𝔖𝔢𝔦𝔰 - 𝔒 ℜ𝔢𝔦𝔫𝔬 𝔡𝔞𝔰 𝔄𝔩𝔪𝔞𝔰 𝔓𝔢𝔯𝔡𝔦𝔡𝔞𝔰.
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Os olhos se abriram lentamente, acostumando-se com a escuridão do quarto que a impedia de enxergar qualquer objeto à sua volta. Sua cabeça latejava, pulsando fortemente ao contrário do corpo que estava dormente como se estivesse sedado. Celine tentou levantar, em vão, caindo contra a cama e afundando em sua maciez.
Suspirou exausta, buscando relembrar o que havia acontecido. Flashs tomaram sua mente, o rio à sua frente, o corpo esticado segurando apenas a barra de ferro inclinada na imensidão azul, os cabelos emaranhados e contorcendo com o vento gélido que os sacudiam por seu rosto.
A voz dele ressoou por seus ouvidos em um tilintar, a imagem de Nathanael tomou sua cabeça ao lembrar do olhar assustado que recebera. Podia sentir as mãos firmes dele segurarem seus braços, a impedindo de cair nas profundezas do rio. Tocou lentamente sua pele, mordendo os lábios ao pensar em seu toque.
— "Mas como ele sabia que eu estaria lá?" — Pensou. Fixou o olhar no teto reparando nos pequenos filetes amarelos contornados por pingos brancos, a lembrando do céu coberto por estrelas.
— "Onde estou?'' — Inquiriu, tentando enxergar em meio a escuridão.
— Como eu queria que tivesse luz nesse lugar! — Exclamou frustrada em voz alta. Um estalo se fez presente e em um clique velas começaram a acender em cada canto dos aposentos, iluminando-o, a deixando boquiaberta e ao mesmo tempo assustada.
Por mais que ainda estivesse escuro, sua visão conseguia focalizar melhor no ambiente ao seu redor.
O quarto era imenso, as paredes feitas de pedras rochosas com um brilho arroxeado que emanava, cobrindo-a por fragmentos, o guarda-roupa feito de mármore tomava toda lateral escondendo uma das paredes. Não havia janelas, nada que permitisse a luz do sol adentrar, porém sentia a leve brisa circundar seu corpo provavelmente vinda das brechas na porta acinzentada permitindo o ar circular o recinto.
Movimentou o corpo criando forças para se levantar e sair daquela cama, os lençóis pareciam se enrolar em suas pernas. Sentou-se firmando os pés contra o piso frio, percorrendo um arrepio por sua coluna. Estava descalça, suas roupas continuavam as mesmas, trajando o vestido floral que chegava aos tornozelos.
Sua mente a traiu, guiando-a para Nathanael, comprimiu os lábios. O ar parecia abandoná-la ao relembrar do rapaz. Precisou se apoiar na parede para não cair ao ver a figura do irmão diante de seus olhos, como se Brendan estivesse na sua frente ao lado de Nathan que mantinha um olhar sombrio e o sorriso largo rasgando sua face.
A camisa branca de Brendan estava coberta de sangue, os cabelos castanhos grudados a sua testa com um sorriso fraco pairando em seus lábios, o olhar dela recaiu no enorme buraco na lateral esquerda de sua barriga. As sombras brincavam em volta dele, passeando por seus braços.
— Veja o que aconteceu com ele, Line. — A voz rouca ressoou pelo quarto, a gargalhada sombria arrepiou o corpo dela observando o sorriso que dilacerava os lábios de Nathanael. — Você sempre estará sozinha, sem ninguém. — Completou, quando as mãos dele perfuraram o peito de Brendan arrancando seu coração fazendo seu irmão cair como um boneco sem vida no chão.
Lágrimas inundaram as bochechas de Celine se permitindo soltar aquele peso que trancou no coração, seus joelhos vacilarem precisando se segurar na cama. Ergueu o olhar, mas a miragem dos dois tinha sumido.
O barulho alto da trinca despertou sua atenção, revelando uma figura masculina trajada com um uniforme escuro, sua capa rastejava pelo chão.
Suas orelhas eram pontiagudas e os olhos de um tom amarelado forte, como ouro, brilhando em meio ao tom de pele escuro. Os cabelos na altura dos ombros, castanhos com mexas vermelhas e marcas fortes em sua pele, expondo um brasão cravado em cada lateral de seus braços fortes.
