II
Durante as doze horas de inconsciência, Charlie teve breves momentos despertos. Quando abriu os olhos pela primeira vez desde que fora raptado, sua visão estava desfocada, tudo o que conseguia enxergar eram formas distintas do que parecia ser um quarto. Uma forma humana estava sentada na beirada da cama. Sem boca, olhos, nariz. Nenhuma expressão. Apenas um vazio. Charlie revirou os olhos e desmaiou mais uma vez.
Despertou, assustado. Tudo não passara de um sonho. Nada era real. Sua cabeça criou uma situação muito doida, não é?
Ele queria acreditar na própria mentira, no entanto, os fatos estavam dispostos em sua volta. Charlie não estava deitado na cama de seu quarto na pensão da tia Mosketa. Ao contrário dos cômodos humildes da pensão, aquele quarto era revestido da mais resistente e bela madeira, das paredes ao teto, enquanto o chão era perfeitamente encerado; quase se podia enxergar o próprio reflexo através daquela madeira brilhosa.
A cama era espaçosa e confortável. Um pequeno lustre transparente estava à mostra pendurado no teto. Se estivesse em diferentes circunstâncias, Charlie se sentiria como um príncipe.
Levantou-se da cama, ainda um pouco tonto, e caminhou até estar diante da janela, onde pôde enxergar um jardim. Muros revestidos de folhas formavam um labirinto complexo demais para a mente de Charlie raciocinar. A julgar pela beleza e o nível de detalhes, aquele lugar não era uma casa comum, era uma mansão.
A maçaneta da porta do quarto girou — maçaneta revestida com ouro — e um idoso de aparentemente setenta anos ostentando uma boa aparência entrou no quarto. Segurava com as mãos enluvadas um prato com duas panquecas e um ovo cozido.
— Bom dia, senhor Evans — sorriu gentilmente. — Permita-me apresentar: me chamo Fiódor e sou mordomo da residência Makarov.
Makarov. O sobrenome que Ivan dissera durante a consulta.
— Onde estou? — O mordomo deixou o prato em cima da cômoda próxima da cama.
— Na residência Makarov, é claro. O senhor Makarov ordenou que fosse preparado o café da manhã especialmente para você.
— Especialmente para mim?
Será que tem veneno nessa merda? Pensou Charlie, evitando se aproximar do prato como se pudesse pegar uma doença contagiosa.
— Por favor — continuou. — Não tenho ligações com nada disso.
— Creio que não posso ajudá-lo com mais informações, senhor Evans. Este assunto é restrito ao meu chefe. Em breve ele terá tempo para você — o mordomo sorriu, irritando profundamente Charlie.
— Chega de tanta formalidade, eu quero sair daqui! — Charlie ultrapassou o mordomo e saiu do quarto.
O corredor da mansão Makarov era equivalente a quase dois apartamentos e meio. Um enorme espaço repleto de portas e abajures chiques cravados nas paredes brancas e bem polidas. Cada lado da parede contava com quadros renascentistas muito antigos — e provavelmente caríssimos.
Talvez eu poderia roubar um desses quadros para pagar meus boletos como vingança por terem me raptado. Charlie sorriu com a possibilidade. Mesmo que tivesse coragem, jamais cometeria tal ato. Roubar não fazia parte de sua personalidade; o simples pensar o enjoava. Ele odiava políticos corruptos e mafiosos. Espera aí, não são a mesma coisa?
Andou às pressas pelo corredor até finalmente encontrar a bela escadaria encaracolada que dava acesso ao primeiro andar. Desceu cada degrau como se sua vida dependesse disso. O mordomo estava logo atrás de Charlie, tentando acompanhá-lo antes que ele cometesse algum erro.
O primeiro andar da casa elevava o nível de elegância e riqueza. A escadaria estava posicionada no centro do hall de entrada da mansão. Um longo tapete vermelho que terminava em uma porta vigiada por dois seguranças chamou a atenção de Charlie. Fechou os punhos e caminhou até a porta. Os seguranças reagiram ao mesmo tempo, no entanto Charlie passou entre eles como um raio e chutou a porta.
