Capítulo 18 - Era
"Mas quando eu falo de amor por aí
É pensando em você"
(Nossa conversa - Kell Smith)
Nos três dias que se seguiram Regina se ocupou em configurar seu novo computador, relembrar como a internet discada funcionava, rir ao ler notícias aleatórias sobre os acontecimentos daquele ano e preparar uma mala para viajar com os padrinhos no réveillon. Ela aproveitaria a ocasião para conversar com Cassandra, que também iria com eles, pois estava decidida a arrancar alguma informação da avó.
Tentou inclusive se entusiasmar quando tio Roberto buzinou às seis da manhã daquela segunda-feira enquanto seu corpo adolescente gritava por mais cinco minutos na cama. Despediu-se dos pais e correu para o carro, abarrotado de pessoas e malas, rumo à praia.
Sentou-se no banco detrás e apoiou a cabeça no vidro, tentando dormir. Porém, cada vez que o celular apitava ela tinha medo de que fosse alguma mensagem de Guilherme e ela ainda não sabia como agiria com ele.
Conforme a vida amorosa que ela tinha vivido originalmente, e amado, ela namoraria Tariel e depois Tiago. Apenas os dois. O irmão de sua melhor amiga a atraia, é claro, contudo, não se enxergava vivendo com ele o tipo de momento que compartilharia com o marido. Não se enxergava tendo conversas instigantes que duravam horas, não se via transando com ele do modo como possuía e era possuída por Tiago, não se imaginava convivendo com ele pelo resto da vida, não se via descobrindo detalhes fascinantes sobre ele de tempos em tempos e, muito importante, não visualizava Clarinha.
Ela havia decidido que se manteria longe de Guilherme, para o bem dos dois e de seja lá o que estava acontecendo com o futuro.
E uma coisa horrível que precisava admitir: não queria ser a pessoa que sofreria pela morte do namorado. Não tinha certeza de que era forte a esse ponto, ainda mais sendo tão jovem, e precisava continuar sendo a pessoa que apoiaria Sabrina.
Eram tantas preocupações e a cada novo pensamento ela se remexia no banco do carro, querendo gritar e perguntar tudo a Cassandra, sem a menor cautela.
— Tá duro esse trânsito né Regininha? — Dália ofereceu um chocolate à afilhada.
— Sem problemas tia. É o preço que a gente paga pela diversão.
— Eu não estou podendo pagar por nada não. — Angélica riu a seu lado e ambas começaram a conversar baixo sobre o desemprego da prima e sobre William, o cara com quem ela ainda não tinha decidido se queria continuar ficando.
Depois do almoço e depois de se acomodarem no apartamento alugado, Cassandra anunciou:
— Vou aproveitar o final de tarde pra fazer umas coisas, mas eu volto pra ajudar a preparar a ceia. — E saiu sem que Roberto ou Dália a questionassem.
Regina, sentada na cama assistindo Angélica tentando desamassar a roupa que vestiria mais tarde, sussurrou:
— Vamos seguir a vó?
— Pra quê? — a prima sequer desviou o olhar do que fazia.
— Você não acha que uma feiticeira faria alguns rituais bem interessantes hoje?
Angélica gargalhou:
— Ai Regina, só você!
Mesmo sem o apoio da prima, Regina conseguiu dar uma desculpa qualquer aos tios e desceu para o calçadão. Infelizmente já fazia alguns minutos que a avó havia saído e, por mais que observasse todo o entorno e caminhasse alguns quarteirões, não foi capaz de avistá-la. Admitindo a derrota optou por voltar para a frente do prédio e se sentar num dos bancos de concreto, para observar maravilhada os últimos raios de sol de 2001.
— Pensando na morte da bezerra? — Cassandra se sentou ao lado da neta, que riu com a expressão antiquada.
— Mais ou menos isso. E a senhora, foi fazer um ritual de fim de ano? — arriscou.
— Mais ou menos isso. — Respondeu no mesmo tom e com as mesmas palavras da garota.
— E como é? Pra que serve? — dobrou uma das pernas e se virou completamente na direção da avó.
— É uma homenagem à natureza, à Deusa, um agradecimento por tanta coisa bela. De vez em quando a gente precisa parar de pedir e só agradecê.
Regina concordou com a cabeça e suspirou para emendar mais uma pergunta, quando a avó se pôs de pé:
— Então vamo que eu preciso ajudar tua tia na cozinha.
