Capítulo Único - O turno de guarda
Os três guerreiros sentavam-se entediados naquela elevação no fim de tarde. Estavam no final de um prolongado turno de guarda do acampamento de treino dos jovens guerreiros da aldeia, oculto logo atrás da elevação, na entrada de um bosque. As barrigas roncavam, os olhos piscavam, e nem a presença do quarto amigo de infância, o bardo Rincewald o Sombra, conseguia impedi-los de desejar ardentemente que o sol se pusesse logo.
Rincewald não participava dos treinamentos, justamente porque escolhera "carreira" de bardo, mas sempre que seus amigos estavam de guarda ele aparecia para ajudá-los a vencer o tédio de um turno de doze horas sem fazer nada além de vigiar. Tinha chegado quatro horas atrás, tocado para eles, cantado com eles, feito piadas, puxado conversa sobre comida, música, armas, batalhas, profundidades da vida... mas os assuntos haviam acabado, e o turno deles não.
O bardo observou Tristan dar um bocejo capaz de engolir o sol, enquanto Beowulf aparentava estar caindo devagarzinho para a frente, e Angus, para o lado.
— SENTIDO! – ele gritou, sobressaltando os três. Sabia que, se um dos guerreiros adultos viesse supervisionar e encontrasse os rapazes dormindo, eles estariam ferrados.
— Valeu, Sombra – boce-disse Angus, deitando de costas um instante. Imediatamente, começou a roncar. Tristan acordou-o com um soco no ombro.
— Foooome... – gemeu Beowulf, do outro lado do Gaulês.
Rincewald continuou andando de um lado para o outro na elevação, tentando achar algo para distrair os amigos. À esquerda, ouviu umas risadas remotas. Foi espiar do que se tratava, e depois ele mesmo deu uma risadinha.
Os três se levantaram preguiçosamente e se arrastaram para perto do bardo. Mas a vista os fez acordar bruscamente. As moças da aldeia estavam brincando na beira de um rio um pouco distante. Algumas estavam tomando banho no rio. Não que desse para ver muita coisa a essa distância, mas isso não os impediu de tentar, apertando os olhos, ficando na pontinha dos pés e brigando aos tapas pelo melhor lugar para apreciar a vista.
Depois de alguns minutos, eles se convenceram de que as árvores não deixariam ver mais que as costas, colos e pedaços de perna que tinham avistado até então, e voltaram rindo para o seu posto. Rincewald veio atrás, orgulhoso por tê-los despertado. E, para mantê-los assim, logo jogou uma pergunta:
— Então, quem vocês acham que é a mais bonita?
— Ingra – responderam Angus e Beowulf em uníssono, de imediato. Depois franziram a cara um para o outro.
— É, Ingra realmente tem... – Tristan concordou, divertido, gesticulando amplamente em volta do próprio peito para completar sua fala.
Rincewald riu.
— Ok, mas por mais amigos que vocês sejam, isso não vão poder dividir – brincou. – Só um dos três vai poder casar com ela.
— Eu, é claro – disse Angus, despreocupado. Beowulf o fulminou com o olhar.
— E por que não eu? – ele desafiou.
— Não! Você é primo dela – Angus descartou.
— E daí? Todo mundo é meio parente nessa aldeia.
— Mas acredite, vou ser eu – Angus assegurou, deitando com a cabeça sobre os braços cruzados.
— Calma, rapazes, há outras opções – lembrou o Sombra, lançando-se no chão também e dedilhando o alaúde, distraído.
—A Brunhild Beidablick é bem bonita também – lembrou Tristan, abraçando um joelho.
— É, mas ela tá prometida pro Gorki Hofvarpnir desde... sempre – Beowulf recordou. Os outros acenaram em concordância. – E a amiga bonitinha dela acabou de casar com o Aerick Towarish, também.
— Você podia casar com a Frida, Tristan – sugeriu Angus, apoiando-se no cotovelo para olhar o amigo. – Ingra me disse que ela é gamadinha em você.
— É... – Tristan comentou, desinteressado. Levantou-se, espreguiçou-se, e fez uma pose. – Todas são gamadas no papai aqui – brincou. Beowulf atingiu-o atrás do joelho com o cabo do machado, derrubando-o. – Ouch!
—Sossega o facho, "papai" – rosnou o urso, irônico.
—O Tristan vai pegar é uma das filhas do chefe – comentou Rincewald, preguiçosamente. – Todo dia marca território lá.
— 'Tá me achando com cara de cachorro? – Tristan respondeu. Todos riram, mas também todos concordavam que Tristan passava um tempo anormal na casa do chefe ultimamente.
— Mas sério, cá entre nós, qual das três é o seu alvo? – perguntou Angus, atento apesar dos olhos no horizonte.
