Capítulo 17 - O acaso
"Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer"
(Epitáfio – Titãs)
Regina havia passado a semana ingerindo muitos líquidos para garantir que desta vez não teria uma crise de cólica renal e conseguiria participar de seu baile de formatura naquela quinta-feira, entre o Natal e o Ano Novo.
No caminho do cabelereiro para casa ela se permitiu relaxar, porque da primeira vez ela tivera que interromper a feitura do penteado para, aos prantos, ser levada ao pronto socorro.
Colocou o vestido e a sandália e rodopiou seguidas vezes em frente ao grande espelho que ficava na porta do guarda-roupas. Aquele era o dia pelo qual ela havia voltado ao passado, tinha certeza. Iria dançar durante todos os minutos, iria tirar muitas fotos e estava cogitando até mesmo tomar alguma bebida alcoólica novamente.
Sorriu ao perceber que se sentia quase como no dia de seu casamento, quando também passou algum tempo se admirando no vestido cor de marfim e nos sapatos rosa pálido...
Minutos antes de partir para a igreja, receberia uma mensagem:
MeuTiago 17:27: Já era, agora é para sempre, hein.
Regina 17:29: hahaha, e já não era para sempre desde aquele pedido de namoro no post-it?
MeuTiago 17:30: Com certeza era.
— Tá pronta? Estamos só te esperando.— Ivan colocou a cabeça no vão da porta aberta, tirando-a dos devaneios. Ele seria seu par para a valsa e estava muito bonito com o smoking preto que os meninos deviam usar.
— Acho que sim. — Ela suspirou e decidiu que naquela noite, e somente naquela, não pensaria como uma mulher de mais de trinta anos, ela se permitiria ser a adolescente que temporariamente era.
Ela iria aproveitar aquele baile como sempre havia se amargurado por não ter feito.
O alvoroço formado por seus parentes paternos e maternos se aglomerou para a foto na entrada do salão de festas. Cassandra, usando um vestido cor de vinho que a deixava com cara de alguém pertencentea alguma realeza, era uma das poucas idosas presentes no baile, para orgulho de Regina.
Localizaram a mesa reservada a eles e Regina reconheceu parte da família de Sabrina na mesa ao lado.
Guilherme, insuportavelmente lindo de smoking, conversava com o pai quando ela se aproximou. Se no dia-a-dia ele já parecia mais velho do que era, com a produção para o baile até mesmo a Regina de trinta anos se sentiria atraída por ele.
Decidiu cumprimentar a todos rapidamente e evitar o olhar do rapaz. Porém,quando Guilherme se inclinou para beijá-la no rosto e depositou levemente a palma da mão quente em suas costas expostas, ela sentiu um arrepio percorrer todo o corpo e teve vontade de arrastá-lo para um canto escuro do lugar.
— Oi...
— Oi...
— Regina! — os gritos das amigas a salvaram da ebulição de hormônios.
Foi ao encontro delas e começaram a trocar elogios enquanto se dirigiam para um dos locais onde eram tiradas fotos dos formandos, em frente a grandes vasos decorativos.
— Nossa, tá linda!
— Adorei seu sapato!
— E eu o teu cabelo!
— Rê, você tem que ver como o irmão do Silveira é lindo!
De lá, as quatro seguiram para a pista de dança, porque não havia tempo a perder e a banda já tinha começado a tocar alguns axés e funks da moda. Regina nunca soube muito bem as coreografias daquelas músicas que, não importando a época, a deixavam um pouco escandalizada, porém procurava não prestar atenção à letra.
Poucos minutos depois Diogo e Andrei se juntaram a elas e o ex amor platônico de Regina estava ainda menos a vontade do que ela com as músicas. Ela riu ao observá-lo, constatando ser a primeira vez em que concordavam com alguma coisa.
O salão estava decorado em tons de dourado e branco, as cores do colégio, e luzes fracas davam uma atmosfera etérea ao ambiente. Regina lançou um olhar para Cassandra, que gargalhava com um copo de cerveja na mão: aquela era a bruxa mais fora do padrão que poderia existir.