— A senhora só foge das minhas perguntas. — reclamou enquanto atravessavam a avenida, provocando mais uma gargalhada em Cassandra.
Algumas horas depois Angélica e Regina competiam por um espaço no banheiro único do apartamento.
— Faltam cinquenta minutos, o ano está morrendo! — Cassandra sempre fazia a mesma brincadeira com o Réveillon.
— Vocês estão lindas, vai! Vamos pra praia. — Dália enxotava as garotas na direção do elevador.
Regina deu uma última olhada em seu corpo adolescente na saia jeans e blusinha branca e sorriu lembrando-se das tantas viradas de ano ao lado de Tiago. Fora numa delas que, enjoando com o cheiro da comida sendo preparada, ela começou a desconfiar que estava grávida.
— Faltam quarenta minutos!
— Tô indo! Tô indo!
Os cinco se reuniram na areia forrada de gente para acompanhar a chegada de 2002. Reparou que a avó passava de uma mão para a outra um pequeno amuleto dourado, em forma de uma figa, e murmurava algumas palavras, porém o barulho da multidão não permitia que ela distinguisse o que exatamente.
A cada clarão dos fogos de artifício e a cada estrondo de rojões, imagens passavam pela memória de Regina: a sessão de fotos em que escreveram "Clara" na barriga dela e "Cerveja" na barriga de Tiago; o desespero quando a bolsa estourou; a emoção do primeiro choro; a vontade de filmar cada nova reação e cada nova palavra dita por Clarinha; o som da risada dela...
— Feliz ano novo! — Angélica a abraçou com força, sem perceber que a prima chorava.
Regina respirou fundo, disfarçando um soluço, e depois abraçou os tios e a avó.
— Vamos pular sete ondas! — Dália sugeriu.
— Podem ir, vou ficar aqui. — Cassandra negou o convite.
— Eu fico com você então vó. — Regina aproveitou a chance de estar novamente a sós com ela.
Roberto, Angélica e Dália correram de mãos dadas na direção do mar e Regina se perguntou se um dia ainda viveria uma cena igual àquela com Tiago e Clarinha.
Cassandra guardou o amuleto dourado entre os seios e suspirou, observando as pessoas sendo atraídas pela água. Regina tomou coragem e entrou de uma vez no assunto que tanto a atormentava:
— Vó, a senhora sabe o que é efeito borboleta?
A mulher chacoalhou a cabeça e projetou o lábio inferior:
— Não.
— É quando alguém faz uma coisa que pode até parecer inofensiva, como pisar numa borboleta, mas que muda o futuro. Sempre que tem filmes sobre viagem no tempo eles falam disso.
— De novo esse negócio, Regininha? — Cassandra sorria distraída, ainda olhando o mar.
— Eu não aguento mais vó! Eu preciso perguntar: o que aconteceria se uma pessoa revivesse o próprio passado?
O sorriso de Cassandra foi desfeito de uma vez, como se a mulher recebesse um soco, e ela se virou de frente para a neta:
— Num fala mais disso.
— Vó... Por favor... — lágrimas desciam pelo rosto da garota.
Elas se encararam por alguns segundos, Regina franziu a testa, implorando, e a mulher cedeu:
— Eu só vou tocar nesse assunto uma vez e daqui dois minuto eu vou esquecer tudo o que te disse. Eu num posso reproduzir o feitiço do esquecimento, então, por favor, num fala mais nisso.
— Ãh? Tá...
A senhora segurou ambas as mãos de Regina e elas continuaram a se olhar profundamente e foi a primeira vez que notou que o olho esquerdo da avó possuía uma pequena mancha escura na pupila.
— Tudo pode acontecer. Uma palavra ou até um olhar, pode alterar tudo. E se um dia alguém fez um feitiço desse tipo é porque a pessoa estava desesperada, ou maluca.
O sotaque caipira tinha diminuído bastante e Regina sentiu as pernas amolecerem.
— E se você fez um feitiço desse para me convencer de que era uma bruxa?
— E eu te convenci? — a boca de Cassandra entortou levemente, denunciando sua vontade de voltar a sorrir.
A garota assentiu:
— Sim. Mas eu acho que eu estou apagando meu futuro. O que vai acontecer se...
— É uma maldição também Regininha.
— O que?
— A nossa cultura é uma benção e é uma maldição. Só a aceite se tiver coragem, ou então, deixe a herança se perder. — Soltou as mãos da neta.
