Ah sim, melhor ainda. Mas, me diz uma coisa, e o efeito borboleta?

— Não tem nada sobre isso nas regras da minha avó.

— Mas todos os filmes de volta no tempo falam sobre isso.

— Vai ver que essa magia é como um sonho, não vai alterar as coisas.

— Você está começando a acreditar, é?

— Eu não!

— Vamos tirar a prova então.

— Deixa de ser besta. Eu não vou tomar aquele negócio que está parado faz três anos num potinho, vai desarranjar meu intestino.

Sentaram-se e assistiram um filme sobre viagem temporal alternando entre fazer piadinhas sobre o assunto e elogiar a beleza do ator principal.

Quando as letras começaram a subir pela tela, Regina se levantou e pegou o frasquinho na mão:

— Hum...

— Você vai tomar? — Tiago cruzou os braços, desafiando-a.

Ela não respondeu nada, pegou uma caneta, preencheu o rótulo e sacou a rolha da tampa:

— Até já! — sorriu e de uma vez só bebeu todo o conteúdo, como se fosse uma dose de tequila.

— É ruim?

Ela o encarou decepcionada:

— Não, tem gosto de água. — Riu e jogou o frasco no lixo.

— Poxa, achei que você pelo menos ia vomitar. — Tiago também riu, desligou a televisão e se encaminhou ao banheiro.

Regina lavou as duas xícaras, espiou Clarinha que dormia tranquilamente e esperou o marido sair do banheiro.

Se cruzaram na porta e ele piscou pra ela:

— Não é dessa vez que você vai ser uma adolescente rebelde.

Sorrindo divertida, Regina sentou no vaso sanitário. Ouvindo o barulho da própria urina bocejou, fechando os olhos:

— E amanhã já é segunda de novo...

O eco de sua voz no banheiro soou diferente e quando abriu os olhos, estremeceu.

Esticou o braço para tocar o azulejo bege e reparou nas próprias unhas, pintadas de preto:

— Ãh?

Olhou para baixo e não viu as calças do pijama com a qual estava três segundos antes, mas sim jeans azul claro, com a boca larga e uma sandália de salto, feita de plástico. Num pulo saiu do vaso-sanitário e ergueu as calças, sem sequer se limpar. Aquele parecia o banheiro da casa de sua mãe em...

Então se olhou no espelho e deixou escapar um grito curto, tapando a própria boca em seguida.

Reconheceu a camiseta preferida que um dia se tornaria um pano de chão. Usava apenas um gloss cor-de-rosa sem nenhuma outra maquiagem, a testa exibia algumas espinhas, os cabelos bastante longos estavam cheios de frizz e os cachos nas pontas eram quase inexistentes, exatamente como ela se lembrava que eram em...

Puxou a maçaneta com mão melada de gloss e analisou o que parecia ser o corredor do segundo andar da casa de Brigite e Cido. Havia mais duas portas: a de seu quarto e o de seus pais, de onde vinha o barulho de uma televisão ligada; igual a todas as noites dedomingo quando ela era...

Entre as duas portas, pendurado num prego, havia um calendário de papel que mostrava: março de 2001.

— Ai caramba!

— Rê! Vem logo que acabou a propaganda! — A voz de Ingrid vindo do andar debaixo a fez seguir em frente. Desceu cada degrau vagarosamente, sentindo o pé suado colando no plástico do sapato.

Ao chegar na sala de estar observou a mobília que ainda parecia nova e que pouco tinha mudado em vinte anos, exceto pela televisão. As primas estavam no chão, atentas ao seriado policial. Angélica ainda usava o cabelo castanho escuro na altura da cintura e Ingrid já tingia os seus de vermelho. Regina sorriu com a impressão de que a prima pintava os cabelos desde criança. Perto delas, sentada no sofá e com um livro no colo estava...

— Vó! — Correu para abraçar a senhora magra, que usava uma saia longa, estilo hippie, e uma regata preta.

Cassandra a abraçou de volta, rindo:

— Que foi, menina?

— Nada... — Tentou segurar as lágrimas, respirando fundo e deixando o perfume forte preencher suas narinas.

Então afastou a cabeça, deixando uma das mãos ao redor da cintura da mulher e com a outra alisou seus cabelos, que ainda não eram completamente brancos e nem curtos.

Ingrid e Angélica nem repararam na reação anormal da prima. Regina permaneceu quieta, fingindo interesse nas imagens do seriado, mas na realidade encantada com Cassandra lendo seu livro e com a mãe vindo à sala a cada cinco ou dez minutos para comunicar alguma coisa a respeito das sobras da pizza que tinham acabado de comer, ou sobre a carona que daria a Cassandra em seguida. Brigite estava corada e com alguns quilos a mais do que em 2020, fazendo a jovem se recordar do que o Alzheimer de Cassandra tinha causado a todos naquela família.

— É real... — Regina sussurrava de vez em quando e sorria com todas as possibilidades.

O seriado terminou e as primas se despediram, avisando que iriam para um barzinho encontrar alguns amigos.

— Vamos tirar uma foto! — Regina sugeriu de repente e as outras mulheres apenas concordaram.

Ela abriu a gaveta da sala, sabendo exatamente onde a máquina fotográfica costumava ficar e sorriu ao constatar que havia filme.

— Ah, droga... — Falou baixo ao se lembrar que o modelo não possuía timer — Mãe você tira e depois a gente troca?

— Tiro... — Ela franziu a testa, estranhando a animação da filha porque Regina costumava odiar fotografias.

Quando as mulheres saíram e a casa ficou em silêncio, Regina correu ao seu quarto e, ao abrir a porta, começou a rir histérica. Tudo estava exatamente como ela se lembrava: a cama de solteiro encostada na parede com a colcha de retalhos que Cassandra havia costurado, o guarda-roupa de portas brancas, o mancebo atolado de bolsas, colares e casacos, a televisão larga em cima de uma cômoda bege que não combinava com o guarda-roupas...

Ela sentou na cama e sem perceber colocou o dedo indicador na boca. Ela costumava roer as unhas nessa época:

— E agora? 

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