6
Quando os olhos de Charlie se depararam com a mulher trajada em um vestido rosa berrante, com uma bolsa revestida de pele de crocodilo e um óculos em formato de coração tampando seus olhos (além da sobrancelha simétrica), lembranças vieram à tona.
Lembrava-se de sua chegada na pousada, quando ele era apenas um psicólogo iniciante tentando recomeçar a vida em Moscou. Tia Mosketa foi a primeira pessoa a estender a mão para ajudá-lo, lhe dando um lar e apoio.
— Ora seu viadão grandão e sem vergonha — tirou a bolsa do ombro e usou ela como arma para atingir as costas largas de Leonid. Ele permaneceu parado com ambas as mãos no bolso observando a raiva da mulher, sem reação. — Não pensou nem por um minuto sequer me avisar sobre o paradeiro de Charlie, é? Consegue imaginar como ficou meu coração? Esse menino é de ouro!
Charlie não se conteve em rir daquela situação.
— Quero saber tudinho o que aconteceu — após terminar a sessão de agressão, a tia Mosketa se aproximou de Charlie e o abraçou. — Eu estava tão preocupada com você, meu amor. O que esteve fazendo nesses dias? Porque está tão vermelho, você está comendo direito?
Charlie engoliu em seco. Não havia percebido que estava com as bochechas tão coradas. Quando a tia Mosketa o abraçou, seu corpo balançou levemente para trás. Sentiu o vibrador mover-se lentamente em seu interior. Conteve um gemido para não tornar a situação mais constrangedora. Com o queixo apoiado no ombro da mulher, Charlie pôde perceber Leonid sorrindo maliciosamente logo atrás deles.
''Filho da puta'', pensou Charlie.
— Estou bem, não se preocupe — Charlie se esforçou para dar o sorriso mais convincente possível. — Os últimos dias foram confusos.
— Fiquei sabendo que seu garanhão é um mafioso, o que não me surpreende — tia Mosketa se afastou e cruzou os braços, olhando para Charlie como uma mãe olhava para o filho após ele fazer uma bagunça indesejada. — Já tive um caso com um mafioso, querido. Todos pauzudos, o que é uma benção. Mas também são muito possessivos.
— C-omo sabe que Leonid é um... — Charlie indagou, quase sem palavras.
— Não sou cega, querido — ela revirou os olhos. — Além disso, um bom chá sempre tira as respostas de homens.
Tia mosketa olhou para o mordomo. Fiódor arregalou os olhos e voltou sua atenção para a cozinha.
— Para onde vamos? Estou faminta, então se apresse antes que minha pressão abaixe, já estou velha.
O trajeto até o carro no estacionamento subterrâneo do prédio acabou sendo a oportunidade perfeita para Charlie e tia Mosketa contarem as novidades um para o outro, enquanto Leonid seguia em frente deles, em silêncio.
Estava óbvio para Charlie o caso entre ela e Fiódor, o que era uma grande surpresa para ele, visto que o mordomo era tão classudo e fechado, enquanto a tia Mosketa era totalmente o oposto.
— Você preferiu o mafioso chefe, assim como toda baranga protagonista daqueles romances com a capa de um homem sarado e tatuado — ela falou no elevador. — Eu escolhi o mais simples: o mordomo do mafioso.
— Eu não escolhi nada — Charlie revirou os olhos.
— Sou a prova viva da sua escolha, querido — a mulher deu tapinhas nos ombros de Charlie como consolação. — Quando só você e essa muralha humana ficaram sozinhos em seu apartamento, só pude escutar os gemidos por toda parte.
Charlie corou tanto que teve que tampar o rosto com as palmas da mão para tentar conter a forte onda de vergonha que estava sentindo.
Leonid sorriu, satisfeito.
O plano original era um restaurante chique distante da cidade para não levantarem suspeitas das autoridades e dos Makarov. O rumo do passeio mudou quando tia Mosketa teve a ideia de ir até uma feira movimentada no centro da cidade.
Sentado no banco da frente, Charlie cruzou os braços, confuso.
— Porque tanto segredo? Pensei que você soubesse se defender caso a situação se complicasse.
— Não me preocupo comigo — com as mãos no volante, Leonid lançou a Charlie um olhar.
— Agora você é procurado pela polícia, Charlie — tia Mosketa revelou do banco de trás. — Te culparam por vários crimes horríveis da família Petrov, incluindo a morte desse ganharão aí.
— Como pude ter matado ele se essa praga está sentada bem do meu lado? — Charlie arqueou as sobrancelhas.
— Alexandre Makarov vai pagar — Leonid falou sombriamente.
A Ferrari 296 GTS preta de Leonid percorria a avenida principal de Moscou em alta velocidade, ultrapassando com facilidade os carros simples em volta. Não demoraram para chegar na praça onde estava acontecendo o feirão anual de Moscou. Barraquinhas de comidas e bugigangas eram visíveis para todos os lados. Os vendedores gritavam, animados, atraindo o máximo de público possível.
Leonid colocou um gorro e um óculos escuro em Charlie para que ninguém pudesse reconhecê-lo. Charlie achou um grande exagero, mas aceitou o cuidado de Leonid com relutância. Ao descerem do carro, o psicólogo notou olhares curiosos. O carro refinado de Leonid realmente chamava a atenção.
