A Cidade de Varosia
Dizer que os dois tinham se acostumado a viajar montados em um cavalo voador seria um tremendo exagero, mas pelo menos deixaram de soltar gritos escandalosos.
Na verdade, vez ou outra Liandro inclinava-se para o lado a fim de ver o que se passava no solo distante, e seu estômago ameaçava trazer-lhe de volta o que havia comido noite atrás. Quando sentia a ânsia, fechava os olhos para contê-la e buscava ter pensamentos que trouxessem calmaria, como o barulho de um riacho, ou o farfalhar de folhas. Por sua vez, Nalan parecia sentir-se mais confiante com a situação, passava a maior parte do tempo observando os campos abaixo e imaginando o quão distante já tinham percorrido. Sim, pois o raiar do dia cantava no horizonte distante, pondo fim àquela que foi a noite mais amedrontadora de sua vida.
Remortan voou em linha reta sem parar e não apresentou indícios de exaustão. Seguia cavalgando contra o vento sem fazer nenhum barulho, nem mesmo quando uma revoada de pássaros cortaram seu caminho, talvez já estivesse acostumado com isso, e nada mais nos ares lhe assustava.
Por dado momento, Nalan preocupou-se em como chegaria até o destino indicado por sua mãe, afinal não fazia ideia de onde a cidade se encontrava, tampouco poderia pedir informações a alguém, já que Remortan voava por conta própria sem direção; não uma que eles conhecessem, pelo menos. Nalan lembrou-se das vezes que idealizou Varosia, a maioria foram durante os planos de fuga. Perguntava-se se encontraria descanso lá, ou comida farta, ou até mesmo um trabalho na qual ganhasse bem. Aquém da verdade, qualquer lugar em que estivesse livre das Tirênias já lhe seria mais que satisfatório.
E que mal lhe fez lembrar-se das Tirênias, pois imaginou o quão enfurecida Alória deve ter ficado por tê-los deixado escapar. Conhecendo-a como é, não seria surpresa que promovesse um festival de execuções na vila, para vingar-se deles, ou para apenas descontar seu estresse. Isso é uma coisa que uma tirênia faria, pode ter certeza. Mas tentou não se preocupar com seus vizinhos, sua vida era mais importante agora. A sua, a de seu irmão e a de sua mãe, que por sinal lhe trazia grandes dúvidas de como faria para encontrá-los na cidade, ou sequer fugir do vilarejo. Mas para alguém que planejou invocar um cavalo mágico, escapar de lá não deveria ser grande empecilho.
Quando o dia raiou, Remortan desacelerou a cavalgada e começou a descer rumo ao solo. Fez isso lentamente, com cuidado e gentileza para que os meninos não perdessem o equilíbrio em suas costas. Inclinou-se para o lado e seguiu para baixo, perdendo altitude cada vez mais, até que seus cascos tocassem o campo relvoso.
O trote que se seguiu não durou muito, e ele parou próximo a um rio que corria entre pedras e cascalhos. Dessa forma, fez-se a primeira pausa para descansarem.
— Ah, minha bunda — Liandro se queixou desmontando do animal. Nunca cavalgou por tanto tempo. Ou voou por tanto tempo. Ou por tempo algum, e seu traseiro não estava nem um pouco acostumado com isso.
Nalan não reclamou de dores, mesmo que as estivesse sentindo. Pisar em terra lhe trouxe certo alívio, uma sensação de segurança, de impossibilidade de despencar e morrer a qualquer instante. Não que Remortan não tenha sido cuidadoso, mas não poderia confiar em um cavalo, principalmente um que era mágico.
A pelagem excêntrica chamou-lhe a atenção novamente, ela parecia mais viva agora mediante à luz do dia. Ontem pôde perceber que os tons variavam entre claro e escuro conforme se movia, e expostos à luz tornaram-se mais visíveis e belos. Remortan bufou fartamente, Nalan julgou que ele estivesse apenas limpando suas narinas, teria que ficar atento no que tal animal misterioso fazia. O corcel rebateu o pescoço para movimentar a crina e começou a pastar pelas proximidades como um cavalo normal.
Já os dois meninos, vasculharam o ambiente ao redor, e não encontraram nada além de campos verdes, rochas no solo e as correntezas de um rio.
— Para onde ele nos trouxe? — Nalan perguntou mais para si mesmo do que para o irmão.
— Deve ser só uma pausa para descanso. — Liandro não saberia dizer se acreditava realmente naquilo ou se apenas tentou consolar suas dúvidas internas. Mas parando para pensar, julgou que acreditava, sim.
— O que esse cavalo está pensando? Nos deixar aqui no meio do nada?
— Talvez aqui seja o lugar que ele mora. Ele e a manada dele.
— Não é possível que exista uma manada de cavalos voadores, todo mundo saberia se isso fosse real.
— Eu não duvido de mais nada, Nalan.
Tendo falhado em sua mera tentativa de descobrir as razões de tudo aquilo, Nalan suspirou de impaciência e pôs as mãos na cintura. Virou-se para o animal, e o viu pastando calmamente alheio a o que acontecia ao seu redor.
— Ei! — Nalan o chamou, pondo-se a caminhar em sua direção. Mas Remortan não se atentou a ele, talvez não o tivesse escutado. — Ei!!! — gritou, e desta vez o corcel arrancou uma última grama para encará-lo. — Onde você nos trouxe? — Apesar da clareza de suas palavras, Remortan não pareceu se importar com a pergunta. Manteve-se quieto em sua frente, mastigando calmamente e piscando os olhos pretos. — Ah, não quer falar? — Nalan mostrou-se muito desgostoso com tal atitude.
— Eu acho que ele não sabe falar — Liandro defendeu o equino, embora não soubesse se era verdade.
— Eu não duvido de mais nada. Não foi isso que você disse? — Nalan retorquiu, encarando o menino, e Liandro viu-se sem argumentos. — Você acha que é legal deixar as pessoas no meio do nada, cavalo? A carona terminou aqui? Precisamos saber o que está planejando.
Mas a única resposta que recebeu foi o olhar tranquilo de Remortan enquanto mastigava sua grama. Nalan ficou parado encarando-o, e viu o quanto aquilo era inútil quando o animal tornou a pastar ao redor.
Por sua vez, Liandro preferiu manter um pensamento mais otimista sobre a situação. Tinha um pouco de fome, e ouviu o ronco matinal que seu estômago fazia todos os dias quando chegava no porto, mas nada que lhe mataria caso ficasse sem comer. Pastar não era uma alternativa viável, definitivamente. Dessa forma, aproximou-se do riacho e tirou os seus sapatos de couro para refrescar os pés. Tinha um ou dois calos, e percebeu que suas unhas cresceram além de seu gosto. Os cascalhos que limitavam o rio tinham a superfície gelada, mas era agradável pisar neles. Caminhou até às águas e molhou os pés, e em seguida adentrou até cobrirem os seus joelhos. Puxou as calças velhas para cima e não se importou nem um pouco de se molhar.
Por um momento, Nalan parou de xingar Remortan mentalmente e avistou Liandro no rio. Não desejava se banhar, mas tinha sede, e por isso foi até ele.
— Parou de brigar com o cavalo? — Liandro o zombou quando ele se aproximou com as calças dobradas nas canelas.
— Não estava brigando com ele, só tentando entender o que planeja fazer com a gente.
— Ele não me parece planejar nada, se comporta como um cavalo normal.
— Mas ele entende o que a gente fala, entendeu quando você o pediu para nos tirar do vilarejo.
— É... — Fazia sentido, há de se concordar. — Que bom seria se também pudesse responder perguntas, não? — Nada tirava da mente de Nalan que Remortan podia falar, e o ignorava por prazer. Mas não parecia estar perto de desvendar isso. — Como acha que a mãe vai chegar até Varosia? — Liandro prosseguiu.
— No momento eu estou preocupado em como nós dois vamos chegar em Varosia.
— Hunf. Será que ela também está voando em outro cavalo igual a ele?
— Não sei. Talvez. Não consigo imaginar em outro jeito de ela fugir de lá.
— Mas como ela conseguiu chegar a esse animal? Isso é pura magia, como nas histórias que contavam quando éramos crianças.
— Eu prefiro não ficar tentando adivinhar tudo a partir de agora — Nalan contrapôs. —, porque nunca consigo as respostas. Ou sou ignorado ou escondem de mim.
— Não acho que o cavalo te ignorou, ele só não deve ter te entendido.
— Sei.
— E se você está chateado pela mãe não ter te contado nada sobre o plano dela, é porque você estragaria tudo, Nalan. É muito impulsivo.
— Nem sei que palavra é essa. — Talvez soubesse, mas gostava de irritar Liandro quando ele tentava lhe educar. — Mas está certo, planos não são coisas a serem espalhadas a todos que perguntam, e o da mãe salvou a nós dois.
— Só espero que também tenha salvado a ela. — Por um momento, Liandro sentiu medo em pensar no pior. Olhou de soslaio para o oeste, o caminho em que vieram, e desejou poder ver além dos montes para saber como estavam as coisas no vilarejo, se haviam piorado mediante a fúria de Alória. — Elas podem ter feito alguma coisa ruim com o pessoal, aposto que nunca imaginaram que alguém poderia fugir em um cavalo mágico voador.
— Talvez imaginaram, e foram burras de achar que nunca aconteceria. São mulheres mágicas, e o cavalo também é, vai saber se não são parentes ou algo assim.
— Como a mãe pôde saber como encontrá-lo? Não consigo entender, não havia ninguém no vilarejo ligado a esse tipo de coisa.
— Não que sabíamos. As vadias estavam procurando por andilares, alguém no vilarejo deve ser isso, e deve ter ligação com o cavalo. A mãe pode ter negociado com essa pessoa a nossa fuga.
— Negociou mais do que isso então, já que ela falou para procurarmos por uma mulher chamada Viliana. Pode ser alguém que ajuda os fugitivos das Tirênias, alguém que arruma um trabalho, casa e essas coisas.
— Espero que não estejamos sendo otimistas demais — disse Nalan abaixando o olhar. E pouco depois soltou um riso abafado, o que ia contra sua constante expressão carrancuda.
— Está rindo de quê?
— Quando você implorou para o cavalo nos tirar de lá, pareceu uma criança de dez anos chorando.
— Ora, foi o que deu para fazer. Melhor aquilo do que sair correndo campo a fora, elas iriam nos pegar.
— É, iriam mesmo — concordou, desfazendo-se dos risos. — Obrigado por se humilhar, Liandro. Salvou a nós dois.
— Não há de quê, e espero que você aprenda a agradecer de forma mais gentil.
Se Nalan faria isso ou não, era incerto, mas o fato é que Liandro se alegrava de continuar tendo-o por perto, pior do que morrer nas mãos das Tirênias, seria escapar sozinho sem saber para onde ir. Não que os dois juntos pudessem fazer alguma coisa, já que estavam totalmente dependentes da vontade de Remortan.
E por falar no corcel, este veio até eles calmamente subindo a colina coberta de grama. O barulho dos cascos sobre a terra chegaram aos ouvidos dos meninos que descansavam sentados em uma rocha, ambos olhando para o nada e pensando em qualquer coisa. Liandro cutucou o irmão para que ele se atentasse, e assim os dois se colocaram de pé.
Remortan fez a mesma coisa que na noite anterior, dobrou as patas dianteiras e abaixou-se para que eles o montassem, sabia que não conseguiriam subir normalmente sem uma cela, e eles também não eram muito altos.
Os dois se entreolharam, receosos e indecisos. Mas quem em sã consciência escolheria ficar ali? Montaram, e assim o cavalo iniciou o trote colina abaixo, para em seguida voar.
Outra tarde se passou naquelas terras, e os meninos começaram a apresentar sinais de exaustão, ou de monotonia. Embora a experiência de viajar pelos ares estivesse sendo uma coisa extraordinária, ambos não poderiam negar as fraquezas de seus corpos, estes que passaram a serem atormentados pela fome e por dores musculares.
A fome era rotineira, mas a constante má postura trouxe sensações desconfortáveis para eles, principalmente nas costas. Nalan girou seu pescoço várias vezes ao longo da percurso, na tentativa de aliviar a dor, e assim também fez Liandro, embora este pudesse se inclinar sobre o torso do corcel, só desejava que ele não tivesse crinas tão longas para que batessem em seu rosto.
Foi-se o tempo em que eles tentavam registrar os locais que percorriam, já era impossível saber os caminhos que Remortan tomou, e cada vez mais tinham a certeza de que deixaram os limites das Terras Portuárias. Ou seja, muito longe de seu lar, ou das regiões que seriam capazes de peregrinar. Sobrevoaram por campos e fazendas, viram moinhos de vento, propriedades plantadas e riachos cortando as planícies. Viram punhados de casas, e alegraram-se em saber que ainda existiam vilarejos semelhantes ao seu por aquelas redondezas.
O rancor por Remortan crescia dentro de Nalan, pois ele desejava controlar o animal para fazê-lo parar, ou ao menos lhe dizer para onde os levava. Mas sabia que espernear contra o vento que batia em seu rosto seria inútil, e por isso contentou-se em aguardar o seu destino. Destino esse que revelou-se no meio daquela tarde, pois eles pareciam ter chegado no final da viagem, se os olhos de Liandro não o estivessem enganando. Sim, pois o menino os arregalou quando viu incontáveis casas no meio de várias construções desconhecidas e rodeadas por uma enorme muralha de pedra.
Liandro cutucou Nalan atrás de si, este poderia estar acordando de um cochilo, a considerar os resmungos que deu. O menino estreitou os olhos no horizonte, e também se alegrou ao constatar o que era. Uma cidade, e só poderia ser a cidade de Varosia.
Remortan seguiu a cavalgada pelo ar, mas foi perdendo altitude quando adentrou os limites aéreos daquelas terras. Dificilmente seria visto por alguém, e mesmo que fosse, não lhe seria problema. Os irmãos passaram a redobrar a atenção agora, buscando conhecer cada detalhe que preenchia as redondezas. E quanta coisa havia para ver, desde o início do rio até o topo da torre central. Não seria possível ter certeza naquele momento, mas a julgar pela impressão, Varosia parecia ter um padrão nos elementos que a constituíam, sendo estes as casas e construções erguidas em blocos cinzentos com telhados vermelhos, cor também predominante na extensa muralha que rodeava a cidade, esta três vezes maior do que o muro que os habitantes de Erbanel levantaram no vilarejo. Mas somente as casinhas possuíam paredes cinzas, as demais construções esbeltas e chamativas foram erguidas em blocos vermelhos, semelhante a um castanho que outrora fora bronze, decerto estes pertenciam a classes superiores da sociedade.
Também notava-se grandes estábulos, celeiros e torres espalhados pelos cantos da cidade. E no fim, elevado sobre um monte, havia um aglomerado de templos, torres e um palácio, todos esses com telhados verde-esmeralda que conversavam com os blocos vermelhos embelezados pelo sol do entardecer.
Nalan inclinou-se para avistar o caminho abaixo, e percebeu que sobrevoavam uma região afastada da cidade, do outro lado do rio. A julgar pela quantidade de barcos e navios atracados nos cais, concluiu que aquele era o setor comercial da cidade, limitado por um punhado de árvores no oeste, talvez para manterem ocultas as estradas que abriam caminho para os carroceiros e viajantes. Não é tão grande como o porto de Virturia, Nalan julgou, e poderia estar certo, tendo em vista que o grande porto era aberto para o infinito mar e recebia navios das mais desconhecidas regiões, enquanto a cidade localizava-se rodeada por um rio apenas, que seguia o trajeto para além do que seus olhos podiam alcançar.
Remortan continuou o trajeto até terminar de atravessar o rio, onde desacelerou o trote pelos ares e desceu lentamente. Os meninos puderam ver seus reflexos sobre a água corrente, e assim souberam que poderiam passar qualquer coisa na cidade, menos sede. Remortan se preparou e tocou o solo, continuando a cavalgada pelo chão coberto de terra e pedregulhos agora, até que parou e bufou, anunciando o fim da jornada.
Nalan foi o primeiro a descer, e espreguiçou-se fartamente, fez isso em várias posições na tentativa de esticar e endireitar os seus ossos. Liandro o seguiu, e se queixou de dores na coluna. Pareciam dois velhos centenários.
— Mais um dia e eu me jogava lá de cima — Nalan levou sua mão à nuca e rodopiou a cabeça para todos os lados produzindo estalos.
Remortan se virou para eles, e os observou em suas queixas.
— Não é nada demais, amigo cavalo — Liandro contornou a declaração infeliz de seu irmão. — Só não estávamos acostumados a voar por tanto tempo.
— A voar por tempo algum — Nalan corrigiu.
E como da vez anterior, Remortan não emitiu nenhum som em resposta, tampouco palavras. Assumiu que seu trabalho havia sido cumprido, e por isso decidiu tomar seu caminho. Ele desviou o olhar dos meninos e começou a trotar para a margem do rio, passando por eles silenciosamente, que o acompanharam estupefatos.
— Ei, você vai embora? — Liandro o perguntou, mas ele seguiu andando como um cavalo qualquer. E quando chegou perto da margem, iniciou a corrida para saltar e voar, seguindo o trote agora pelo céu.
Liandro e seu irmão ficaram parados por um momento, vendo-o se afastar pelos ares. Para o desgosto do menino, Remortan realmente escolheu ignorar todas as suas perguntas, e agora se foi, sabendo Vilmor quando eles o veriam de volta.
— Tá triste por quê? Queria que ele se despedisse? Pensei que você já tivesse se convencido de que ele não fala.
Apesar de sua certeza, Liandro gostaria que estivesse errado, e que pudesse conversar com aquele animal, e saber quem era, e porquê os ajudou.
— O que importa é que ele nos trouxe aqui — justificou, pondo um fim naquele assunto.
— Isso se aqui for mesmo onde ele deveria ter nos trazido.
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