ECLIPSE
ECLIPSE
Liza
A sensação de alguém muito próximo desapareceu. Talvez fosse medo. E o sentimento cresceu quando olhei em volta.
Pensei que estivesse atrasada, mas aparentemente cheguei antes, inclusive dos noivos. O amplo espaço quadrado da tenda estava vazio.
As areias brancas da praia se estendiam no horizonte, essa praia era a mais próxima da cidade, dali se podia ver as pequenas luzes dos poucos prédios, casas e lojas.
Busquei Amanda com o olhar dentro da tenda, observei os tecidos brancos esvoaçando e admirei as tulipas amarelas adornadas com pérolas que desciam em correntes entre as hastes de madeira. Sobre as mesas cobertas de linho branco, enormes conchas envoltas em pedrinhas brilhantes conferiam o aspecto romântico à tenda. E, entre uma mesa e outra, diversos pufes e almofadas bran- cas e marfim se espalhavam para deixar o local aconchegante.
Mas a atmosfera era de puro abandono.
Sobressaltei-me ao sentir um abraço à minha volta. No segundo em que me distraí com a decoração da festa de noivado, fui arrebatada pelo toque en- volvente de Nathaniel.
A brisa fria do mar gelou minhas bochechas e essas esquentaram quan- do ele encaixou seu rosto na curva do meu pescoço e cruzou as mãos na frente do meu corpo.
Apesar daquilo ser facilmente contestado pela física, cada milímetro de sua presença era nítida a mim, mesmo estando ele invisível aos meus olhos, eu tinha certeza. Era ele.
— Por que não me deixa ver você, Nathaniel?
Murmurei enquanto fitava o mar a frente. A ânsia me fez acreditar que escutaria sua voz me responder. No lugar disso, seus braços apertaram meu corpo com mais força e alguma coisa macia roçou minha nuca. Imaginei que fossem seus lábios.
Completamente arrepiada, me deixei ficar ali, na entrada da tenda, acolhida em seu toque tenro que apesar de invisível, ainda seria o melhor sentimento de meus dias, dentro de tudo que sou capaz de me recordar.
Conforme a noite descia, as lâmpadas amareladas dentro dos cachepots de palha trançada ao redor ganhavam força nos deixando na penumbra. Ainda que protegida de meus próprios pensamentos sob a aura de Nathaniel, não pude impedir o medo de vir à tona.
Afinal, Noah poderia estar por perto. Busquei uma razão para ter me libertado mas não encontrei.
Por que ele o faria? Corri novamente os olhos pela tenda. Ninguém ali além de mim. Onde estavam os noivos e seus convidados?
Tremi ao cogitar a possibilidade de Noah encurralar Ben e Amanda.
◆◆◆
Nathaniel
A saudade berrava em meus ouvidos. Me torturava como milhares de vozes gritando somente um nome. Mas, apesar dos gritos, havia um silêncio terrivelmente vazio em mim, provocado pela falta. A angústia de perceber o que nos rondava. Poderia o destino ser tão cruel assim? Nos colocar lado a lado após tanto esperar, somente para lhe dizer adeus? Envolvi Liza em meus braços e fui inebriado com seu perfume.
Havia tanto a pensar, tanto a dizer. Mas naquele momento me encontrava incapaz de qualquer coisa que não fosse manter o seu corpo junto do meu, e também não poderia aparecer para ela. Ainda não. Não ali.
Ao mesmo tempo em que me embriagava das sensações inebriantes de tê-la perto, li as ruínas de Liza. As expressões deixadas por sua alma pairavam no ar, para qualquer um capaz de ler. Essa informação me deixou ainda mais tenso. Ela era humana. Não deveria ter ruínas. No entanto lá estavam. E Liza não deveria ser capaz de muitas das coisas que observei a distância.
Como manipula o fogo da mesma maneira que eu?
Por que almas negras a perseguem?
Mergulhei nas nuances rosadas de suas ruínas tremeluzindo a minha frente e vi tudo que lhe aconteceu. A alma a atormentando no ônibus, Noah, o homem idêntico a Ethan no cemitério, a senhora de lábios e olhos costurados...
Acariciei sua costela ao ver o que o desgraçado lhe fez. Mais uma vez detestei Adrian com cada fibra do meu ser. Graças a ele, Liza veio sozinha para Winterhill. Exposta e vulnerável ao mal a espreitando.