Tristan deu de ombros com expressão impassível no rosto.
— Tanto faz, as três são igualmente... atraentes.
— Igualmente? – Beowulf repetiu, olhando para ele incrédulo. – Mas de jeito nenhum! A Kyrah vence as outras duas de longe, ela é um pedaço de mau caminho – ele opinou, calorosamente, com a voz rouca e o rosto vermelho. Os outros ergueram sobrancelhas espantadas para ele; o Urso Raivoso raramente se empolgava tanto com alguma coisa.
— Vou contar isso para a Ingra, e suas chances com ela já eram – provocou Angus.
— Se eu pudesse ter a Kyrah, deixava você ficar com a minha prima com o maior prazer – confessou Beowulf. – Mas ela é saque demais para a minha carrocinha – ele completou, triste.
— Ainda bem que você sabe – Rincewald disse, em vez de consolar. O Urso enterrou a cara nos braços.
— A Una também não é nada má, só meio baixinha – Angus comentou casualmente, traçando na sua frente o contorno de uma nuvem contra o sol poente. – Já a Berna tem meio que cara de peixe morto.
— Não tem, não! – Tristan protestou, talvez mais vivamente do que pretendia. Suas bochechas naturalmente coradas avermelharam um pouco mais ao sentir o olhar atento dos amigos sobre si. – Quero dizer... ela é legal quando você chega a conhecê-la, e...
— Oh-oh, pequeno Tristan quer ser chefe – sibilou Beowulf, malicioso. Os outros riram, e Tristan ergueu uma sobrancelha, aborrecido.
— Não sei do que você está falando – ele resmungou. – Visito as filhas do chefe sem nenhuma intenção, e provavelmente vou sequestrar minha noiva em alguma invasão, que nem meu pai fez com minha mãe – ele disse, decidido.
— Pobres dos seus filhos – Angus, o Huno, comentou com um suspiro. Experiência própria: filhos de estrangeiras sofriam bastante preconceito ali. Tristan deu de ombros. Eles ficaram em silêncio um momento, observando o céu passar de vermelho a roxo devagar.
— Mas se quer saber – Rincewald falou, quebrando o silêncio – os rumores na taba dos bardos são de que você teria uma chance, pelo menos com a garota, já que o loiroso foi embora.
"Loiroso" era Wotan Von Skidbladnir, não muito amado pelos quatro amigos, já que costumava se juntar aos outros para zombar deles. Berna Von Brandeburg, por outro lado, havia gostado muito dele, antes de sua partida com a família em um drakkar.
Tristan brincou com o punho da espada.
—Não sou idiota – ele falou, após um momento pensativo. – O pai dela me mataria se eu apenas pensasse em pedir a mão dela.
— Você pode apostar que sim – veio uma voz grave atrás deles que fez os quatro se sobressaltarem.
Não precisavam virar para saber que quem estava ali era o chefe. Até o bardo fez pose militar. A nova turma de garotos chegou para rendê-los, e eles aproveitaram para se esgueirar de volta para o acampamento o mais quietamente que conseguiram.
Tristan, na rabeira de todos, não acreditava no próprio azar. Já tinham sido flagrados antes em situações não muito felizes – inclusive dormindo e babando – mas o próprio chefe quase nunca vinha supervisionar.
Ele pensou que tinha escapado livre após atingir a orla da floresta, mas uma mão de tenaz no ombro dele o fez grunhir baixinho.
— Trüppendorf - rosnou o chefe, forçando o adolescente a olhar para ele.
— Senhor - Tristan disse, com a voz rouca.
— Eu deixo você entrar na minha casa porque elas imploram, choram, berram e sapateiam. Não significa que eu goste – ele fez uma pausa, para o rapaz assimilar bem essa parte, e a segunda ter mais efeito. – Mas isso... Nunca, de jeito nenhum, nem pensar, nem em mil anos. Entendido?
– Entendido – o rapaz sussurrou por entre dentes, sentindo o estômago afundar um pouquinho. Tentou dar um passo, mas, para sua surpresa, o chefe ainda lhe retinha o ombro. Heric Von Brandeburg suspirou e adicionou.
— Se, no entanto, por uma brincadeira dos céus, um acaso que eu daria a vida para evitar... – Heric nem teve coragem de terminar a frase, tamanha repugnância lhe causava a ideia de uma filha sua com aquele pivete atrevido. – É bom que você seja o melhor marido na face da Terra. Agora dê o fora e esqueça que eu sequer cogitei a possibilidade.
Tristan correu para junto de seus amigos, tentando desfazer o sorriso que estava pregado em seu rosto.
Ao mesmo tempo em que o sol se punha do lado de fora, dentro do Gaulês a esperança acabara de amanhecer.
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