Tia Mosketa cutucou o braço de Charlie e sussurrou em seu ouvido:
— Aproveita a carteira cheia do seu homem e não saia daqui de mãos vazias — piscou para o rosto incrédulo de Charlie.
Caminharam pelo quarteirão de barracas de vendas no centro movimentado da praça. Os galhos volumosos das árvores projetavam sombra na passarela, protegendo as milhares de cabeças em movimento do sol.
Enquanto andavam, Charlie notou o semblante focado de Leonid. O homem estava concentrado em vários lugares ao mesmo tempo, sempre em posição de alerta. Sua presença naquele tipo de evento não parecia fazer sentido. Alto, terno elegante e feição séria. Leonid era como um lobo entre um rebanho de ovelhas.
— Ai meu Deus, que lingeries bonitas! — Tia Mosketa exclamou, se aproximando de uma barraca repleta de utensílios femininos pendurados em cabides organizados por uma vendedora sorridente e jovem.
Charlie seguiu reto, sendo atraído para uma barraca onde vendia livros usados separados por gêneros e data. Observou a sessão de ficção científica, terror e romance. A nostalgia fez seu coração palpitar quando leu a palavra psicologia posta em uma placa acima de uma pilha de livros.
Pegou um dos livros sem saber qual havia escolhido. Freud e o inconsciente era o selecionado da vez. Lembrava-se perfeitamente de ter lido aquele livro durante a faculdade, quando ainda era jovem e sonhador. Passou as páginas empoeiradas como se pudesse degustar de cada palavra contida nas páginas.
— No inconsciente, nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido — Leonid recitou repentinamente.
— Não me diga que você já leu Sigmund Freud — Charlie fechou o livro e virou-se para o mafioso.
— Virou um hábito quando soube da sua perda de memória.
Levando em conta tudo o que aprendeu na faculdade, Charlie pôde ter esquecido sobre seu possível relacionamento com Leonid, porém seu corpo, e seu inconsciente, lembrava-se perfeitamente através de cada toque e fala. Charlie odiava admitir esse fato.
''Maldito seja Freud'', pensou.
Às vezes se pegava olhando para Leonid e perguntando como poderia ter se apaixonado por alguém como ele. Tantos homens no mundo, porque justamente um assassino perigoso metido em uma guerra entre máfias?
Olhou para o vendedor da pequena biblioteca sentado diante de uma televisão acima de uma mesa improvisada com livros. A jornalista falava com seriedade no olhar enquanto fotos de Charlie Evans eram transmitidas com os dizeres ''procurado pelas autoridades''.
Instintivamente, Charlie acomodou a touca na cabeça, temendo que alguém naquele lugar o reconhecesse. Seu coração estava palpitando anormalmente. De todas as coisas loucas que já pensou em fazer na vida, ser procurado pela polícia não era uma delas. Sentia-se fora da curva, como se todos em volta fossem inocentes e ele o único com sangue nas mãos.
— Leonid, eu quero sair daqui — cutucou o braço dele discretamente.
Leonid não discordou. Tirou o livro da mão de Charlie e o devolveu à prateleira, agarrou a mão do psicólogo e o guiou pela multidão que havia se formado.
Tia Mosketa veio ao encontro deles segurando sacolas com lingeries para situações extremamente íntimas.
— Fiódor vai ter uma surpresinha — tirou da sacola uma algema cor-de-rosa.
— Precisamos ir — Leonid anunciou.
Por um breve momento, Leonid e tia Mosketa se encararam fixamente, como se compartilhassem de um segredo do qual Charlie jamais poderia entender. Ele arqueou as sobrancelhas, confuso.
— Cara á direita todo de preto? — Ela indagou.
— Exato — Leonid confirmou.
Charlie virou-se na direção comentada pelos dois e se deparou com um homem alto, trajado em um casaco escuro e calça cargo do exército, usando um óculos escuro, enquanto fingia estar em uma ligação com o celular grudado na orelha. Charlie sabia que aquele estranho estava o encarando fixamente. Apenas a multidão os separavam.
A manga do braço direito do estranho estava parcialmente levantada, deixando a vista a tatuagem de um anjo ceifador. Exatamente a mesma tatuagem que Leonid tinha no peitoral. De alguma forma, Charlie sabia que o perigo estava chegando.
— Meu querido — as mãos de tia Mosketa envolveram os ombros de Charlie —, foi ótimo te rever, mas agora temos que nos separar. Vê se não me esqueça e passe na pousada quando estiver livre de toda essa merda, não quero foragidos no meu comércio, ouviu?
— O que está acontecendo?!
— Não se preocupa com a velhona aqui — ela tirou da bolsa uma pistola. — Estava louca para usar essa belezinha mais uma vez. Sabe qual foi a última vez que a usei? No meu terceiro ex-marido norte-americano que batia punheta pensando no Donald Trump, опальный американец (americano desgraçado).
Ninguém notou uma senhora de meia-idade levantar uma pistola para cima e dar um disparo, tudo o que fizeram foi correr desesperadamente pensando se tratar de um ataque terrorista. Leonid agarrou o braço de Charlie e mergulhou no mar de pessoas assustadas. Charlie olhou para trás; o homem estranho não estava mais lá.
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