Regina ficou estática e assistiu à senhora se agachar no chão, com uma agilidade incomum para alguém de quase setenta anos. Cassandra abriu um buraco na areia com dois dedos e mais uma vez sussurrou algumas palavras, em seguida tateou os bolsos da bermuda que usava e tirou de lá algumas minúsculas folhas secas, esfregou-as nas mãos e deslizou os dedos pelo próprio rosto.
Ao se levantar ela sorria um pouco abobalhada com um olhar muito parecido com aquele de quando o Alzheimer estava no estágio avançado.
— Vó, tá tudo bem?
— Oi? Tá... Tá sim... Aqueles lá não vão sair da água não? Preciso fazer xixi.
Regina deu um sorriso de lado e colocou a mão no próprio peito, para ter certeza de que não estava imaginando o fato de seu coração estar batendo mais acelerado do que jamais esteve.
A família permaneceu na praia por mais dois dias e Regina se forçou a aproveitar os momentos com eles.
— A vó falou que não vai descer pra praia hoje, disse que vai aproveitar pra ficar sozinha no apartamento e fazer uns... Rituais. — Angélica riu e, esticando uma canga, sentou ao lado da prima na areia.
Roberto e Dália estavam caminhando pela beira do bar, portanto as garotas estavam sozinhas.
— Sabe, eu acredito mesmo que a vó é bruxa. — Regina arriscou.
— Ah, pára com isso! Você tá falando sério?! Sério mesmo?
— Sério!
— Sério? — ela baixou os óculos escuros e encarou Regina.
— Vai por mim. E eu acho que a gente devia sugerir pra ela escrever um livro, registrando os encantamentos.
Angélica gargalhou e jogou o corpo para trás, se deitando:
— Aí Rê, você de uns tempos pra cá...
Ela apenas suspirou. Quem sabe poderia convencer as primas a acreditar nela e elas poderiam ajudar com a parte de criar um histórico da sabedoria de Cassandra. Tinha receio do que encontraria quando retornasse ao futuro e queria garantir que poderia cancelar o que havia feito, ou fazer outras alterações, ou...
— Meu Deus! — pela primeira vez considerou a possibilidade de não voltar ao futuro quando o prazo do feitiço vencesse.
— Que foi? Que foi? — Angélica se sentou outra vez, de supetão, e olhou apavorada ao redor, procurando algum assaltante.
— Nada, nada... Deita aí.
— Tá doida, Regininha?
— Tô quase.
Regina passou as duas primeiras semanas de janeiro sem sair em casa. Primeiro porque estava convencida que era o único modo de não causar mais alterações e segundo, porque estava obcecada com a necessidade de voltar para casa.
— Filha! Não saiu da mesma posição do sofá desde hoje de manhã? — Brigite colocou as mãos na cintura assim que entrou em casa no início da noite.
— É. — A garota deu de ombros.
— Pelo amor de Deus! Chama a Sabrina pra sair, vai fazer alguma coisa!
Ela suspirou e analisou o rosto apreensivo da mãe:
— Tá, eu vou.
Telefonou para a amiga e combinaram de ir ao cinema, juntamente com Amanda e Marcela, para assistirem "O diário da princesa". As três estavam procurando empregos e, portanto, tinham que aproveitar cada minuto antes que as agendas não se encaixassem mais.
Regina devia fazer o mesmo, todavia sabia que não haveria nada para ela nos próximos oito meses. Ou talvez agora houvesse...
Chacoalhou a cabeça e ligou o computador.
Resolveu que estava na hora de criar sua conta no icq e ocupar boa parte de seu tempo gastando horrores em conta telefônica usando a internet discada. A florzinha verde que representava aquele quase esquecido programa de troca de mensagens instantâneas a vez sorrir e lhe deu uma ponta de esperança de que pudesse desviar os pensamentos das mil possibilidades que povoavam suas ideias.
Digitou no site de pesquisas "colapso nervoso" e após alguns minutos de leitura concluiu que não estava nesse nível de estresse.
Ainda.
Ao conversar com Sabrina ficou sabendo que Guilherme havia iniciado um estágio e comprado um computador à prestações, antes mesmo de receber seu primeiro salário, o que permitiria que ela e a amiga começassem a se comunicar via internet.