— Você não está mais sozinha, Liz — afastei seu cabelo para beijar sua nuca e falei baixo em seu ouvido — Irei proteger você.
— Corrigindo, você irá tentar — a voz de Olaf serpenteou ao meu lado.
Suspeitei desde o início que o encontraria por ali. Mas dessa vez, estava preparado.
◆◆◆
Liza
Com a proteção de Nathaniel, me permiti ser hipnotizada pela visão à frente.
Apaguei as interrogações quanto aos convidados e os noivos ainda ausentes e assisti ao anoitecer.
Não se tratava de uma simples troca de posições entre o sol e a lua. Foi
místico.
As poucas estrelas reluzindo em azul de súbito se apagaram e tudo escu- receu. As luzes amareladas dos cachepots se extinguiram, as tochas na entrada da tenda sumiram. Mas não tive tempo para me assustar.
O vento, agora quente, assobiava como um canto chamando por um furacão. A tenda reverberou com o som.
O horizonte, após alguns instantes, transbordava pequenos fios iluminados de rosa e roxo, como se antecipando o amanhecer. Projetavam no ambiente o tom de sépia e especulação. Aguardei ansiosa enquanto imaginava a transfor- mação seguinte no céu.
Milhares de cores foram refletidas no mar no tempo em que o sol e a lua, brigaram para ocupar seu espaço.
E assim eu vi o dia e a noite, naquela tarde.
O sol e a lua se aproximavam e havia uma ânsia crescente. Fantasiei ao observar que agiam como dois amantes o fariam, na pressa de sentir o abraço capaz de curar as feridas da saudade.
Se encontraram então, e já não era noite, nem dia. Nem quente, nem frio.
A lua cheia cobriu o sol, que iluminava o seu contorno lhe conferindo uma aura dourada em finos fios de luz. Acontecia o eclipse.
O curto momento de sua união, foi rosa, dourado e azul escuro salpica- do de brilhantes, quando as estrelas retornaram para contemplar.
O brilho do sol por trás da lua oculta, como fogo tremeluzindo, me fez pensar em almas gêmeas separadas, como se a estrela e o satélite fossem força- dos a viver em opostos, se encontrando no eclipse, uma vez a cada dezenas ou centenas de anos.
O sol, nitidamente contra sua vontade, descia lentamente e voltava a seu lado oposto, me deixando no breu. A lua, magoada com a despedida e com sua próxima espera, se tornou vermelha como o sangue, e banhou as nuvens com suas lágrimas de miríades de saudade.
As nuvens trazidas pelo vento cobriram o céu e vieram pintadas de vermelho. E assim imaginei, seriam elas as suas lágrimas de despedida.
E na tarde primeiro laranja, depois roxa durante o pôr do sol, o tempo ficou suspenso.
A lua brilhou vermelha no horizonte negro, majestosa. O fascínio me atingiu ao fitar seu enorme globo de tão perto, nunca imaginei que veria a lua tão grande.
Somente após alguns minutos a observando com o olhar parado, notei a enseada completamente no escuro. Não haviam mais as luzes acesas dos pré- dios, das casas e dos estabelecimentos.
Teria sido um apagão?
O medo me atingiu de volta como um banho de água fria. Eu estava sozi- nha em uma festa com convidados desaparecidos e a única luz do ambiente tinha a cor vermelha. A luz da lua de sangue que flutuava sobre o mar à minha frente.
O paz do silêncio deu lugar a algo terrível e cada ruído diferente do vento e das ondas me fazia retesar o corpo em puro terror.
Dei as costas para a Lua ao decidir ir embora. Iria refazer o caminho en- tre as tábuas de madeira. Ligaria para Ben e Amanda durante o trajeto que seria forçada a fazer a pé. Demoraria muito até um táxi chegar e eu não continuaria ali sozinha.
De relance, vi alguém de pé ao meu lado e me virei sem uma gota de coragem. O rosto de Noah invadiu imediatamente meus pensamentos.
Completei o movimento e algo me esquentou do frio. Veio emanado até mim.
Aguardei a vista se adaptar ao breu e me sobressaltei. Arquejei ao vê-lo.
Duas íris esmeraldas me observavam no escuro.
Ele sorriu, pude perceber pela primeira vez seu rosto de verdade. Minha reação foi involuntária, estiquei a mão para tocá-lo mas em um mísero segundo ele desapareceu, largando no ar o seu sussurro.
