Capítulo 1
O Tempo
O meu trabalho não é fácil. De alguma forma eu sofro com as diversas vidas que chegam ao fim, e, onde eu, somente eu, posso e consigo fazer com que elas acabem.
Por mais que eu adore o meu "trabalho" e a minha existência, que é fundamental para o universo inteiro, às vezes eu me odeio. O tempo é uma merda. Eu sou uma merda.
Ser o tempo nunca foi a tarefa mais fácil, principalmente por ter que iniciar e acabar com amizades, relacionamentos, vidas e dentre muitas outras coisas.
Por mais que eu odeie o que eu faço e o que eu sou, teve um dia, uma parte específica minha, que eu amei.
...
Quando a vida de alguém chega ao fim, ela é recolhida em uma pequena ampulheta que contém minúsculas partículas de grãos de areia. Cada grão de areia representa especificamente um ano da vida dessa pessoa.
E, quando eu tenho essa ampulheta, eu posso ver os últimos dias dessa pessoa até o momento do seu último suspiro na Terra.
Nesse dia, nesse "eu", ao recolher uma ampulheta como de costume, vi as lembranças de um idoso e o tempo parou. Ele paralisou. Eu paralisei. Fiquei feliz e angustiado ao mesmo tempo quando o conheci, quando conheci Hazel.
Hazel não era o idoso, mas sim, foi quem cuidou do falecido em seus últimos momentos.
Fiquei feliz por saber que alguém tinha chamado a minha atenção, mas angustiado por saber que eu não poderia fazer nada além de observá-la.
O tempo não para.
Ele nunca para.
Apenas atrasa.
Desde aquele momento que a vi, eu comecei a vigiá-la, de longe. Hazel já era adulta.
O idoso que morreu era seu mentor da Faculdade e a pessoa que a criou. Hazel ficou muito triste quando a sua única família morreu e eu me entristeci juntamente com ela.
...
Hazel
O meu coração partiu em mil pedaços, quando o meu mentor e minha única família tinha partido e levado consigo um pedaço de mim.
O que me resta é seguir em frente e sozinha, mas é tão difícil. Quem vai me ajudar quando eu mais precisar? Quem vai me dar conselhos? Quem vai estar ao meu lado?
Benjamin irá deixar saudades, um legado e um grande vazio em minha vida, mas foi necessário. Havia suplicado, pedido ao tempo que ele fosse mais devagar e que não tivesse levado consigo ainda uma parte de mim, mas as coisas nem sempre são como desejamos.
...
O Tempo
O Tempo passa devagar quando você quer que ele passe rápido e vice-versa.
Me odiei completamente quando vi Hazel olhar a cada cinco minutos para o seu relógio com a perna mexendo embaixo da sua mesa na Faculdade, esperando a aula acabar para ir ao banheiro chorar.
Ela estava quase soluçando e mesmo assim segurava o seu choro de cabeça baixa. E eu passava devagar, lentamente.
...
Hazel
Eu já estava inquieta, apreensiva, não via a hora da homenagem terminar. Parecia que quanto mais eu olhava o relógio, mais o tempo enrolava. Segurei o choro repentino na garganta, não queria ninguém em cima de mim, já não bastava os pêsames que me deram.
Sabia que eles só estavam sendo solidários e demonstrando o quanto sentiam pela minha perda, mas isso só me deixava pior.
A aula acabou e eu andei rapidamente para o banheiro. Umas meninas me olharam e eu dei um sorriso fraco. Entrei em um dos banheiros e desmoronei, chorei baixinho, tranquei na garganta o ruído do choro e deixei as lágrimas rolarem por um bom tempo.
Fizeram uma linda homenagem para Benjamin, ele era um exemplo de mentor e pai, meu peito doía pela perda. Engoli o restante do choro e dei um sorriso. Obrigado por tudo pai!
Saí de um dos banheiros e fui para frente do espelho, sequei o rosto e limpei o rímel que tinha borrado. Benjamin não ia gostar de me ver chorando. Abri um sorriso e fui para minha sala.
Vou realizar o meu sonho, terminar minha Faculdade e vencer na vida. É o que eu sempre sonhei e Benjamin sempre me apoiou. Não irei te decepcionar pai, prometo!
...
O Tempo
Conforme os meses iam passando, Hazel se recuperava da perda e o tempo passava. Um ano depois, Hazel arranjará um namorado. Fiquei feliz por ela ter alguém tão bom ao seu lado, mas triste por saber que não seria eu.
...
Hazel
Hoje não sinto mais um aperto excruciante no peito por ter perdido a minha única família, porque o tempo trouxe consigo alguém que foi capaz de fazer eu viver novamente.