Celine apertou os olhos tentando identificar o sinal que se formava com as pinturas douradas, mas não conseguiu, fazendo uma careta de desgosto.
— A sacerdotisa deseja vê-la. — A voz masculina ecoou firme pelo quarto, trazendo uma sensação ruim para ela.
Estava com medo.
— Ela não aceita atrasos! — Ele disse em um estrondo, como trovões repercutindo sobre o céu.
Caminhou a passos lentos até ele, seu braço foi segurado fortemente para que não tentasse fugir, a guiando pelo imenso corredor.
Diversas portas tomaram seu campo de visão, porém seus olhos fixaram nas cores escuras, o ambiente sombrio e solitário, completamente sem vida. Havia um enorme tapete preto estendido pelo corredor que parecia não possuir fim, as paredes cinzas eram marcadas por rachaduras que chegavam ao teto.
Gritos desesperadores reverberam por seus ouvidos como um rugido em súplica, a deixando angustiada. Seu coração parecia se retorcer e ser esmagado a cada som proferido pelas paredes ecoando pelo vazio avassalador.
Pararam em frente a um enorme salão que parecia ser utilizado para festividades ao dizer pelas cores mais vívidas em vermelho, com cortinas douradas que chegavam ao chão que agora encontravam-se abertas, revelando as grandiosas janelas de vidro que mostravam a paisagem do outro lado. Avistando montanhas ao fundo.
Estava completamente vazio, deserto, sem nenhuma movimentação ou indícios de que alguma alma viva tivesse pisado naquele lugar. Ninguém habitava a ala durante anos, caindo em esquecimento, engolida pela escuridão.
Celine reparou no excesso de poeira que se movimentava a cada passo que dava, ardendo suas narinas. As teias de aranha circulavam os lustres, as lâmpadas quebradas com os cacos espalhados pelo chão, outras piscavam de modo falho apenas iluminando partes do recinto.
Podia sentir como se algo os observasse durante sua caminhada.
Uma gargalhada tenebrosa tomou o ambiente, fazendo Celine estremecer, encarando o homem quieto ao seu lado sem demonstrar qualquer reação.
A escadaria que projetou em sua frente possuia exatos três lances, recoberta por marfim e cristais em seu corrimão, retorcida, formando uma leve curva em espiral. No final dela era possível ver a porta vinho com espinhos fixados por suas dobradiças, a planta rastejava pela madeira ressecada quase a esmagando. Rosas vermelhas nasciam de seus pequenos brotos.
O ar em seus pulmões parecia escapar por seus lábios, quanto mais se aproximava de seu destino, suas mãos tremiam e a mente gritava para que ela fugisse.
A porta foi aberta em um solavanco, permitindo que Celine visse o que estava do outro lado, focando seus olhos no trono de espinhos. A figura feminina abriu um sorriso cortante para Line, seus olhos analisavam-na como um falcão, brilhando em satisfação.
Seus globos eram imersos na escuridão sugando a parte branca de seu olho, em volta dele sua pele era coberta pelo vermelho intenso que se destacava com o restante de seu rosto.
— A minha escolhida. — Sentenciou, erguendo-se, seu vestido cinzento coberto por folhas secas descia justo por seu busto, contornando perfeitamente a silhueta, moldando seus quadris. A coroa dourada destacava-se em seus cabelos escuros e cacheados que desciam por suas costas quase tocando o chão.
Celine pode reparar nas sombras circulando o corpo da mulher, a abraçando em um carinho silencioso.
Morrígan estendeu a mão para ela, suas unhas pareciam garras afiadas que tocaram levemente a pele de Line trazendo uma sensação de ardor, como se o simples toque a queimasse. Seus dedos relutantes tocaram a palma da mão dela que a segurou firme, as guiando pelo enorme aposento. Virando brevemente para o outro.
— Está dispensado por enquanto Azrael! — Disse serenamente, recebendo um concordar, observando o rapaz se retirar. Deixando elas sozinhas.
O piso de prata tilintava a cada passada, refletindo as chamas que agora faiscavam dos cabelos de Morrígan. O teto era feito de ouro com cristais pendurados sobre suas cabeças, emanando luz ao lugar.
— Bem-vinda a Damnato, o reino das Almas Perdidas, sou Morrígan a Monarca deste lugar. — Proferiu, as levando para a enorme varanda dando a privilegiada visão para o imenso rio celeste, que reluzia com sua transparência.