— Você é minha, Liz. E eu sou seu. Nada e ninguém, pode mudar isso. Quem tentar, que esteja disposto a pagar o preço.
Pude sentir seu hálito quente junto de suas palavras.
Ainda em transe, fui pega pela realidade de um jeito brusco, ao ser sa- cudida pelos cotovelos por alguém em desespero:
— Liza, me ajuda! Não consigo encontrar a Amanda!
◆◆◆
Nathaniel
Segui Ben e Liza pela praia. Ela tinha os olhos abertos e fixos em algu- ma ideia que a consternava.
Ben andava a passos largos apesar da areia atrasando seus movimentos. A lanterna que segurava era fraca, sua luz era apenas o suficiente para não tropeçarem.
Apenas a vermelhidão da lua sangrenta se refletia na areia esbranquiçada.
Investiguei a área mas não localizei nada. A presença que me alertava do perigo não vinha de Olaf no momento. Vinha de algo oculto sob meu olhar e, se possível, muito pior do que eu imaginava.
Liza parecia cansada mas não vacilava. Sua expressão era determinada, apesar do medo que eu sentia corroendo seus ossos.
Andamos em torno de dois quilômetros até Liza estacar inesperadamente. Bastou acompanhar a direção de seu olhar e descobrir o motivo. Arregalei os olhos.
◆◆◆
Liza
Acho que prendi a respiração todo o tempo da caminhada. Não tive co- ragem de dizer a Ben que não era uma boa ideia vasculharmos sozinhos a praia, porque existia uma grande chance de não encontrarmos nada. Ele sofria visivel- mente e eu estava aterrorizada. Não quis refletir sobre onde estaria Amanda e qual seria seu destino, doía demais pensar nisso.
Tentei estabelecer conexões entre Noah e o acontecido do cemitério, mas a cada especulação criada, mais a verdade me parecia distante.
Chegamos a uma enorme pedra barrando o caminho para o outro lado da enseada e meus pés frearam, não sei se pelo obstáculo ou pelo que significa- ria aquela luz vindo de trás.
O cheiro de óleo queimado impregnou meu nariz como um alerta, e a luz seguida da fumaça por trás do pedregulho, confirmou meu temor.
Ben se precipitou para escalar a pedra, hesitei um segundo antes de se- gui-lo. Tirei o sapato e apoiei desajeitada as mãos sobre a pedra. Dobrei a perna e tomei impulso para subir.
No movimento, a palma de minha mão se rasgou com algo pontiagudo. O sangue quente escorreu até meu antebraço e o corte latejou. Ouvindo meu resmungo, Ben voltou e me puxou pelo braço. Continuei a subida e paramos na parte mais plana da enorme pedra para recuperar o fôlego antes de descer e chegar até o outro lado da praia.
E foi nessa hora.
O que vimos dali de cima era perturbador. A pouca comida do almoço ainda não digerida pareceu ganhar vida e se contorceu.
Poucos metros nos separavam da cena. Não seria possível discernir ros- tos dali, mas nós dois soubemos. Ben de repente passou o braço de lado em minha cintura. Não sei se para me confortar ou para sustentar a si próprio. De qualquer maneira, ambos soubemos.
Amanda estava entre as chamas.
◆◆◆
238
Carine Raposo
Nathaniel
Segurei a mão cortada de Liza e a elevei próxima de meu rosto. Ela vi- rou em minha direção e abriu um sorriso fraco. Mesmo em meio a todo o caos, sentia-se feliz de me ter por perto.
Se as circunstâncias fossem outras, teria me tornado visível ao seu olhar e a levaria embora dali. Deixaria tudo para trás.
Mas havia pessoas em risco, vidas inocentes e eu iria ajudá-los.
Forcei uma lágrima a descer por meus olhos e a passei delicadamente sobre o corte na palma de sua mão. Liza franziu o cenho confusa ao ver a ferida cicatrizar. Após o corte se fechar, me buscou novamente com o olhar e abriu a boca para dizer alguma coisa, mas a impedi:
— Confie em mim — pedi da maneira que somente ela escutaria, não demorou muito para assentir.
Ben pareceu ter renovado a coragem e deitou-se sobre a pedra para des- cer de costas:
— Liza, vou descer primeiro e seguro você lá embaixo.
