FIM - PARTE II
ADEUS
Liza
Inspirei o ar fresco do Penhasco. O aroma das flores. De terra.
Ouvi o som das cachoeiras e expirei.
No momento em que espalmei as mãos na grama, engasguei e paralisei.
Senti os braços quentes de Nathaniel me acariciando. Escutei sua voz me chamando no fundo, mas fui incapaz de responder.
A cabeça latejou de maneira dolorosa. Como se minha consciência lutasse para puxar uma cortina negra que encobria tudo o que eu precisava saber.
Senti um nó no peito. Engasguei de novo.
Meu corpo sofreu de tremores contidos no início, seguido de amplos movimentos, incontroláveis e angustiados.
E a memória se manifestou de maneira brutal. Quase uma violação.
Flashes e mais flashes passaram em ritmo acelerado por meus olhos. Imagens de vinte e um anos que haviam sido esquecidas.
A realidade ia se afundando em mim, me ancorando no fundo.
As lembranças margearam as paredes da minha consciência escura e ganharam nitidez. Ondas e mais ondas de visões picotadas se encontraram e os fragmentos se uniram, como peças de um quebra cabeça. As recordações se afundaram, todas ao mesmo tempo, criando um panorama sólido. Contive um espasmo e estremeci. Os braços de Nathaniel me apertaram com mais força. Ouvi sua voz suave repetir meu nome, mas estava sem voz.
Porque lembrei. De tudo. Eu sabia. Agora, eu sabia.
Meus pais. O cemitério. Delegado Machado. A profecia. Meu amor por Nate.
O muro de vidro retentor de minhas lembranças se estilhaçou e elas vazaram de volta.
Madame Nadja estava certa ano passado: junto de seu amor, caminha a morte.
Pelo menos eu teria minha última chance de ser feliz antes de me despedir. Os tremores passaram. Respirei fundo. Eu o sentia a centímetros do meu rosto.
Se não tivesse que dizer adeus, teria entrado em euforia. Mas aquele seria o nosso reencontro e, ao mesmo tempo, nosso adeus.
Ergui as pálpebras e meu corpo pareceu se encher de luz ao fitar aquelas esmeraldas. Ele sorriu, me observava de muito perto. Os batimentos aceleraram. Estiquei as mãos e toquei seus cabelos negros, passeei com os dedos por sua pele branca e sedosa. Deslizei as mãos em seu rosto na tentativa de imprimir seu toque, seu cheiro, seu olhar tenro.
Nunca, nada nem ninguém, poderia tirar isso de mim.
Memorizei cada expressão, cada músculo, cada palavra oculta em seu olhar intenso.
Nate preencheu cada espaço vazio em mim com seu calor inebriante ameaçando me devorar.
Lágrimas de felicidade escorreram por minha bochecha.
Ele fechou os olhos por um breve segundo e os abriu de novo. Cada célula do meu ser o desejava. Chegava a machucar. Como se saciar essa saudade fosse uma angústia que jamais chegaria ao fim.
Nate arfava e me encarava como se temesse que eu desaparecesse ao desviar os olhos. Como se ainda tentasse se convencer de que não era um sonho.
Ele segurou meu rosto com as duas mãos e enxugou minhas lágrimas com os polegares. Meu peito inflou e esvaziou. Dizer adeus parecia impossível agora que eu recordava.
— Oi, Liz — sua voz me atingiu como uma brisa do vento e essas duas palavras, me disseram tudo o que eu precisava saber, tudo o que eu ansiava. Nelas, todo o meu mundo se encaixou. Ele sorriu ao fitar o cordão com as asas de anjo que eu nunca tirava.
— Oi — sussurrei de volta me perdendo em seu olhar intenso, que me puxava como um ímã. Coloquei minha mão sobre a dele, fechei os olhos e respirei fundo, incapaz de resistir à certeza que me assolava: pela primeira vez, depois de muito tempo, eu estava em casa. E logo, logo, eu teria que partir, para sempre.