Diego é um bom rapaz, um bom parceiro, eu o amo e acima de tudo nos damos muito bem. Planejamos nosso futuro juntos e estamos correndo atrás dos nossos sonhos.
É, o tempo realmente fica ao nosso lado quando ele quer e eu sou grata a ele, neste momento, por ter trazido o Diego para a minha vida.
...
O Tempo
Dois anos depois Hazel terminou a sua Faculdade e já saiu com uma vaga de emprego que conseguiu por ter se saído bem no estágio.
Até hoje me lembro da sua ansiedade e pressa para as horas passarem mais rápido e o seu primeiro dia de trabalho chegar. Eu contribuí um pouco para a sua felicidade.
...
Hazel
— E aí amor, ansiosa para amanhã?
— Você nem faz ideia. Já estou fissurada com o relógio. — Comentei com Diego. Ele me abraçou por de trás e beijou meu pescoço.
— Eu sei como fazer o tempo passar mais rápido. — Sussurrou no meu ouvido.
— Então me mostra. — Disse sorrindo.
...
O Tempo
Três anos depois Hazel comprou uma casa nova, onde se mudou junto com o seu namorado. Ela estava tão feliz que eu pensei que ela iria infartar, mas ao ver os grãos que faltavam em sua ampulheta eu fiquei aliviado.
...
Hazel
Eu me sentia satisfeita por ter conseguido realizar um sonho meu e do Diego. Lutamos a uns anos para conseguir ter a nossa própria casa.
Hoje estávamos nos mudando e minha felicidade era aparente. Finalmente poderia ter um lugar para chamar de "meu" e uma pessoa ao meu lado para compartilhar todos os momentos.
Terminamos a mudança e eu me joguei no sofá. A casa ainda estava desorganizada, mas eu estava no meu elemento, no meu lar.
...
O Tempo
Quatro anos depois, Hazel conseguiu uma promoção onde subiu de cargo no trabalho com um novo salário e comprou um carro zero. Eu aprovei a opção, diferente de seu namorado que queria uma moto.
...
Hazel
Hoje fui chamada à sala do meu superior para uma reunião, e, para minha surpresa saí de lá com um novo cargo e um aumento significativo no salário.
Fiquei tão feliz que resolvi fazer uma surpresa para Diego. Fui logo em uma concessionária, dei entrada em um carro e escondi ele na garagem de casa antes do Diego chegar do trabalho.
Cheguei em casa, preparei um jantar com vinho e o esperei. Diego chegou todo sorridente e desconfiado por ver a mesa toda arrumada. Ele tomou seu banho e nós jantamos. Depois que terminamos o jantar, sentamos no sofá e fomos assistir a um filme.
— Amor, eu tenho uma surpresa. — Disse empolgada. Diego me olhou maliciosamente e eu bati em seu braço rindo. — Não é o que você está pensando, seu bobo.
— Puxa... mas o que é então, me conta.
— Meu superior me chamou hoje na sua sala e disse que eu sou uma funcionária muito exemplar e que tinha tomado uma decisão de me oferecer uma promoção e aumentar o meu salário... — Antes de terminar Diego se levantou do sofá, me pegou no colo e me encheu de beijos me parabenizando.
— Ainda não acabou. — Indaguei rindo.
— Hum... é o que eu estou pensando? — Diego me colocou no chão e eu o puxei para a garagem. Mandei ele fechar os olhos e assim ele fez.
— Não é para abrir, hein. — Ele concordou com a cabeça. Eu tirei a capa do carro e coloquei no canto da garagem. — Pode abrir. — Diego abriu os olhos e eu não soube saber a sua reação, porque ele estava impassível.
— Então? Gostou? — Perguntei feliz.
— Sim, é bonito.
— Só isso? — Perguntei descrente.
— É que eu estou confuso, eu achei que nós íamos escolher juntos o que comprar. — Revirei os olhos e o deixei sozinho na garagem. — Ei, aonde você vai?
— Mas que merda Diego, você não gostou.
— É claro que gostei, só preferia uma moto.
— Viu só? Essa é a sua forma de dizer que não gostou.
— Ei linda, vamos conversar.
— Boa noite, Diego. — Me deitei na cama e dei as costas para ele.
— Amor, vamos conversar. — Insistiu. O ignorei e esperei ele se retirar do quarto.
...
O Tempo
Cinco anos depois Hazel estava com dificuldades em casa, seu namorado estava sobrecarregado de trabalho e não tinha tempo para ela. Vivenciar as noites em claro de Hazel chorando foi a pior coisa para mim.
...