A observei muda, ela assentiu mais uma vez. Parecia ter perdido a voz. Imitando Ben, Liza deitou-se de costas para começar a descer. Me preci-
pitei atrás dela e a desci facilmente, fazendo Ben acreditar que ela o fez sozinha. Ouvi seu murmúrio quando seus pés tocaram a areia. Provavelmente
causado pelo que teria de enfrentar a seguir.
Estávamos muito próximos da cena que tornava real o nosso pesadelo.
◆◆◆
Liza
Gemi ao finalizar a fácil descida da pedra graças à ajuda invisível de Nathaniel. Sua mão quente pousada em meu ombro me confortava, apesar da imagem perturbadora agora diante de nossos olhos.
Ben espalmou a mão na minha barriga para me impedir de dar um passo à frente. Busquei seu rosto e o vi como o meu, petrificado.
As chamas dançantes estavam refletidas em seu globo ocular.
O brilho da lua vermelha fulgurou mesclando-se ao fogo e o terror se instalou no ar, deixando sua expectativa mórbida.
A alguns metros, de frente para o mar, gravetos, lenhas e troncos de ma- deira aos montes, se estendiam de maneira organizada lateralmente e formavam uma fogueira única. Pelo tamanho, chutei algo em torno de dez metros.
Contei doze hastes de madeira fincadas em paralelo sobre a fogueira. O motivo do terror ficava acima. As hastes serviam para suportar o cor- po de onze jovens vendadas e amordaçadas, com os braços amarrados para trás. E, entre elas, reconheci Amanda e minha irmã. As jovens murmuravam em desespero, suas palavras eram indecifráveis.
As chamas crepitavam preguiçosamente pelas extremidades. A fogueira
devia estar acesa há pouco tempo, o fogo ainda era baixo.
Ben permanecia paralisado sem reação. Vasculhei até onde meus olhos
podiam alcançar e não encontrei o responsável por aquilo.
Mas não estávamos sozinhos. Quem quer que fosse, estaria escondido.
Lembrei novamente de Noah e me arrepiei com a conclusão de meus pensa- mentos. A previsão da Casa do Mago, não apontava para a festa do noivado de Raquel. Seria essa noite. Arquejei ao recordá-las:
"Ao compartilharem a mesma aflição, a morte será convidada. Sua es- colha determinará o fim de uma vida, ou outra. Do amigo, ou do inimigo."
As palavras cortantes de Noah e sua previsão se fincaram como uma praga em minha consciência.
— Não matarei ninguém, Noah! — esbravejei em voz alta para que me ouvisse.
— Do que você está falando? — Ben despertou do transe e me olhou assustado. Sem esperar resposta, ele segurou minha mão e me arrastou em di- reção a fogueira.
— Tem algum plano, Ben? — indaguei com a vã ilusão de haver algo capaz de nos salvar.
"Eu tenho" — ouvi o bálsamo vindo da voz de Nathaniel me responder.
— Pegar as garotas e dar o fora da... — Ben soou determinado, mas o final da frase foi interrompido. Olhei para trás quando Ben caiu após ser atingi- do, e me deparei com o olhar alucinado de Ethan.
Estaquei na areia e vi Ben gemer um metro à minha frente. Ethan se posicionou acima dele, com um toco de madeira elevado em suas duas mãos no alto. O brilho furioso de seu olhar me assustou. Ele iria matá-lo.
Ben se arrastou desajeitado, mas não conseguia aumentar a distância, parecia muito machucado. Tinha as duas mãos cobrindo a bacia e o rosto fran- zido de dor.
Preparei-me para me jogar em cima de Ethan, até ver seu corpo subir inexplicavelmente um metro do chão e cair catapultado para trás.
Entendi um instante depois, Nathaniel o acertou.
Dei três passos até Ethan e inclinei o tronco para olhar seu rosto. Escor- ria sangue de seu nariz, ele parecia desmaiado.
— Venha, Liz.
Nathaniel se tornou visível para mim e me afastou de Ethan ao me puxar pela mão. Esqueci por um segundo tudo o que acontecia ali. O via pela primeira vez fora de um sonho, pesadelo ou alucinação. Ele estava ali. Real.
Pousei minha mão em seu rosto e ele sorriu segurando-a. Percebendo meu torpor ele continuou.
— Liza, vá checar Ben e ligue para a polícia. Vou apagar o fogo.
Meneei em resposta e a adrenalina voltou ao meu sangue após constatar que as chamas da fogueira atingiam o dobro do tamanho.