O estrondo da porta se abrindo chamou a atenção do homem misterioso, mas não pareceu impressioná-lo. Ele apenas observou Charlie entrar em seu escritório com muita fúria. A luz natural vinda das janelas iluminava o ambiente repleto de prateleiras de livros. A lareira acesa atrás do mafioso afastava todo o frio do inverno russo.
— Eu quero ir embora, agora! — Charlie gritou. Suas bochechas estavam vermelhas.
O homem continuou diante da escrivaninha, sentado confortavelmente em sua poltrona de couro preta, maior do que aquela que Charlie tinha em seu consultório.
— Poxa, antes do café da manhã? — Respondeu o homem.
— Não está me escutando? Eu quero agora!
— Deseja mais alguma coisa, alteza? — Um sorriso debochado se formou entre os lábios do homem.
Charlie bufou de raiva e partiu para cima do homem, se posicionando de quatro acima da escrivaninha ao mesmo tempo que pegou uma das várias canetas espalhadas na mesa e a usou como arma para ameaçá-lo. A ponta fina da caneta estava a centímetros de distância da pele branca e tatuada do pescoço do homem.
— Não estou de brincadeira, seu babaca. Não me intimido fácil. É bom que você saiba que não tenho nada haver com Ivan e toda essa história, então é melhor você me levar de volta para casa ou vou enfiar essa caneta bem fundo na sua garganta — Charlie era menor e mais fraco comparado a montanha de músculos na qual ele estava tentando intimidar.
Mesmo próximo da morte, o sorriso do homem não se desfez. Até parecia que ele estava achando graça da situação.
— Vendo você nesta posição em cima da minha mesa de trabalho, — Charlie tentou adivinhar as próximas palavras e chutou que seriam ''eu te mataria'' ou ''te torturaria'', típicas de um mafioso, pelo menos daqueles que ele conhecera em filmes — eu poderia meter bem fundo no seu cuzinho para acabar com sua marra. Com todo respeito, é claro.
Charlie corou.
— Com todo respeito é uma ova! — Se afastou do homem, enojado. — Seu pervertido, maligno, nojento! Me sequestrou e age como se fossemos amigos próximos. Você é louco?
— Louco? — Olhava para Charlie com uma desaprovação encenada. Ainda sorria, como se Charlie fosse uma atração de circo. — Isto não é a conduta de um psicólogo.
— Senhor Makarov, perdoe-me pelo inconveniente. Tentei mantê-lo em seus aposentos porém ele resistiu fortemente — o mordomo entrou no escritório, ofegante. Os seguranças estavam logo atrás, sem reação.
— Sem problemas, Fiódor. Leve-o para tomar um banho e trocar de roupa. Iremos almoçar mais tarde. — Charlie se perguntava como ele poderia se portar tão elegantemente depois de soltar a frase mais baixa possível.
— Almoçar? PORQUE NINGUÉM AQUI TÁ ME ESCUTANDO?! — Berrou. Jogou a caneta que pegara da mesa no rosto do homem. Como esperado, ele continuou impassível. — EU. QUERO. IR. EMBORA. PORRA!
— Você irá tomar um banho, depois iremos almoçar e esclarecer a situação — falou, como se estivesse listando um roteiro que Charlie devesse seguir à risca. Isto o irritou profundamente. Como alguém poderia ser tão irritante? Aquele brutamontes não parecia nada como um mafioso, na opinião de Charlie; um mafioso teria o matado na primeira oportunidade, ou o torturado até ele revelar tudo. Paquerar de forma esquisita era novidade. Os tempos estavam tão mudados assim?
Fiódor agarrou o braço direito de Charlie gentilmente e o retirou do escritório.
— NÃO!
Charlie se desvencilhou do mordomo e correu desesperadamente até a porta do hall de entrada da mansão que dava acesso à saída. Quando empurrou a porta, se deparou com uma extensa trilha de pedregulhos que atravessava um canteiro bem aparado com alguns arbustos e postes de jardim. Mais à frente, além dos muros, havia uma floresta fechada.