Avistou Babí abraçada ao namorado, junto com Silveira e Ricardo, todos bebendo e rindo alto, do jeito que gostavam. A nissei usava um vestido estilo japonês, com uma fenda até quase o meio da coxa direita e mais tarde brincaria "Viu só como eu sou tradicional?".
As outras meninas também estavam lindas em suas roupas e maquiagens, porém nenhuma delas a tinha surpreendido mais do que Marcela, usando um decote ousado pela primeira vez desde que se conheciam. Sentiu necessidade de gritar, tentando superar a altura da música:
— Má... deixa eu te falar uma coisa? Você tá muito linda. Aliás, tá gostosa!
As meninas, Andrei e Diogo riam divertidos:
— É verdade, tá mesmo.
— Concordo!
— Tá todo mundo lindo! — Ela tentou disfarçar a timidez e a felicidade ao ouvir Diogo elogiá-la.
Durante o intervalo da banda o grupo de amigos, como um bando de animais inseparáveis, se movimentou para comerem salgadinhos e tomarem refrigerante.
Regina se aproximou sorrindo da mesa que acomodava seus parentes e pediu para a mãe lhe servir um pouco de espumante, Brigite riu e atendeu o pedido da filha.
— Gente! Vai chover! — Angélica brincou, chamando atenção de Ingrid, Ivan e de mais dois primos do lado paterno de Regina.
— Um brinde!
— Saúde!
— Gente, eu tenho uma entrevista de emprego amanhã, não posso ficar imprestável... — Ingrid enchia novamente a própria taça.
Regina se recordou que era graças àquele emprego da prima quer ela conheceria Tiago, no futuro.
— Vai dar tudo certo, eu sinto que esse emprego vai ser muito importante e não só para você. — Piscou para Ingrid.
— Ui, prevendo o futuro? Isso é coisa da vó. Olha que que eu te chamo de bruxa, hein!
Os primos gargalhavam e Regina quase engasgou ao dar com Cassandra a observá-la, através do fundo do copo em que a senhora tomava água. Não conseguia distinguir se a avó sorria ou não.
Uma voz no alto falante convocou os alunos e seus pares para a valsa e Regina seguiu de braços dados com Ivan para a entrada do salão. A cada nome anunciado os dois faziam algum comentário: esse tem sobrenome de rico, a irmã do Diogo é bem bonita, esse outro idiota fazia bullying com todo mundo e nem merecia palmas, o vestido dessa menina é lindo...
— Sua amiga hein... — Ivan arriscou, entre um anúncio e outro.
— Qual delas?
— Aquela que tá na mesa do lado da nossa.
— A Sabrina?! — A garota arregalou os olhos.
— Essa.
— Peraí... — Ela fez um sinal com a mão e correu em direção ao final da fila de casais.
Evitou olhar para Guilherme e cochichou no ouvido da amiga:
— Que tal você e o meu primo Ivan?
— Ãh? — Sabrina respondeu com um sorriso interessado.
— Sim ou não?
— Sim, mas...
— Beleza.
— Peraí!
Regina já voltava para seu lugar na fila, saltitante.
— E aí?
— Aguarde e confie. — sorriu divertida.
— Regina do Prado Medeiros! — a voz do mestre de cerimônia indicou que era a vez deles caminharem para o centro do salão, sob gritos escandalosos da família.
Pararam na borda da pista de dança, ao lado de outros casais, esperando a música começar.
— Sabrina da Silva Castro!
Regina e Babí, no lado oposto da pista, assobiavam incansavelmente quando seus amigos eram convocados. Ao final da chamada, o mestre de cerimônia fez um sinal para que a música começasse:
— Uma salva de palmas aos formandos de dois mil e um!
Como qualquer jovem, Ivan era incapaz de valsar, mesmo tendo ensaiado antes. Regina achou melhor não o ensinar, ou teria que explicar quando havia adquirido tal habilidade, portanto os dois apenas se balançavam para a direita e esquerda. Depois que os fotógrafos tiraram algumas fotos, ela deu uma risadinha cheia de segundas intenções:
— Vamos mais pra perto da Sabrina, aí a gente troca de casal.