Agachei perto de Ben e acariciei sua cabeça enquanto usava a mão livre para encontrar o celular em um dos bolsos internos do meu sobretudo.
— Você está bem?
— Estou. Mas acho que quebrei alguma coisa. Cadê a Amanda? — Ele tentou se sentar mas urrou de dor com o movimento.
— Shhh. Fique quieto aqui. Vai ficar tudo bem.
Minha mão finalmente tocou meu celular mas enquanto digitava os nú- meros, fui pega de surpresa. Não escutei os passos atrás de mim.
◆◆◆
Nathaniel
Chequei uma última vez se Ethan, quer dizer, Olaf, permanecia incons- ciente e andei até a fogueira. Liza verificava o estado de Ben, a vi tatear os bolsos em busca do celular.
Virei-me de frente e direcionei a concentração nas chamas abaixo das jovens, tentei liberar de mim o seu oposto. Água.
Se eu conseguia manipular o fogo e o vento, talvez pudesse também forjar água. Poderia ser um tiro no escuro, mas eu tentaria antes de me elevar do chão e libertar uma a uma.
Apagando o fogo, seria muito mais rápido.
Uma vibração nova cresceu em meu peito e a senti se espalhar pelos mem- bros, fresca e abundante a sensação se apaziguou e o ruído estalado de fogo e água se encontrando me preencheu de alívio. Mais alguns instantes e todo o fogo se apagaria.
— Se mais uma gota cair, ela morre.
Enrijeci os músculos das costas e me virei.
Ethan segurava Liza por trás, com uma lâmina afiada apontando perigosamente para seu pescoço.
— Deveria ter matado você.
— Deveria. Mas não poderia, não é, meu caro? Não passa de um fraco. Patético.
Abandonei a formação da água que expelia e, de esguelha, vi que o fogo já voltava a queimar boa parte dos gravetos e da lenha antes molhada.
Transportei-me para ficar a um passo de Ethan, sua mania de ameaças vazias o deixava distraído e usei essa fraqueza como vantagem:
— Assim você me ofende, Olaf. Pensei que tivesse sentido minha falta.
— Ofensa é o que essa aqui faz. — ele roçou o nariz no pescoço de Liza, e eu o teria matado se a faca não estivesse tão próxima dela. — É minha convidada de honra e o que ela faz? Chega com o namoradinho e ainda tenta estragar a minha decoração.
— Se tocar nela mais uma vez... — rosnei e dei um curto passo à frente. Olaf deu um para trás.
— Vai fazer o que? Chorar? Fique parado ou ela morre. Nem me in-
teressa mais se eu não conseguir o que quero, contanto que você também não. — E o que interessa você, Olaf? Não percebe? Nunca irá conseguir.
Jamais terá um corpo.
— Conhece a cerimônia do fogo Nathaniel? — Olaf forçou o corpo de
Liza para a frente, fazendo-a andar alguns passos até que estivesse bem perto da fogueira e continuou — O fogo é um agente poderoso de transformação. O fogo pode consumir uma vida ou despertá-la. Esse calor ardente e laranja esbanjado pelas chamas purifica ou corrompe. Qualquer coisa jogada no fogo, irá incendiar e se transformar. Percebe?
Ele empurrou o rosto de Liza em direção as chamas. Pânico e ódio lu- tavam para ocupar espaço em mim. Ela fechou os olhos e fez uma careta ante- cipando a dor. Se moveu apenas para enrolar o cabelo comprido em uma mão e o afastar das brasas. A barra de seu casaco se incendiou e o tecido chamuscou. Fiz menção em me aproximar, mas Olaf a puxou pela nuca e me mostrou a faca ainda em seu pescoço. Liza era ameaçada de duas maneiras terrivelmente próximas.
◆◆◆
Liza
Ethan elevou meu rosto e fitei as esmeraldas de Nathaniel. O ódio trans- ferido de seu olhar para Ethan rapidamente passou a dor em seu semblante. A ameaça a minha vida lhe causava sofrimento e detestei ver um inocente no purgatório.
O calor em meu rosto era alarmante, minha testa umedeceu com o suor. Ethan prosseguiu com sua tortura psicológica e empurrou mais o meu rosto, agora de lado, obrigando Nathaniel a assistir.
— Quando Liza arder, — o ouvi falar pausadamente — o que acha que nascerá de suas cinzas?