Hazel
Sonhar todo mundo sonha, mas conseguir manter a sua vida de pé e do jeito que sempre queremos é complicado. Há três anos atrás eu e Diego comemoramos a conquista do nosso próprio lar.
O tempo passou e morar junto era um mar de rosas. Vivemos bons momentos, rimos e principalmente nos amamos. Depois de um mês para cá as coisas já não eram mais as mesmas.
Diego tinha um bom emprego, mas tinha me deixado de lado. Seu emprego exigia muito dele e ele estava ficando sobrecarregado a ponto de chegar em casa e só querer dormir.
Brigávamos direto por conta de sua carga horária, dormimos muitas noites separados e isso me deixava frustrada.
— Diego, eu já disse para você que podemos arranjar outro emprego. — Falei calma tentando fazer ele me entender.
— Não, Hazel, eu já disse para você que não é tão fácil caramba! — Falou alterado.
— Por que você está gritando comigo? Eu só quero te ajudar. — Tentei me aproximar, mas ele recuou.
— Merda, não está dando certo. Eu preciso terminar o projeto, não quero levar bronca do patrão amanhã por sua causa. — Vociferou passando a mão pelos cabelos.
— Será que você está tão cego a ponto de não ver que isso só está atrapalhando o nosso relacionamento?
— Agora eu não estou com tempo para os seus dramas. — Diego saiu do quarto e bateu forte a porta.
Me segurei o máximo que pude antes de desmoronar. Por que a vida tem que ser tão difícil? Por que? Tudo aquilo estava me desgastando e me destruindo aos poucos.
Chorei até a minha garganta doer, eu não aguentar mais, e, dormi em cima do meu travesseiro ensopado.
...
O Tempo
Se passaram anos e Hazel sempre evoluía e eu sempre a apoiava, mesmo ela não sabendo. Algumas de suas decisões me deixava triste, como na vez que ela aceitou se casar com o seu namorado, mas se ela estava feliz, eu também ficava.
...
Hazel
— Diego Santos, é de livre e espontânea vontade que você aceita Hazel Hudson como sua legítima esposa? — Perguntou nosso amigo à espera de uma resposta.
— Sim. — Respondeu Diego sorrindo.
— Hazel Hudson, é de livre e espontânea vontade que você aceita Diego Santos como seu legítimo esposo?
— Sim. — Disse sorrindo.
Fizemos nossos votos e eu chorei bastante com as palavras de Diego. Trocamos as alianças e o nosso amigo foi fazer o pronunciamento final.
— E assim, tendo testemunhado sua troca de votos diante de todos que estão aqui hoje, é com grande alegria que eu os declaro marido e mulher, vocês estão casados, pode beijar a noiva. — Diego me puxou para os seus braços e me deu um beijo apaixonado.
Esse era o melhor dia da minha vida. O nosso casamento tinha sido simples e o padre era um amigo nosso que aceitou fazer a cerimônia. Apenas alguns amigos da Faculdade, do trabalho e as nossas famílias que haviam comparecido à cerimônia.
Diego e eu curtimos a festa até tarde e depois pegamos voo rumo a Maldivas para passar nossa lua de mel.
...
O Tempo
Hazel não quis ter filhos, o que fez com que ela aproveitasse mais a vida, chegasse em casa tarde com agora "seu marido" e viajasse mais.
...
Hazel
Tínhamos decidido não ter filhos, na verdade eu que não queria mesmo e fiquei feliz por Diego ter sido compreensivo com a minha decisão.
Diego tinha conseguido férias do seu emprego e eu também. Ele comprou passagens para irmos à praia para pegarmos um bronze.
— Sabia que eu te amo? — Diego fez sua cara safada que eu amava e me olhou com um brilho nos olhos.
— Aé? Então me prova. — Estávamos deitados no quarto namorando e quando Diego disse aquilo só foi um breve convite para eu me deleitar em seus braços e saciar a minha vontade.
...
O Tempo
Conforme os anos iam passando, eu ficava mais apaixonado por Hazel, e, cada vez mais preocupado por o seu tempo estar acabando.
Seu marido teve menos tempo que ela. Me senti mal por ver o último grão cair e por saber como Hazel se sentiria.
Hazel sofreu tanto. Ela se isolou e ficou apenas escutando a música que ambos gostavam.
Nesse meio tempo Hazel não se alimentava direito e alguns grãos da sua ampulheta até sumiram, o que me fez entrar em desespero. Mas não havia nada o que eu podia fazer. Hazel tinha que sair dessa sozinha.
...
Hazel
Já fazia horas, dias ou até meses que eu tinha me isolado dentro de casa. Eu realmente não sei.