E qual não foi sua surpresa quando, poucos dias depois, o irmão da melhor amiga a adicionou no icq. Quando visualizou o convite, seu primeiro pensamento foi negá-lo, mas, acabou aceitando pois não queria ser rude com o rapaz. Da última vez a mera falta de um olhar havia feito Guilherme bater o carro e só agora ela percebia o quanto a autoconfiança dele era frágil.
Eles começaram a trocar algumas mensagens quase que diariamente e, para seu alívio, ele não a chamou para saírem juntos. Os assuntos abordados se limitavam a estreia de filmes ou o estágio dele, nada com conotação romântica ou sexual.
Ela encarava aquelas conversas como parte de suas despedidas, pois, ou ela voltaria ao futuro ao final das 52 semanas, ou obrigaria sua avó a providenciar um novo feitiço. Estava decidida.
As aulas do curso técnico de Regina e as da faculdade de Guilherme só começariam na semana seguinte e eles passaram aquela noite de quinta-feira conversando por mais tempo que o habitual, permitindo que os assuntos se aprofundassem.
Já era quase meia noite e Brigite, dormindo, havia parado de pedir que a filha desligasse. Na casa do rapaz, Sabrina também estava na cama e nem desconfiava da amizade que os dois cultivavam a cada enter.
sonolento 23:47: planos para 2002?
charmed 23:48: Fazer meu técnico, arrumar um estágio...
Começar a namorar... Ela se deteve antes de descrever os principais acontecimentos de sua vida naquele seguinte.
charmed 23:48: e vc?
sonolento 23:51: descobrir o que me faz feliz
charmed 23:51: Nossa, q profundo!
sonolento 23:52: kkk Ah, sei lá, eu não gosto da minha faculdade, não gosto do meu emprego... Fico imaginando se a vida é assim mesmo ou se eu deveria desistir de tudo e recomeçar
charmed 23:54: Seja lá o que você fizer, pense bem e não decida na hora da raiva. Não briga com seu pai e sai nervoso tomando atitudes.
sonolento 23:56: Não não. To pensando faz meses... se eu for falar alguma coisa eu chamo minha mae pra me ajudar, ela acalma ele
charmed 23:56: Então tá.
sonolento 23:57: me diz uma coisa: como você se imagina "sendo feliz" ?
charmed 23:59: Caramba! Você está filosófico mesmo hoje hein. De verdade mesmo?
sonolento 00:01: sim de verdade mesmo
charmed 00:01: não vai rir.
sonolento 00:02: não vou! fala logoooo
charmed 00:05: me imagino podendo acordar tarde num sábado, num apartamento que eu lutei e consegui comprar com o suor do meu trabalho. Trabalho esse que eu adoro (não amo, porque trabalhar é cansativo e graças a Deus não sou obcecada por ele). Me imagino transando intensamente com meu marido em lugares e horários inusitados. Me imagino com uma filha fofa que diz as coisas mais engraçadas e eu quero filmar tudo o que ela faz porque ela é a "coisa" mais incrível que eu possuo. Me imagino viajando para lugares paradisíacos nas férias. Me imagino encontrando minhas amigas de longa data para rirmos e apenas estarmos juntas...
sonolento 00:07: que burguesa chata voce
charmed 00:08: HAHAHAHAHAHAHAHA Lendo assim parece bobo. Mas eu juro que é maravilhoso.
sonolento 00:08: sei
charmed 00:09: E você, como você se imagina?
sonolento 00:11: em qualquer situacao que não envolva uma rotina Sera que tem um emprego que a gente pode viver cada mes num pais diferente?
charmed 00:12: ser um nômade digital.
sonolento 00:12: Que isso?
charmed 00:13: nada, tô louca. Me ignore.
sonolento 00:14: tá pensando no seu principe encantado é? No marido dessa sua fantasia de vida ideal?
charmed 00:14: tô sempre pensando nele.
sonolento 00:16: quando conhecer ele nem me apresenta que eu vou ficar com ciumes
charmed 00:17: prometo que só vou conhecer ele quando você já não estiver por perto.
sonolento 00:18: quando eu estiver no meu emprego dos sonhos? Com uma mulher em cada "porto"?
charmed 00:20: isso...
Regina se permitiu uma ilusão.
E em seguida se deu conta de que estava novamente roendo uma unha, o que a fez decidir encerrar a conversa por aquela noite. Eles estavam entrando em um assunto perigoso: o futuro.
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