Seria agora. Minha bochecha resvalou no fogo. Cerrei as pálpebras e aguardei a queimação. Imaginei que a pele se desfaria nas brasas, mas elas acari- ciaram meu rosto como velhas amigas. Recordei da força interna que eu guarda- va, podia tê-las liberado e me livrado de Ethan. Mas o poder do fogo adormecia no medo. Lutei para trazê-lo à tona, me concentrando na raiva escondida em meu interior.
Mirei furtivamente a palma da mão esquerda para trás. Essa esquentou até quase entrar em combustão, antes das chamas se libertarem velozmente e incendiarem a perna de Ethan. Ele me soltou e o alívio me dominou. Ergui o tronco para me afastar do fogo e suspirei.
Ethan praguejou dando passos para trás.
Nathaniel correu até meu lado e me abraçou rápido. Verificou se meu casaco havia parado de queimar antes de ir atrás de Ethan:
— Não saia daqui.
Meneei em resposta e corri a mão no meu rosto, verifiquei se haviam elevações na pele da bochecha, mas no tato a senti lisa.
Ethan se debateu antes de conseguir apagar as chamas da perna e foi sorrateiro até Ben que pendia a cabeça torta em nossa direção. Ele ainda tentava se levantar mas seu tronco oscilava e voltava a cair.
Nathaniel apareceu por trás de Ethan e o puxou com força na tentativa de derrubá-lo mas Ethan se precipitou para a frente. Antes que pudesse ser im- pedido, acertou um murro forte acima da orelha de Ben. A cabeça dele tombou mole na areia, logo após o ruído perturbador de um estalo.
— Nãooooo! — Apontei a mão na direção de Ethan. Quis que ele sofresse. Desejei ver seu corpo arder. Bastaria concluir o gesto e estaria livre de sua tormenta, sempre me ameaçando, à espreita do meu deslize. Nathaniel o segurava mantendo seus braços esticados para trás e arregalou os olhos ao ver o que eu pretendia fazer.
Fitei enfurecida o rosto de Ethan, ele merecia ser punido. Ele merecia morrer.
Mas lembrei que aquele era o corpo de um inocente, possuído e apri-
sionado por uma alma negra. Será que ele sentia a dor de tudo que causávamos a seu corpo?
Baixei a mão derrotada ao lado do quadril. Eu não seria capaz de matar alguém.
Ethan se desvencilhou de Nathaniel e o derrubou. Em seguida arrastou
o corpo inerte de Ben, e o aproximou da fogueira. Gritei ao perceber que ele jogaria Ben no fogo, mas o mata leão de Nathaniel o impediu.
Observei afoita, pensava no que fazer para ajudar e estremeci ao ouvir o sussurro de uma serpente ao meu lado.
— Deixe-me entrar, Liza — sibilou Noah.
— Saia da minha cabeça.
— Eu sou capaz de fazer o que é preciso. Prefere que todas morram?
Que Ben, morra? Eu lhe avisei na Casa do Mago. No momento em que todos estiverem sob a mesma aflição, sua verdade se revelará. Ou é pior do que eu es- perava? Antes doze mortos do que você corrompida? É isso? Mate, Liza. Mate, para salvar.
Girei o pescoço em direção a fogueira e olhei os rostos de Amanda, Ra- quel e das outras nove meninas inocentes. Alguns segundos e o fogo as lamberia.
Noah tinha razão desde o início.
Se eu não matasse Ethan, não seria apenas Ben a morrer, todas ali parti- riam. A culpa seria minha de qualquer maneira.
Essa noite não havia escolha capaz de me distanciar da morte.
Olhei para Nathaniel, ele segurava o pescoço de Ethan impedindo-o de chegar até Ben. A lâmina da faca, agora na maçã do rosto de Ethan, fazia um filete de sangue escorrer. Mas ele não o mataria.
O dono daquele corpo era inocente e provavelmente Nathaniel travava uma luta interna, a mesma batalha que eu perdia. Seus lábios se moveram quase imperceptivelmente, suas esmeraldas faiscaram suplicantes:
— Não faça isso, Liza.
Considerei se ele me perdoaria antes de aceitar a escolha já feita. Mas será que eu algum dia encontraria paz se as onze morressem por minha causa?
Inspirei o ar quente e contaminado pelo cheiro de queimado antes de assentir para Noah ao meu lado.
Uma forte pressão pesou em meu peito, nuvens negras circularam mi- nha mente e um véu esfumaçado cobriu meus olhos.