As árvores com folhas alaranjadas contornavam o rio em sua lateral, misturando as plantas com o verde vívido. Corvos se alojaram em meio aos galhos, os olhos avermelhados fixos nas esmeraldas de Celine, analisando cada passo e movimento realizado por ela.
Os gritos agudos de dor se intensificaram, luzes brancas se formaram em meio às águas que se tornaram escuras. Os feixes pareciam se abraçar indo contra a correnteza que levariam para o enorme penhasco, o barulho estrondoso da cascata repercutia pela floresta.
— Esse é o rio Amnisia, onde os últimos sussurros da morte transcorrem antes de levarem as almas para seus devidos lugares, recebendo o seu destino, seja ele bom ou ruim. — A voz melodiosa cantarolou ao seu lado, com um sorriso acolhedor.
Ela arregalou os olhos assustada, seu corpo enrijeceu com a garganta seca, apertou o vestido para acalmar suas mãos trêmulas.
— Por que eu estou aqui? — Perguntou em um sussurro, virando-se para a Protetora que sorria.
— Teremos tempo para conversar a respeito disso. — Morrígan falou docemente, tocando a bochecha de Celine limpando os resquícios de lágrimas. — Agora irei te mostrar o restante do seu novo lar! Minha doce criança, não tenha medo, esse é apenas o início da sua jornada no Reino das Almas Perdidas.
Morrígan entrelaçou seu braço aos de Line, seus corpos foram levantados ao ar quando as asas negras surgiram no corpo da protetora, às erguendo em meio ao céu nublado. O vento balançava contra seus cabelos, ecoando o som da cascata que se tornava mais nítida.
Pararam sobre as rochas, os olhos de Celine observavam de modo atento as águas que desciam abruptamente, crescendo uma imensa vontade de se deixar banhar. Aproximou-se lentamente e tocou com delicadeza, molhando sua mão, a água parecia brincar por sua palma escutando risos leves.
— Desfrute querida. — A voz retornou ao fundo, virando para a mulher que a olhava. — Banhe-se no rio do esquecimento. — Sussurrou as últimas palavras em melodia.
Ela deu mais um passo, a água da cachoeira tomou seu corpo a inundando e por um momento, um breve segundo Line sentiu como se suas memórias a deixassem, se perdendo em meio a escuridão. Levada pelas sombras.
Fechou os olhos, quando seu coração se apertou agravando a dor ao ver o rosto de Brendan, o ódio se alastrava por suas veias. Morrígan analisava a garota em silêncio, observando seus cabelos castanhos intercalarem a tons dourados, brilhando como ouro derretido, desenhando linhas pretas por sua pele em marcas vibrantes. Celine seria a sua sucessora.
A imagem do irmão piscava na mente da garota, o sorriso que se desfazia dando lugar para a dor, o sangue que tomava suas roupas que agora eram completamente vermelhas. O resquício de qualquer amor que a jovem tivera a estava abandonando, a deixando, para seguir o seu destino.
Contudo olhos azuis tomaram sua mente, tão brilhantes e sinceros, aquecendo o coração de Celine. As palavras brincavam por sua cabeça, deixando aquela pequena brecha aberta no coração dela que se tornava acinzentado, corrompido pela dor.
— "Eu vou achar você, eu vou te encontrar Line, não importa o que aconteça, porque eu amo você e amarei por toda eternidade." — O sorriso de Nathanael atingiu o fundo de seu coração, os braços acolhedores e calorosos pareciam estar em torno de si, não permitindo que a mulher sucumbisse a escuridão.
Os olhos dela se abriram, refletindo a íris completamente escuras, porém com uma coloração diferente do que a protetora esperava. O preto estava misturado ao vermelho, formando pequenos pontos que reluziam por suas pupilas.
Em meio a toda a escuridão ainda havia uma pequena parte que refletia a luz e o amor que ela nutria por Nathanael e nem mesmo a deusa da morte arrancaria isso dela.
[...]
As criaturas da noite observavam atentamente as duas mulheres andarem, curiosos com a nova presença ao lado de sua soberana, poucos ousavam se aproximar. Morrígan impregnava respeito por onde passava, a morte estava sempre ao seu lado, como um velho amigo.
Celine não trajava mais roupas floridas, seu vestido havia se tornado uma túnica cinza, com cristais pendurados em formatos de botão. Seus cabelos castanhos agora brilhavam com o dourado, os mesclando, sua pele tinha tomado um tom mais forte evidenciando as marcas que contornavam seus braços e rodeavam seu pescoço. Seus pés tocavam as pedras, sentindo cada parte daquele lugar, seu corpo parecia absorver as sensações de melancolia e os gritos de dor agora eram parte de si, a acolhendo.
A soberana segurava o cetro em mãos. Passavam por Durin, a cidade dos mortos, as cruzes fixas pela imensidão verde com nomes cravados em ouro - de cada pessoa que havia perdido sua vida, fossem em batalhas, por doenças, ou desgosto. Os espíritos vagavam por suas lápides, escutando o som da flauta ressoar ao fundo os acalmando.
Os olhos de Celine focaram na figura sentada sobre um dos caixões, os cabelos brancos e cacheados esvoaçavam, os olhos transparentes com marcas douradas em seus cantos. A túnica amarela cobria grande parte do corpo másculo, com as calças largas à altura de seus pés que balançavam com a música lenta. A sensação de paz preenchia o peito dela, observando as criaturas adentrar a terra, escondendo-se na areia. O barulho de tampas sendo abertas e fechadas indicavam a volta dos espíritos para seus lugares.
O rapaz virou o rosto abrindo um largo sorriso para a protetora, porém seu olhar fixou na outra figura ao seu lado, em Celine, franzindo o cenho e lhe analisando com desdém. Spook odiava estar na presença de desconhecidos.
Ele ergueu o tronco, aproximando-se, seu corpo levitava sem tocar o chão parando a centímetros de Line. Desceu os olhos pela mulher, arqueando a sobrancelha.
— Quem é ela? — Perguntou com indiferença.
— Não seja desrespeitoso com a visita Spook. — Morrígan decretou, obrigando o mesmo a abrir um sorriso forçado.
— É uma honra tê-la em nosso reino, pequena ratinha! — Exclamou, recebendo um beliscão de Morrígan e resmungando com a dor.
— Não desrespeite Celine! — A voz severa o fez se encolher.
— Sim senhora, peço perdão. — Ele falou acuado, segurando a mão de Celine levando rente ao lábio, depositando um beijo demorado. Aproximou-se sorrateiramente de seus ouvidos. — Ratinha. — Completou.
Afastou-se gargalhando ao ver a fisionomia fechada de Celine, segurando a flauta. O som do instrumento retornou de modo divertido retumbando nos espíritos traiçoeiros.
— Você precisa se tornar mais maduro, ou não se juntará à corte e permanecerá nessa rotina de apenas colocar os espíritos para dormir. — Spook revirou os olhos indiferente, não se importava em estar entre os nobres, os achava mesquinhos. Estar ao lado de sua soberana, para ele, era o suficiente.
Morrígan estava sempre de passagem por Durin, não faltando oportunidade para o flautista importuná-la. A sacerdotisa fazia questão de saber sobre a passagem das almas no percurso de Amnisia, impedindo que os espíritos fugissem de seu caminho. Precisando de Spook para controlá-los.
O domador de fantasmas era como um braço direito, mesmo que este se recusasse a se juntar com Azrael e os outros da corte.
— Mas, o que traz uma nova companhia para a dama da noite? — Perguntou curioso, analisando a sacerdotisa.
— Celine é do Reino de Tellus, mas ela não o pertence mais. — Spook arregalou os olhos surpresos. — Ela será minha sucessora. — Morrígan completou.
— A ratinha? — Exclamou entre gargalhadas — ela parece ter medo de baratas! Uma flor delicada. — Murmurou com desgosto — como cuidará de um reino cheio de morte e destruição? — Arqueou a sobrancelha duvidoso.
Morrígan ergueu a mão e um brilho vermelho transpareceu entre seus dedos lançando contra Spook que teve a boca costurada, a olhando indignado. Ele tentou movimentar os lábios, porém a linha os mantiveram presos.
— Não estou pedindo sua opinião. — Morrígan falou amargamente — te mostrarei Brejo. — Segurou o braço de Celine a levando pelas flores secas, com o barulho destas se partindo conforme andavam.
Spook sentiu o ar preencher seus pulmões ao ver a deusa afastada do cemitério erguer a mão para trás arrancando a costura de sua boca.
— Velha ranzinza! — Murmurou, retornando para a flauta.
Caminhavam pelo pântano de Brejo, repleto de salgueiros contornando o lago com musgos em suas pedras, enormes árvores de eucalipto as cercavam. O ambiente estava escuro apenas com a lua cheia tomando o céu, o barulho de cigarras ecoava pela mata. Vaga-lumes piscando e iluminando a trilha que seguiam.
As sombras gargalhavam, podendo vê-las em seus formatos. Eram criaturas horrendas com garras e dentes afiados, chifres que tomavam suas cabeças e algumas se mantinham em quatro patas. Não podia tocá-las, diferente delas que facilmente se misturaram com o próprio reflexo de Celine na escuridão.
Elas não se aproximaram diante da presença de Morrígan, ficando apenas à espreita.
Pararam em frente a um casebre mal iluminado, caído nas traças, com buracos em suas paredes. A escada de madeira chiava enquanto subiam a sentindo vacilar e envergando.
O estalo na porta foi audível ao empurrá-la, as serpentes enrolaram-se nas pernas delas subindo por seus corpos. Apertando os ossos de Celine.
— Controle seus animais Nesrin. — A senhora apareceu em meio ao breu, os cabelos brancos e pele enrugada. Seus olhos de vidro e os dentes apodrecidos.
Nesrin segurava uma muleta, as costas curvadas que a deixavam corcunda. Trajava uma túnica verde musgo e em sua pele possuía escamas. A mulher chiou, como um assobio fazendo com que as cobras lhes deixassem e então, adentraram nos buracos do chão de madeira, sumindo de suas vistas.
— Não esperava visitas, da última vez que algo entrou sem avisar quase destruiu minha casa! Esses crocodilos não têm respeito algum por mim. — Falou enfurecida.
— Falarei com Kylo a respeito disso. — Decretou a protetora.
— Ótimo! Se não deixar bem claro para ele que não pensarei duas vezes antes de transformá-lo em uma bolsa! Esses guardiões estão cada vez mais preguiçosos. — Exclamou a bruxa, afundando-se no sofá que estava rasgado e mostrava a madeira por dentro.
Celine estava quieta, sua curiosidade crescia, porém, sua cabeça parecia um furacão de pensamentos.
A bruxa desceu o olhar pela jovem a analisando.
— Vejo que a encontrou.
— Suas cartas nunca erram. — Nesrin sorriu causando náuseas em Celine.
— Mas, sabe que Amis não concorda com isso! — Falou divertida, arrancando um revirar de olhos de Morrígan.
— Ele que tente me impedir, o mandarei para o submundo para passar um tempo com os demônios sugando sua alma. — A velha gargalhou levando as mãos a barriga se contorcendo.
— Quem é Amis? — Celine perguntou, recebendo o olhar das duas em sua direção, se arrependendo amargamente ao ter a atenção toda voltada para si.
— Ninguém importante. — Morrígan murmurou com desdém.
— Ele é apenas o único que pode vir aqui buscar você, querida Celine, e acabar com a ideia insana de Morrígan em ter uma sucessora. — Nesrin arqueou a sobrancelha analisando a fisionomia da sacerdotisa que se retorcia em ódio.
— Nunca! — Morrígan vociferou. — Se ele pode sair pelos reinos atrás de alguém para cuidar das coisas inúteis dele, por que eu não poderia? — Rosnou — como se cuidar da linha do tempo fosse difícil! Difícil é ter que ficar buscando espíritos de pessoas que se recusam a aceitar a morte! — Esbravejou, seus cabelos esvoaçavam enquanto as janelas batiam contra o concreto estilhaçando ainda mais o vidro.
— Amis não possui mais o poder eterno como você Morrígan! E você sabe o real motivo de ele tê-lo perdido — a deusa desviou o olhar, incomodada. — Ele só conseguirá retornar ao que era quando o seu herdeiro aceitar seu legado. — Nesrin falou serena, esticando a mão para uma de suas serpentes que subiu por seu braço circulando seu pescoço. — O tempo dele não é infinito, ele está ficando velho para esse serviço e nem Galahad pode ajudá-lo.
— Velho! — Exclamou debochada — com aquela aparência jovial, velha sou eu! Governo o Reino da morte há muito mais tempo que gostaria e ainda tenho que aturar Melione. — Morrígan apoiou-se na parede.
— Se você tivesse um herdeiro, este poderia estar cuidando dos negócios da família! — Disse abrindo um sorriso de escárnio.
— Celine fará isso com perfeição, ensinarei tudo o que precisa saber. — Falou indiferente ao pronunciamento da bruxa.
— Mas ela é de Tellus, humanos não possuem magia para governar um lugar como Damnato, principalmente se não forem escolhidos.
A sacerdotisa deu um breve sorriso, seus olhos brilharam transparecendo que ela possuía ideia de como conseguiria que Mabel encontrasse a magia necessária para governar Damnato e poder passar sua sucessão para a jovem.
— Não! — Exclamou Nesrin surpresa. — Você não pode estar cogitando levá-la ao precipício de Zuko, você está louca! Sabe que todos que bebem da fonte de Zuko tem sua alma perdida na escuridão.
— Não é somente para isso que serve, não seja dramática Nesrin! A água de Zuko pode realizar o desejo de todos e com isso levar a alma daquele que o fez, uma troca, nada mais que isso. — Revelou, aproximando-se de Celine. — Retornaremos, espero vê-la em meus aposentos para podermos visitar Zuko. — Declarou, analisando a bruxa que meneou a cabeça em afirmação.
— Estarei lá. — Nesrin fez uma breve reverência, a mesma ergueu a mão emitindo luz de sua varinha, abrindo o portal. — Faça um ótimo retorno, minha senhora. — Morrígan sorriu levando Celine para dentro da imensidão.
Ao abrir os olhos constatou que estavam de volta, o trono a apenas alguns metros, Azrael estava sentado em um dos sofás, despojado, mas se levantou ao ver a figura feminina de sua rainha.
— Agora querida, irei lhe contar o real motivo para eu tê-la buscado. — A guiou para a mesa de cristais, sentando-se. As mãos cruzaram em frente ao corpo, seus dedos desenharam uma trilha pela mesa erguendo cidades que foram contornadas por casas, florestas e no meio delas pode observar a sua, a deixando confusa.
— Como isso é possível? — Perguntou, analisando o rio de Asterus.
— Asterus, ele é o divisor entre os reinos, poucos sabem sobre isso, apenas os soberanos de cada Reino. — Morrígan declamou. — Quando aquele tolo tentou salvá-la foi o momento perfeito para eu encontrá-la. — O coração de Celine acelerou ao ver que ela se referia a Nathanael. — Você minha criança tem exatamente o que eu procuro, alguém de alma pura, mas a escuridão habita dentro de seu coração. Desde a sua infância conturbada vem se fortalecendo por seu sangue. A sua frieza e apatia é o que procuro. — As mãos da protetora seguraram as dela tocando as linhas de sua palma, emitindo luz, as lembranças dançavam por seus olhos.
Imagens de sua infância reluziam pelo enorme salão, a criança sorridente que corria por entre as flores lhes tocando e emitindo o calor de sua vida, porém o brilho se perdeu. Agora mostrava o casarão que queimava, as paredes cobertas pelo fogo que aumentava as rachaduras que subiam por entre a tinta derretida. Os gritos agonizantes de dor das pessoas queimando conforme a pele derretia em meio às chamas que os engoliam, além dos gêmeos que se debatiam contra a porta de madeira a forçando para se abrir.
Naquela noite a morte levou os pais dos irmãos Levy.
Celine lembrava-se de ter visto um vulto negro, estreitando o corredor, jurava que a criatura havia asas e uma capa que se arrastava por todo o chão impedindo o fogo de tocá-lo. Durante meses chamaram a garota com apenas nove anos de louca, a medicando e aprisionando em quartos clínicos, com consultas frequentes ao psiquiatra. Diante de tudo, Celine ainda acreditava que tinha visto o ceifador na noite mais obscura de sua vida.
Após decidir guardar as suas memórias somente para si, uma parte dela perdeu sua luz, o único que acreditava na menina era seu irmão, Brendan, que tinha presenciado toda cena ao seu lado. Tempos mais tarde se alocaram em um orfanato até que encontrassem algum parente próximo, porém os maus-tratos sofridos deixaram marcas cravadas na pele e coração da garota, todas as vezes que buscava fugir daquele lugar horrendo que a obrigava a se afastar de seu irmão. Ambos tiveram que morar com novas famílias até Adira encontrá-los.
Durante aqueles anos Celine perdeu uma parte importante de si. Ela não tinha mais a afeição pelas pessoas à sua volta, somente por seu irmão Brendan.
Ela não acreditava no amor, apenas em sofrimento e solidão, os sentimentos tornaram-se parte dela. Pelos menos era nisso que acreditava até conhecer ele.
O rosto jovial de Nathanael tomou as imagens, a primeira aparição do rapaz em sua vida, durante uma festa da faculdade. Celine estava sentada no parapeito da sacada suas pernas balançavam de acordo com o vento. A festa acontecia no andar de baixo, o som tomava a casa, pessoas bêbadas andavam atrás de si, algumas gargalhando, outras passavam mal.
Estava tão imersa em observar o céu noturno e a lua brilhante rodeada por estrelas que não percebeu a presença de outra pessoa ao seu lado.
— É lindo. — A voz cordial refletiu em sua mente, a assustando com a aproximação. Celine sentiu seu corpo vacilar, mas foi segurada por ele que a impediu de cair. Seus olhos se encontraram com os azuis mais profundos que já havia visto, Nathanael sorriu a ajudando a entrar. — Me desculpe por isso... — Falou incerto, desviando o olhar — não queria te assustar.
— Eu estava distraída demais! Não foi culpa sua. — Disse, recebendo a atenção dele que mordeu o lábio.
— Nathan! — O grito de Brendan a intrigou, ao ver o irmão se aproximar dos dois e passar os braços por cima do ombro dele. — Ah! Vejo que já conheceu minha irmã, Celine. — Exclamou.
Ele a olhou surpreso, porém um brilho refletiu em seus olhos, alargando seu sorriso.
Morrígan revirou os olhos com a lembrança estalando os dedos, a cena do acidente tomou a visão de Celine endurecendo seu coração ao ver a figura do irmão ensanguentado em seus braços. Observando novamente o ceifador ao fundo com os olhos cravados nos dois, mas ele não riscou algo em sua prancheta como da última vez, como havia feito com seus pais. Sumindo pela escuridão.
As lembranças projetaram Nathanael no enterro de Brendan, o olhar abatido e rosto pálido, os arranhões marcados em seu rosto e o braço engessado retorcendo o peito de Celine que fechou as mãos em punhos.
— Não há mais nada para você em Tellus, Celine, mas apenas você pode me dizer se deseja ser minha sucessora. Você tem o dom, está mais do que evidente a sua conexão com o ceifador e ele está aqui. — A informação piscou em sua mente encarando Morrígan.
— Ele está aqui? — Perguntou cautelosa.
— Sim, você já o conheceu. — Manifestou a deixando mais intrigada. — Azrael. — Morrígan chamou o homem que se aproximou lentamente fixando o olhar em Celine. — Mostre sua verdadeira forma.
O rapaz ergueu os braços, as sombras abraçaram seu corpo, o ocultando em meio a escuridão. Asas negras cresceram tocando o chão, seu corpo agora estava coberto por símbolos, com os nomes de cada pessoa que a morte havia levado cravado em sua pele. A caveira estava alojada em seu peito nu. Espinhos rodeavam seus braços, subindo do cotovelo aos ombros, os cabelos castanhos tornaram-se pretos chegando quase ao seu quadril com o chifre recoberto pela capa que escondia seu rosto e os olhos escarlate.
— Ele é meu braço direito em Damnato. — Morrígan comentou — mas não se mostra como o anjo da morte, apenas quando necessário, foi Azrael que me disse sobre seu dom Celine. — Ela encarou o ceifador que a olhava profundamente. Line o fitou, reconhecendo-o.
— A sua história já está traçada minha criança. — A protetora declamou — agora cabe a você decidir se deseja ou não fazer parte disso.
Por um momento Celine teve medo, a ideia lhe apavorou, estava predestinada a se tornar alguém tão importante como a própria rainha da morte? Contudo ela estava sozinha, não tinha mais ninguém em sua vida, estava à mercê da solidão.
— Eu aceito. — Afirmou decidida, seguiria o seu destino. Morrígan sorriu satisfeita.
— Azrael, inicie a reunião com os guardiões, daremos início a nossa transição. — Falou firme, o anjo acenou sumindo pelas sombras. — Você verá querida, o fim é uma benção, morrer te dá tamanho é apenas o topo da montanha onde toda a vida finalmente se tornará visível. O Reino das Almas Perdidas completará você. — Segurou as mãos dela, sorrindo graciosamente.
No fundo Celine esperava que Morrígan estivesse certa e que não se arrependesse de tomar tal decisão. Faria isso por Brendan e todas as pessoas que haviam sido levadas de sua vida.
✶⊶⊷⊶⊷❍⊶⊷⊶⊷✶
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