Correu pela trilha como uma presa fugindo do caçador. Dois enormes portões de aspecto gótico impediam Charlie de alcançar a floresta. Juntou forças para avançar no portão e escalá-lo como um macaco desesperado. Ao chegar no topo, pulou para o outro lado. O lado da liberdade.
Percebeu que havia corrido por quilômetros quando olhou para cima e notou as enormes árvores tapando o céu nublado de inverno. Mesmo estando de manhã, a floresta era estranhamente escura e sem vida. Por conta das folhagens extensas, a neve não conseguia atingir o chão.
— Merda... Acho que estou seguro — parou para recuperar o fôlego atrás de um tronco grosso.
Ouviu um arbusto próximo se mexer.
Com toda certeza não é o gostoso musculoso do Tarzan, eu não teria tanta sorte. Pensou, em desespero.
Charlie não poderia estar mais correto. Não era Tarzan, mas algo muito mais selvagem.
Emergindo das folhas congeladas do arbusto, um urso olhava fixamente para Charlie. De sua boca repleta de dentes afiados e mortais, escorria baba. O bicho estava faminto, e por pura sorte, havia acabado de se deparar com seu café da manhã.
Charlie estava imóvel. Seu cérebro tentava recapitular desesperadamente o artigo sobre como lidar com ursos. Suor frio escorria de sua testa. O urso parecia sentir seu medo, pois se aproximava cada vez mais, preparado para abocanhar sua presa.
Ursos pretos, grite para assustá-lo. Ursos brancos, morra. Mas e quanto aos ursos marrons? Chore? Seu coração batia como um tambor frenético enquanto seus pensamentos se transformavam em um emaranhado de possibilidades, no entanto, a única possibilidade possível era sua morte iminente.
Em um último ato desesperado, Charlie tentou correr, porém o urso não era como os seguranças lerdos da mansão. O animal mordeu a perna direita de Charlie, fazendo-o cair na grama enquanto gritava de dor. Visto que sua presa estava abatida, o urso se posicionou acima de Charlie, quase o sufocando com seus pêlos marrons e sujos, e preparou-se para abocanhar o pescoço do psicólogo em desespero. Gotas de sangue atingiam o rosto de Charlie. Vinham da boca do urso.
Meu sangue, pensou Charlie.
Fechou os olhos e esperou sua morte lenta e dolorosa.
Um disparo ecoou pelo ambiente. O corpo gordo e pesado do urso caiu em cima de Charlie. Sem forças, ele apenas aceitou ser prensado pelo cadáver do animal. Entre a vastidão de pelos, Charlie conseguia enxergar claramente um par de pernas vestidas em calças elegantes se aproximando.
Toda a pressão do peso do urso desapareceu quando o cadáver foi tirado de cima de Charlie, deixando-o aliviado, apesar de que sua perna doía como o inferno. Tudo em sua volta estava distorcido, com exceção do homem que o observava de cima. Era ele. Não estava usando mais seu terno elegante, apenas uma regata branca o protegia do frio, deixando à mostra seus braços sarados e repletos de tatuagens. Veias grossas contornavam seus pulsos. Suas mãos pareciam firmes segurando aquele rifle de precisão.
— Me... Leve... Para... — tentou formar uma frase em meio a tontura que estava sentindo. — Me leve para... Casa, idiota.
O mafioso sorriu.
Voltou sua atenção para o urso ao lado, que parecia vivo, afinal suas pernas estavam se mexendo. O homem jogou o rifle no chão e se ajoelhou ao lado do animal. Tirou do bolso da calça uma faca de caça. Charlie não teve tempo de desviar o olhar, o homem enfiou a faca no peito do animal e o rasgou de dentro para fora, fazendo uma porção de sangue respingar em sua roupa. Enfiou as mãos nas estranhas do urso e tirou para fora o coração ainda pulsante da fera selvagem. Suas tatuagens pareciam combinar com o sangue que manchava metade de seus braços. Jogou o coração na grama como se fosse um brinquedo desinteressante e se aproximou de Charlie, pegando-o no colo.
— A propósito, prefiro que me chame de Leonid.
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