Meus músculos se retesaram em repulsa por sua presença. Ele era vil, impiedoso e inescrupuloso. Dividimos os pensamentos e somente não vomitei por não ter o controle de meus atos. Noah se moveu e eu assisti, presa em pare- des apertadas de vidro.
— Fique quieta, Liza! — grunhiu em minha cabeça.
Noah se aproximou de Nathaniel e li suas intenções antes que as pusesse em prática.
— Deixe ele em paz! — Tentei impedir mas minha voz bateu no vidro e voltou.
Meu pedido foi ignorado. Noah esticou minha mão e pressionou a têm- pora de Nathaniel, que foi pego sem reação ao ver o que meu corpo fazia.
Vi a tormenta em seu olhar arregalado para mim, instantes antes dele tombar na areia.
— Não! Mentiroso! Me deixe sair!
A agonia se espalhava, meu grito não saía por minha voz, apenas Noah ouvia. Sacudi-me freneticamente, tentei me libertar mas meus braços e pernas faziam somente o que Noah ordenava.
Ethan deu dois passos vacilantes para trás, mas Noah o agarrou pela gola da camisa e o derrubou na areia passando uma perna de cada lado sobre seu corpo.
O crepitar das chamas ganhou mais força. Apesar do meu esforço her- cúleo para virar a cabeça e checar a dimensão das chamas, meu rosto continuava fitando Ethan, já débil sob o aperto de minhas mãos em sua garganta.
— Não! — reuni tudo que ainda me restava de controle.
Meus braços lutavam para combater a força de Noah. Eu não podia fazer aquilo. Não podia.
— O que você está fazendo, Liza?! — o grito de Noah arranhou meus ouvidos como garras, me rasgou de dentro para fora.
244
Carine Raposo
Ethan piscou e o olhar que me deu, de repente não vinha da alma negra que o possuía. Era ele, talvez liberto por alguns segundos, segundos antes do fio de vida restante lhe fugir.
— Está tudo bem, irmã. Só assim estarei livre.
Lágrimas inundaram meus olhos pelo fragmento de esperança que ha- via em sua voz. Ele desejava morrer e sabia o que se passava em mim naquele momento, pois havia passado os últimos meses de sua vida assim, aprisionado no próprio corpo.
O soluço do meu choro abriu novamente espaço para Noah retomar o controle e não pude impedi-lo. Ele intensificou o aperto e Ethan ficou vermelho como a lua que se distanciava no horizonte, antes do branco da morte dominar seu rosto.
Assim que a pressão deixou meu peito, saí de cima dele e corri vacilante para trás.
Noah me libertou e finalizou o homicídio, ou fui eu quem executou essa morte?
As fogueiras haviam se extinguido, para meu alívio. Pelo visto, somente com Olaf ainda no corpo de Ethan elas se manteriam acesas. Mas todas as garo- tas pendiam com o corpo mole, desacordado, minha irmã e Amanda entre elas.
Tardiamente me dei conta de que poderiam já estar todas mortas, asfixiadas pela fumaça.
Me ajoelhei ao lado de Nathaniel e acariciei seu rosto.
O que Noah fez a ele?
Uma forte crise de pânico ameaçava se apoderar de minha razão. Pus uma mão sob o peito dele, minha respiração saia entrecortada. Chequei o seu batimento. Vivo.
Engatinhei até Ben e fiz o mesmo. Vivo.
Amanda e Raquel se encontravam a dez passos de mim. A densa fuma- ça tomava o meu fôlego, mesmo ali a céu aberto com os fortes ventos da praia, levaria um certo tempo antes de se dissipar completamente.
Cambaleei até Raquel e prendi a respiração na tola tentativa de não ina- lar a fumaça. Engasguei com as cinzas em minha glote.
A um passo de chegar até elas, compreendi que não adiantaria, a pilha de gravetos e lenha abaixo delas ainda estaria muito quente. Não poderia liber- tá-las e evitar que se queimassem. Antes de algum raciocínio se concluir em minha lógica enevoada, caí rodopiando em um túnel escuro e desabei na areia.
Sufoquei com a inundação do ar pesado no pulmão e fui devastada pela constatação.
Matei meu irmão sem sequer conhecê-lo.
Minha escolha salvou a vida de meu amigo, mas não me libertou do inimigo.
E agora Olaf poderia estar entre qualquer um de nós.
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Gennnnnte, e esse capítulo????
Como vocês se sentem?
Beijosss e até terça!
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