— Beleza.
Foram se movimentando aos poucos e, ao se aproximarem, Regina fez um sinal para a amiga, soltou Ivan e puxou Guilherme pelo braço:
— Gui, vem cá.
Eles se afastaram e Regina acompanhou sorrindo Ivan e Sabrina se atrapalharem e recomeçarem a dançar. Foi só então que se deu conta da mão de Guilherme em torno de sua cintura e de seu sorriso a encará-la.
— Oi!
— Oi! — Ela sorriu de volta, um pouco encabulada.
Eles emudeceram e continuaram a dançar, cruzando os olhares de tempos em tempos, ambos evitando sustentá-lo por muito tempo. De modo sutil os corpos foram se aproximando mais, as respirações foram acelerando e eles estavam conscientes que o jeito que se abraçavam não era nada inocente. Regina deslizou os dedos pela nuca do rapaz e ele subiu a mão para as costas nuas dela:
— Vamo sair daqui? — Guilherme deixou o desejo falar.
A voz do mestre de cerimônias impediu que Regina respondesse:
— Convidamos os pais e mães para a segunda valsa com os formandos!
Diante da falta de resposta de Regina, Guilherme deu uma risadinha e se retirou, caminhando para longe.
Ela sentiu o cutucão do pai e se virou para continuar a valsar, com o coração descompassado. Enquanto rodopiavam ela tentava sorrir e responder a um ou outro comentário de Cido, porém vasculhava o salão com os olhos, em busca de Guilherme. Quando a segunda valsa foi encerrada e uma música dos anos sessenta atraiu todos os convidados para a pista, Regina escapou para longe dalí.
Seu coração batia apressado porque ela sabia exatamente o que iria fazer e não queria pensar de modo racional sobre a decisão tomada.
Guilherme iria falecer no maio seguinte, ela voltaria ao futuro em três meses e aquela era a noite que ela havia se prometido viver como se não soubesse de nada disso.
O rapaz havia se livrado da gravata e do paletó e estava parado, segurando um copo de cerveja, distraído. Ela chamou a atenção dele ao lhe subtrair o copo e, sem dizer nada, puxá-lo pela mão para longe do aglomerado de mesas. Guilherme a seguiu sorrindo, sem protestar, e quando eles se aproximaram de uma parte pouco movimentada do salão, ela se virou de frente para ele, ainda sem ter escolhido o que dizer.
Tudo aconteceu em poucos segundos porque ela não poderia se dar tempo de refletir sobre o que estava cometendo.
Quando os olhares se encontraram novamente, eles avançaram um na direção do outro e seus lábios e línguas se uniram.
Uma das mãos de Guilherme se aninhou no pescoço de Regina e a outra foi apoiada em sua cintura ao mesmo tempo em que ela depositou ambas as mãos nas costas dele. A reação de seu corpo confirmava a sensação aindamais deliciosa do que o beijo no aniversário de Sabrina.
Ele separou brevemente os lábios e tentou dizer algo, ofegando:
— Rê, eu...
— Outra hora a gente conversa. — Ela o calou com mais um beijo.
Só conseguia se concentrar na intensidade dos corpos colados, no toque apertado e caloroso, no movimento das línguas e nos lábios macios de Guilherme. Não se permitia pensar em mais nada além do gosto dele.
O ritmo do beijo foi se intensificando e se tornando mais e mais lascivo. Guilherme deslizava as mãos lentamente, apalpando o corpo de Regina e ela se deixou gemer e unhar a nuca do rapaz.
Ela devia à Regina de dezessete anos aquele momento libertador em que havia agarrado um rapaz pela primeira vez. Em que suas atitudes impossíveis de controlar estavam se declarando para Guilherme.
Ele a pressionou contra uma parede, se deliciando com os beijos trocados. Se ela não queria conversar, ele também não queria.