— Seus olhos, Liz. O que aconteceu com seus olhos?
A resposta subiu na garganta, e sem refletir sobre o que fazia, solucei em seus braços:
— Eu matei meu irmão, Nate. Na praia. Naquele ritual da lua de sangue.
— Shhh. Calma. Como assim, irmão? Me conte o que aconteceu.
Ele afagou meus cabelos. O conforto de seus braços, seu perfume e seu carinho faziam tudo desmoronar.
— Encontrei um diário antigo de minha mãe, Nate. Eu não sou quem você pensa. Não sou o que você pensa. Ela... foi possuída no ano em que engravidou de mim. E deu a luz a trigêmeos. Eu, Noah, e Ethan. E eu o matei, Nate. Minha alma foi corrompida. Nunca irei superar essa culpa. Eu...sou...eu sou...
— Shhh, calma. Me escuta, Liza. Estamos juntos agora, e não vamos nos desesperar. Olha pra mim — ele me soltou do abraço e segurou meu rosto. — Nós já chegamos até aqui. Passamos por um milhão de coisas, e eu faria tudo de novo, entendeu? Derrotaria o inferno inteiro se fosse preciso. Mas eu nunca, nunca, vou desistir de você. De nós dois. Vamos enfrentar isso juntos. Custe o que custar, ficaremos bem, confie em mim. Aprendi muitas coisas no Templo, não sou mais um anjo perdido, e sei o que preciso fazer para salvar você.
Ele voltou a me abraçar e eu me calei. Porque eu não podia mentir, como também seria incapaz de magoá-lo. Nate morreria por mim se fosse preciso, mas ele não ouviu a previsão na Casa do Mago. E mesmo se tivesse escutado, não aceitaria que era eu quem precisava morrer para salvá-lo.
— Tira essa ideia da cabeça, Liz. Você não vai pular.
Eu sabia que ele já teria visto a essa altura, de alguma maneira, ele era o único que conseguia ver por dentro de mim, mas não discuti. Eu daria um jeito de salvá-lo a qualquer custo.
— Eu sou um erro, Nate.
— Você é a minha escolha mais certa.
— Coisas ruins acontecem com todos que se aproximam de mim.
— Nada pode me ferir mais do que a sua ausência. Já passei por isso uma vez. Não me condene outra vez a esse sofrimento.
— Mas eu sou um erro.
Nate meneou a cabeça em negativa:
— Você é a certeza de que viver vale a pena.
Suspirei e encarei a grama. Eu queria tanto poder ficar. Mergulhar naquele sorriso de canto de boca e me perder em seus braços. Mas no momento em que o terceiro V surgisse em meu pulso a contagem regressiva iniciaria. E eu me transformaria em algo cruel.
Nervosa, passei as mãos pelo cabelo. No meio do percurso, Nate puxou minha mão e
naturalmente entrelaçou seus dedos nos meus.
Senti aquelas borbulhas de ondas do mar por toda a pele, era como dar um mergulho a noite em água morna. Criei coragem e ergui o rosto. Ele me fitou em silêncio por alguns segundos, e havia tantas mensagens explícitas naquele olhar que meu tronco enfraqueceu. Percebendo, ele colou seu corpo ao meu e deslizou por cima de mim, nos deitando debaixo da arvore. Seus cabelos fizeram cosquinha em meu rosto.
Me encontrei ali, abrigada no seu abraço, e me perdi. E me perderia de novo e de novo. Porque eu sabia que ele me traria de volta quantas vezes fosse preciso.
Nate beijou meu pescoço antes de sussurrar em meu ouvido:
— Se você é um erro, eu sou uma falha. Fica comigo. Vamos errar essa noite, apenas hoje. Amanhã eu acordarei, sabendo que você foi o meu erro mais certo.
Sem esperar resposta, Nate me devorou com seus lábios macios. Sua língua invadiu minha boca e engoliu meu gemido. Ele enterrou os dedos em minha nuca e com a outra mão me apertou pela cintura.
Seu corpo colado ao meu era a única coisa que comprovava que o momento acontecia de verdade. Foi como morrer e renascer a cada toque. Nos devoramos na ânsia de matar a saudade mas, ao mesmo tempo, fui dilacerada por dentro. Porque seria a última vez. Enquanto ele me beijava, eu ressurgia e morria em seguida pela despedida à espreita. Meus poros se arrepiaram. Cada centímetro da minha pele parecia vivo. Um calor abrasador se espalhou quando Nate desceu os lábios por meu queixo, pescoço, clavícula e seguiu pelos botões da minha blusa. Depois de abrir o último botão, ele ergueu o rosto e me encarou profundamente com as esmeraldas:
— Quero amar você, Miosótis. Vai ficar aqui comigo essa noite? Promete pra mim?
Assenti, porque fui incapaz de falar com os sentimentos avassaladores que seu olhar me despertava. Com Nate eu estava viva. Livre. Amada. Mas era uma ilusão. Eu sabia. Era um sonho que em breve acabaria. Mas decidi aproveitar os últimos instantes. Deixei tudo para trás e senti como se o tempo estivesse suspenso.
A língua de Nate se moveu com a minha e puxei sua camisa por cima da cabeça. Ele se livrou do tecido e admirei seu peito e abdômen bem desenhados. Nate refez o caminho por meu queixo e pescoço deixando uma trilha de beijos em meus seios e barriga até chegar a calça jeans.
Entrei em estado febril enquanto ele sussurrava meu nome entre os beijos.
Delicadamente ele tirou seu jeans e o meu, e voltou a me beijar. O contato quente de sua pele com a minha me inundou de uma certeza inexplicável. Amá-lo era tão certo e necessário quanto respirar.
Enterrei os dedos em seus cabelos negros e sedosos. Nate mordeu meu lábio suavemente e parou o rosto diante do meu:
— Tem certeza disso, Liz?
— Eu te amo, Nate.
Ele exibiu o sorriso perfeito e meu coração se encheu de dor e de amor:
— Amo você, Liza. Mais do que sou capaz de explicar.
Nate nos livrou do restante do tecido que nos cobria e seu corpo se fundiu ao meu. Vi milhares de cores explodindo. Acariciei suas costas e entreguei minha alma a ele. Me perdi nos sentimentos devastadores. Fui consumida pela paixão que fazia meu coração bater acelerado. Eu sentia meus batimentos e os dele em nossa pele. Nate espalhava um bálsamo quente por meus poros, exalava sua aura pura para mim.
Enquanto nos uníamos, senti como se meu corpo flutuasse. A brisa suave do Penhasco embalava nossos movimentos. O som das cachoeiras era nossa música. O perfume de Nate misturado ao suor e o sabor de sua boca me deram a certeza de que, em nenhum outro momento da minha vida, fui mais completa do que naquele.
Enfim, eu estava em mim, porque estávamos juntos.
Nate avaliou minha expressão quando parou. O rosto rosado, a testa suada e a paixão estampada no sorriso.
— Você está bem?
— Muito melhor do que isso.
Ele riu e me beijou na bochecha.
Ficamos deitados um de frente para o outro, debaixo do céu estrelado do Penhasco. Suas mãos passeavam por minhas costas, espalhando arrepios.
Passamos minutos vivendo um sonho, desfrutando da ilusão de um final feliz, até eu sentir a pele do pulso começar a se rasgar.
Foi então que me dei conta. Passei esse tempo todo tentando recuperar minha vida, e assim que a consegui de volta, ela acabou.
Tentei disfarçar o que acontecia, mas Nate interrompeu a carícia e apertou meu braço.
— O que foi, Liza?
— Nada.
Levantei apressada e me vesti. Ele fez o mesmo.
— Você não vai fazer isso. Eu não vou deixar.
Corri até a beirada do Penhasco, tirei o pequeno punhal do bolso e ele me alcançou.
— Liza, não!
Nate me puxou pela barriga me distanciando do abismo e me virou. Ele arregalou os olhos ao ver que eu apertava o punhal contra a garganta. Um filete de sangue escorreu.
Capítulo 119 - Abismos
Liza
— Larga isso, Liza! Larga!
Suas esmeraldas transbordavam dor quando ele recuou. Eu vi o inferno nos olhos de Nate naquele momento. Ele só não sabia que eu estava no purgatório também. Nate ameaçou se mover e enterrei mais a lâmina no pescoço, isso fez ele parar.
— Não posso, Nate. Espero que um dia compreenda.
— Você está desistindo! De si mesma, de mim, de nós! E sua irmã!?
— Por favor, olhe pela Raquel.
— Não! Porque você vai ficar. O que aconteceu, Liza? Por que perdeu a razão!?
— Não tenho outra saída.
Perdi a força para conter as lágrimas e deixei que caíssem livremente por meu rosto.
— Se você se cortar ou pular, irei atrás de você. Não adianta, Liza.
— Nós dois sabemos que isso não é possível. Como meio anjo, não pode pular, nem se matar.
— Chega. Não vou mais conversar com você. Vou te tirar daqui nem que seja por mal, até você voltar a pensar normalmente.
Nate ergueu as mãos para mim, e deduzi que tivesse tentado me lançar algum encanto. Claro que não deu certo. Ele arregalou os olhos e me fitou desesperado.
— Não vai funcionar, Nate. Porque eu sou uma alma negra. Eu, Noah e Ethan somos filhos de Ivanka. Entende, agora? Estou condenada. E condeno a todos se ficar aqui.
— Na...não importa! Confia em mim, Liza. Há uma saída. Naquele pergaminho, ao lado da espada debaixo da árvore, estão as tarefas que preciso realizar. Por que quer tanto desistir? Sem você aqui, não terei forças para seguir em frente. Se prosseguir com isso, estará me levando junto!
Nate deu um passo à frente para se aproximar de mim e eu recuei até quase escorregar da beirada. Ele ergueu as mãos como quem se rende:
— Espera, Liza. E se... e se...
Ele não conseguiu completar a frase. Vê-lo perdido daquela forma já estava me matando.
— Me deixa pelo menos tentar, Liz. Me dá um dia pra te provar que é possível. Vamos comigo pro Templo. Nada pode nos atingir lá. Enquanto estivermos entre as colunas de pedra, o mal não pode entrar.
— Eu sou poluída, Nate. Não serei bem vinda no Templo. E, pelo que você já me contou do Penhasco, a qualquer minuto serei expulsa daqui, agora que a transformação está completa.
— Você não está sozinha, Liza!
— Mas minha escolha não pode vir acompanhada.
Nate me olhou insuportavelmente triste, desesperado. Meus joelhos tremeram. Nathaniel me corrigiu. Abandonar a intimidade talvez facilitasse aquilo para mim. Tentei me convencer dessa mentira mas foi impossível. Seria como arrancar meu coração do próprio peito.
— De um jeito ou de outro, sua escolha vai matar nós dois, Liza. Então fique e lute comigo.
— Não posso te proteger de mim. Se eu ficar, você morre, e não correrei esse risco.
— Olha pra mim. Sua decisão já me destruiu. Se era isso que queria evitar, falhou. Foi tudo em vão?! Tudo uma mentira?! Por que fez amor comigo? Por que disse que me amava? Por quê, Liza?! Foi pra isso que seus pais morreram?
— Nate, eu...
— Não! Se me ama de verdade, prove agora. Porque quem ama não desiste!
Sua expressão furiosa, somada às palavras cortantes que ele escolheu e à entonação fria, me feriram mais do que qualquer queda seria capaz. Mas eu sabia onde ele queria chegar com aquilo. E não podia desistir. Se eu voltasse atrás, tudo estaria perdido:
— Não é pra isso que amamos? Para salvar?
Nate meneou a cabeça para os lados, com o cenho franzido e os punhos cerrados ao lado do corpo. O peito subia e descendo com força. De repente ele me fitou sério, como se me enxergasse por dentro e estremeci ao ouvir sua voz em meus pensamentos:
Você está desistindo, Liza.
De tudo. De você. De sua irmã.
De nós. De mim.
Se pular, eu também caio.
Centenas de imagens invadiram minha mente. Ele estava manipulando minha memória. Mostrando nossos momentos juntos.
Eu não posso existir onde você não está, Liza.
Lembranças de meus pais, Raquel, de minha infância, da adolescência e de nós dois no Penhasco, me invadiram de forma dolorosa. Precisei conter o desejo de gritar.
Não vá aonde eu não possa te seguir.
A cada memória, meu peito ardia. O coração batia alucinado. Os olhos e a garganta queimavam pelas lágrimas.
Não faz isso comigo. Acabei de ter você de volta.
Flashes de nosso reencontro minutos atrás apareceram, nossa cena de amor invadiu cada fibra do meu corpo. Foi doloroso saber que era a hora do adeus definitivo.
Fique, Ágape. Seja forte ao meu lado.
Desci as pálpebras e expulsei as visões antes que eu desistisse.
Eu te amo, Nate. Tanto que escolho a morte por você.
Naquele segundo quis correr para seus braços. Secar as lágrimas silenciosas que caíam por seu rosto, livrá-lo daquele semblante de dor. Ele insistiu em meus pensamentos:
Quando o amor é verdadeiro, chega tornando realidade aquilo que parecia impossível. Fique.
A voz de Nate me invadia como uma carícia, e ao mesmo tempo, como um martírio.
Quase me permiti ter esperança, mas ouvi a fala de Noah em seguida, um lembrete do que nos aguardava: "...ambas as almas não podem coexistir. O negro sempre absorverá aquele de luz."
Incapaz de suportar mais um segundo daquela dor, e por saber que se eu adiasse mais um segundo da despedida voltaria atrás, larguei o punhal, abri os braços e me deixei cair de costas do Penhasco. Infelizmente, tive tempo de olhar Nate uma última vez. Ele caiu de joelhos na beira do abismo e olhou para baixo, atormentado como jamais imaginei que o veria, e gritou para mim:
— Você matou nós dois!
♦♦♦
Nathaniel
Pulei atrás dela. O peito batia rápido. O medo de não alcançá-la a tempo me corroía feito veneno. Abri os braços e senti a força do vento enquanto caía. Sequer respirei naqueles segundos. Eu tinha que conseguir. Ia funcionar. Ia funcionar.
Liza caía metros à minha frente. Se distanciava cada vez mais. A própria gravidade trabalhava contra nós dois. Impulsionei o corpo para frente. Eu a salvaria. Eu conseguiria.
Porque se não o fizesse, se não o fizesse... estaria morto.
Como pude?
Deixei-a escorregar por meus dedos. Deixei-a escapar, deixei— a fugir por não acreditar que existia salvação.
Liza não compreendia. Essa escolha não me protegia de nada. Apenas me jogava em uma eterna queda. Um abismo profundo e escuro de onde eu nunca mais sairia.
Se eu não a alcançasse...
Engasguei ao vê-la ganhar distância.
Meu corpo parou de se mover no meio do trajeto.
O vento perdeu força.
— Nãooooo!
Fui empurrado de volta para o Penhasco, como se tivesse batido em uma parede invisível. Caí de costas na grama.
— Não!
Levantei correndo, desesperado para pular de novo. Liza podia estar encontrando o mar naquele momento. A simples ideia fez a garganta queimar como ácido.
Senti que era rasgado de dentro para fora, quando outra dor se manifestou. As pernas enfraqueceram e tombei na grama.
— Lizaaaaa!!!
Enterrei o rosto nas mãos e a dor se triplicou. Respirei freneticamente, sufocado pelo pânico. Enquanto meu peito se afundava pela perda, as costas se dilaceravam como se libertassem alguma coisa.
Ouvi meus ossos estalando. Senti a pele rasgar. O sangue escorreu pelo tecido que também se rompia e, depois de alguns segundos, um súbito alívio quando a dor chegou ao fim.
Levantei estranhando o peso nas costas. Olhei para o lado e vi as penas. Chegavam a ofuscar de tão brancas. Translúcidas. Asas. Enormes. Sacudi a cabeça e fitei o abismo que me encarava de volta. Zombava de mim, porque eu nunca chegaria lá embaixo. Porque fui incapaz de salvá-la.
Ouvi as ondas quebrando ruidosamente nas rochas e urrei de dor.
Liza caiu. Se foi. Para sempre. E eu não podia morrer. Não podia cair. Fui condenado à vida eterna.
Gritei para o Penhasco, liberando ruínas de dor, de ódio, de descrença.
Seria a última vez que eu iria ali. No lugar maldito. Onde tudo começou. Onde tudo acabou.
De que me adiantam essas asas!? De que me adianta ser um anjo!? Eu renego esse dom! Recuso esses poderes!
As águas das cachoeiras pararam de cair. Ao menos as Irinis, os espíritos das águas concordavam comigo já que, por serem puras, não podiam curar injustiças e escolheram partir.
Andei até debaixo da árvore e evitei olhar o lugar onde instantes atrás nos unimos.
A certeza do que havia acabado de acontecer ainda se instalava em mim, como uma doença da qual eu jamais me curaria.
E eu não queria acreditar. Não podia. Estava oco. Dormente. Acabado. Mas a verdade me puxava como uma pedra para o fundo do mar. Ela se foi. E eu fiquei.
Segurei o pergaminho e a espada do sacramento. De nada me serviria, se desse sorte, talvez conseguisse me perfurar com a lâmina.
Sabia apenas que desse dia em diante, viveria como um humano na sarjeta, até encontrar uma forma de morrer.
Concentrei-me em guardar as asas de volta nas costas.
Essa seria a primeira e única vez em que as veria.
Suspirei e deixei o Penhasco.
Para sempre.
♦♦♦
Raquel
O nome do lugar onde seu pai encontrou a mulher estava tatuado nos pensamentos.
— Orfanato Santos Anjos. — ordenou ao taxista assim que deixou o aeroporto em Nova Iorque.
De acordo com o diário de sua mãe, foi lá onde viu a ruiva pela última vez. Raquel não sabia exatamente como agiria. Mas era sua única pista. E estava habituada a conseguir o que queria. De um jeito ou de outro, desvendaria essa história. Perguntaria diretamente àquela que a abandonou quando pequena, sua mãe biológica.
Evitava pensar ou tentar trazer significados maiores aos conhecimentos recém adquiridos. Tinha medo de suas próprias conclusões. Mas havia uma constatação disso tudo, que era inevitável: Raquel, estava sozinha no mundo. A verdade a açoitava como um chicote nos ouvidos. Pela primeira vez, teve medo de ter conseguido o que tanto queria: sua liberdade.
Olhou as pessoas andando pelas calçadas, as luzes piscando nos letreiros das lojas. Todos pareciam normais, com vidas normais.
Quantos segredos será que as pessoas escondem por trás dos sorrisos?
De que adiantava estar livre em Nova Iorque, aprisionada pela luz projetada às mentiras?
Não se olhava no espelho desde a noite anterior. Usava ainda o mesmo vestido da festa de noivado. A noite no inferno. Presa sobre a fogueira. Seu noivo morto e apontado por assassinato. A expectativa da morte tão perto alterou algo dentro de Raquel. Como se o mundo ganhasse uma nova cor. Mas não era boa. Tudo parecia pulsar em tons de preto e vermelho. Nem a fome e o cansaço suplantavam sua indignação.
Estava revoltada por ter sido enganada. Abandonada. Traída. Por sua mãe e por Liza. Até na morte ela preferia a irmã mais velha. Raquel procurou avidamente por uma única palavra de sua mãe direcionada a ela, e não encontrou nenhuma. Era tudo, como sempre foi. Liza. Liza. Liza.
O taxista freou na porta do orfanato.
Raquel cruzou o portão, entrou na capela e não localizou ninguém. O lugar era pequeno. Invadiu diversos espaços sem permissão.
Uma sala com um quadro negro ao fundo. Um quarto com crianças dormindo. Bateu e fechou porta atrás de porta.
Cruzou um longo corredor escuro e freou ao ouvir as vozes:
— Finalmente, você vai morrer, freirinha. Preciso admitir. Gostei do corpo de seu filho. Parece forte. Vai durar bastante tempo. Ele está gritando aqui dentro, sabia?
Seu peito acelerou ao ouvir o prazer e a ameaça daquela voz masculina. Não podia acreditar no tamanho do seu azar. Tinha que chegar no orfanato justo quando alguém parecia prestes a morrer?
Em que momento, minha vida se transformou nesse inferno?
Uma mulher respondeu, soava como uma pessoa mais velha. Além de matar uma freira, o homem ainda era covarde ao ponto de ameaçar uma senhora.
Olhou em volta e não havia nada nem ninguém para ajudá-la. E não podia se arriscar para salvar uma estranha. Não agora, que estava tão perto da verdade.
Respirou pesadamente. Preparou-se para dar as costas e fugir quando bateu de frente com alguém. Teria gritado se a mulher não tivesse agido mais rápido. Foi imprensada contra a parede e teve a boca coberta. Raquel arregalou as órbitas ao ver a cor do cabelo da mulher que a mantinha presa. Vermelhos. Vivos.
— Não vou machucar você, Raquel. Temos muito o que conversar ainda. Agora, vou te soltar, mas preciso que seja boazinha e fique quietinha aqui esperando eu te chamar, entendeu?
Meneou um sim. Como a mulher sabia o seu nome?
Seria ela? A ruiva mencionada no diário? Sua mãe biológica?
Perdeu a fala. Não conseguia mais recordar das milhares de perguntas elaboradas. Era ela. Tinha que ser ela!
A mulher se esgueirou silenciosa como um felino pelo corredor até a sala e desapareceu ao entrar na porta de onde vinha a parca luz.
Raquel andou devagar, se aproximou o máximo que sua coragem permitiu, a fim de compreender qual desfecho se daria ao homem ameaçando a freira.
— Vou te dizer o que vai acontecer se não soltar a freira, Olaf. Em três segundos, envio você para o deserto, e te deixarei queimando dentro dos gêiseres repetidamente, vez atrás da outra, pela eternidade. O que acha da ideia?
— Não se meta, ela é minha!
— Não. De hoje em diante, Daiana ficará sob meus cuidados. Preciso dela para manter um certo anjinho por perto. Agora, suma!
Ouviu o silêncio pesar antes da resposta e prendeu o ar. Se deu conta que poderiam flagrá-la ali, bisbilhotando a conversa, mas era tarde.
Um homem passou correndo pela porta e, antes de deslizar pelo corredor, deteve-se por um segundo e encarou Raquel. Um calafrio gelado percorreu seu corpo quando ele alisou seu rosto. O estranho foi o toque lhe parecer familiar. Sem tempo para protestar, ele seguiu pelo corredor até sumir de vista.
Raquel levou as mãos ao peito e inspirou profundamente. A mulher botou o rosto para fora da sala e lhe deu uma piscadela:
— O que está esperando, filha? Venha, entre. Vou te apresentar sua madrinha. A propósito, me chamo Gaia.
♦♦♦
Liza
O olhar transtornado de Nate desapareceu e eu senti que minha alma já havia deixado o corpo antes de chegar ao fundo do abismo.
Virei o corpo de frente. A dor que me assolava por dizer adeus era insuportável.
O mar abaixo de mim era névoa.
Não havia mais ondas.
Eu não escutava o som da água.
O vento gelado secava as lágrimas nas minhas bochechas.
Um calafrio atravessou sem piedade cada estrutura do meu organismo, gelando dos fios de cabelo aos ossos.
E as vozes malditas retornaram, berrantes. Me arranharam os ouvidos.
Seria isso o que me aguardaria no final?
Centenas de almas negras rastejando e implorando por socorro?
As névoas se alastravam. Como as sombras dentro de mim.
Elas gritaram mais alto. Cobri os ouvidos inutilmente.
Com tantas vozes perdidas em agonia, não era possível distinguir um só pedido de socorro.
E quem escutaria o meu?
Mas será a morte algo tão ruim assim?
Será que encontrarei meus pais finalmente?
E se o fim for o marco de um novo começo?
As águas cristalinas jorrando furiosas da colina me atingiram com suas gotas frias.
No lugar do medo antes perfurando o estômago, agora havia uma certa quietude, uma calmaria. O mar pareceu concordar comigo, quando o som de suas ondas chegou novamente até mim de um jeito suave, quase preguiçoso.
Abri os braços ao lado do corpo e foi algo como flutuar.
Cerrei as pálpebras.
Soube que me aproximava. Meu coração disparou, o medo retornou em uma descarga elétrica mas não me agitei. Não ia adiantar de nada. Era tarde. Agora não tinha mais volta.
Não sabia o que havia lá embaixo do Penhasco.
Eu nunca consegui enxergar, nas poucas vezes que me inclinei corajosamente na beirada. Era alto demais.
Mas da maneira que as cachoeiras desciam, provavelmente formariam um círculo no meio. Talvez um lago. Talvez o mar.
Quem sabe terra?
Será que vai doer?
Será rápido?
Espero que sim.
Já li uma vez algo sobre a água se tornar uma superfície dura como asfalto, dependendo da altura da queda x peso.
Criei coragem e olhei para baixo.
Me permiti ter a última visão em vida. Pensei no último olhar de Nate. O purgatório, da cor de esmeraldas. Descobri o meu inferno essa noite ao lhe dar adeus. Nada poderia ser pior do que aquilo.
A esperança de descobrir o paraíso no mesmo dia me invadiu sem permissão. Mesmo ciente de que isso seria impossível sem ele ao meu lado.
Não, não encontraria meu paraíso. Na melhor das hipóteses, paz. Para ele e para mim.
No fim, não é esse o grande objetivo da vida?
Depois desses meses, passei a crer que a felicidade é superestimada. Muitos não percebem, a alegria só existe no contraste com a tristeza. Se alguém é feliz sempre, então não o será nunca. E o momento de felicidade que ele me proporcionou, valia por uma vida inteira.
Senti o destino se aproximando.
Seria agora.
Me preparei para a dor.
Me preparei para o fim.
Prendi o ar.
Fechei os olhos.
Acabou!
Mas não senti nada. Ergui as pálpebras.
Os olhos continuavam registrando imagens.
Não me preparei para isso.
Olhei ao redor.
A sensação de vazio me suspendeu e me deixou ali, pendurada na sensação de inconclusão.
Não acreditei.
E se morrer não for o fim?
FIM...
a última postagem será o Epílogo.
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Amoressssss, chegamos ao fim de O Templo. Espero que tenham gostado, e espero revê-los no livro 3, já estou trabalhando na história que marcará o desfecho da trilogia.
Convido vocês a seguir meu perfil para receber as notificações de novas histórias. Dia 28/06 estreia meu mais novo livro (picante) aqui no Wattpad. =)
Beijossss e até o Epílogo - Postagem amanhã
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