Diego, meu amor tinha falecido e mais uma vez eu havia perdido uma pessoa crucial na minha vida.
Benjamin tinha sido como um pai para mim e se foi pela velhice, o que me abalou muito. Diego havia chegado em minha vida e cicatrizado todas as feridas que o tempo havia deixado.
Mas, assim como o tempo havia me machucado, ele tinha me curado trazendo Diego para mim, mas agora ele também se foi.
Minha vontade de comer tinha passado e eu nem queria viver. Qual seria o propósito? As duas pessoas que eu mais amava me deixaram e só restaram as lembranças que um dia o tempo também irá levar.
Preferia morrer a ter que viver nesse mundo sem eles.
...
O Tempo
Quatro anos após a morte de seu falecido marido, Hazel voltou ao que era quando ainda estava solteira, sempre fazendo amizades, não que ela não fazia quando começou a namorar, mas agora que ela estava aposentada, ela saía mais, bebia mais e viajava mais.
...
Hazel
— Me vê mais um aí.
— A senhora tem certeza? — Perguntou o bartender.
— Quem é que está pagando, eu ou você? — Arquei uma sobrancelha e ele me serviu mais uma vodka meio contrariado.
Já era a minha sexta taça só naquela noite. A bebida se tornou um refúgio para mim depois que perdi o meu marido a quatro anos atrás, e, desde que me aposentei usei o meu dinheiro para gastar em viagens e bebidas.
Decidi aproveitar a vida ao máximos antes que fosse tarde demais.
...
O Tempo
Então o último grão chegou.
Nesse último ano Hazel passou em uma casa de repouso, sempre com uma morfina ao seu lado. Ela sofreu tanto... Ela não merecia.
Eu rezei para que ela não sofresse tanto, mesmo sabendo que alguma divindade, se ela existisse, não poderia fazer nada.
E então, Hazel morreu.
De frente ao mar, após ser levada em uma cadeira de rodas para a areia fofinha.
...
Hazel
De certa forma eu já tinha me conformado com o meu fim e sabia que a minha hora tinha chegado.
Já faz cinco meses que eu estava em uma casa de repouso por conta da bebida. A minha idade já estava avançada e os meus órgãos não aguentavam mais tanto álcool ingerido.
Agora eu estava deitada em uma cama com uma morfina que vivia pregada em meu braço dia e noite.
Eu não estou triste, nem amedrontada, por saber que vou morrer, uma hora ou outra iria chegar, sempre chegará um dia para alguém.
Finalmente eu iria rever as pessoas que amo, meu pai e meu Diego. Uma súbita vontade tomou conta de mim e eu pedi que a enfermeira me levasse na cadeira de rodas para ver o mar antes de partir.
...
O tempo passava e a maresia estava calma, ele me trazia uma paz no espírito. Abri um sorriso no rosto e toquei os pés na areia macia para sentir o aconchego do mar.
Olhei para o céu e supliquei para o tempo me levar, ali, naquele momento, eu queria morrer sentada na cadeira de rodas e naquele lugar.
Já iremos nos encontrar meu amor. Estou indo pai. Fechei os olhos e esperei que o meu pedido fosse atendido. Inalei o cheiro do mar, e, naquele dia, naquele momento, foi o meu último suspiro.
...
O Tempo
Demorei para conseguir pegar sua ampulheta, mas quando a peguei para conseguir ver seus últimos momentos, mesmo já sabendo como foi, vi que em todo tempo havia um relógio perto de Hazel.
Seja na parede ou no seu braço.
E eu me senti reconfortado.
Pois sabia que esse tempo que passei observando ela, essa pequena parte minha. Foi significativo para nós dois.
Eu, o tempo, que está desde a formação de tudo, desde a origem das primeiras partículas de fumaça até as células que formaram Hazel no ventre de uma mulher cujo morreu no parto.
Ficou em pedaços.
Por mais que eu queira voltar no passado e ver Hazel outra vez, eu aprendi uma lição com um dos livros que eu mesmo li:
Não podemos voltar ao passado nem saber o futuro. Portanto, ame, acredite e viva, no dia de hoje, no presente.
Eu irei seguir o exemplo de Hazel que, após a morte de seu marido, não deixou de aproveitar a vida por um momento, e que logo depois morreu sem nenhum arrependimento.
Ser o tempo nunca foi a tarefa mais fácil. Mas Hazel me ensinou que se estamos aqui e agora, é porque temos algum motivo e algum significado na vida de alguém.
Portanto, aproveite cada momento ao lado das pessoas que você mais ama e acima de tudo seja feliz.
...
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