Vários minutos depois, com as mãos querendo desabotoar a camisa dele, Regina se forçou a se acalmar e, voltando a raciocinar, afastou a boca da de Guilherme:
— Eu acho melhor a gente voltar pras mesas... — Ela tentava se convencer, enquanto alisava as costas do rapaz sem abrir os olhos.
— Por quê? — Ele sussurrou na orelha dela, fazendo-a rir.
— Porque eu quero aproveitar a minha formatura de várias formas... — ela abriu os olhos, se obrigando a encerrar o momento.
— Poxa... — ele a soltou devagar e deu um passo para trás, sorrindo — Tá bom vai.
Regina o observou e,mordendo os lábios, se afastou, rindo descaradamente com os próprios pensamentos.
— Onde você tava? — Marcela e Amanda a questionaram quando ela se reaproximou.
— Me acalmando. Eu bebi espumante e não estou acostumada, aí fiquei um pouco alegrinha. — O que não deixava de ser verdade. — E a Bina?
— Tá lá fora se pegando com seu primo.
As três riram e retornaram para a pista de dança, dessa vez descalças. De vez em quando a sensação de beijar Guilherme a fazia arrepiar, mas Regina procurava se dedicar aos momentos com os amigos e não retornou à mesa de seus familiares para evitar cruzar com ele. Ela sabia que Guilherme não era do tipo que gostava de dançar, portanto estava a salvo de seus impulsos enquanto permanecesse alí.
Em torno da meia-noite a banda parou de tocar e as pessoas começaram a ir embora da festa. Ivan e Sabrina ressurgiram sorridentes e envergonhados, vindo de lados opostos do salão.
Regina se despediu dos amigos com abraços demorados. Ao se aproximar de Guilherme, trocaram olhares cúmplices e um selinho no canto da boca, torcendo para que ninguém visse ou teriam que dar alguma explicação.
— Tchau...
— Até...
Ao chegar em casa Regina tomou um longo banho e se jogou na cama, exausta e realizada. Aquela tinha sido a melhor noite daquele ano e talvez omitiria alguns detalhes sobre ela quando contasse sua aventura para Tiago, porém, não estava nenhum pouco arrependida.
— Paixão, você tá pronta? — Guilherme falou alto na direção do segundo andar.
— Tô indo! Tô indo! — Regina saiu de seu quarto com uma bolsa estilo carteira numa mão e um par de sapatos na outra. Sentou no meio da escadaria para calçá-los e mandou um beijo no ar para o rapaz — Minha maquiagem tá igual nos dois olhos?
— Tá perfeita! Tá sempre perfeita.
Ela sorriu e continuou a descer as escadas, parando no penúltimo degrau, para ficar da altura dele. Passou os braços em torno de seu pescoço e lhe deu um selinho:
— Te amo!
— Eu também te amo.
— Então vamo que minha prima deve estar brava de estar esperando já. Seu pai não vai liberar nunca mais o carro? Toda vez é essa correria...
Regina despertou ofegando e sentindo o suor descer por sua nuca.
Tateou o criado mudo, derrubou o celular, e se inclinou para resgatá-lo do chão: eram cinco da manhã.
O coração estava disparado, a respiração anormal, e a cabeça latejava, portanto ela dificilmente conseguiria voltar a dormir.
Desceu para a cozinha ainda atordoada, tentando organizar os pensamentos já que era a primeira vez que sonhava, ou que se lembrava de um sonho, desde que havia chegado ao passado e tentava se convencer de que não era um sonho sobre um futuro alterado. Como em todo sonho, as imagens embaçadas não a permitiam julgar se era algo que acontecia dalí a poucos dias, meses ou anos... Ou apenas em sua cabeça.
Encheu um copo com água e bebeu o conteúdo observando a escadaria que partia da sala de estar para o segundo andar, cenário do que tinha acabado de viver... Ou reviver... Ou imaginar... Ou prenunciar.
Foi a primeira vez que cogitou que aquela viagem não era tão inocente assim, que talvez não estava apenas visitando o passado, que talvez estivesse mesmo fazendo alterações.
E teve medo das consequências.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro