O Tamanho do Tempo
– Se importa se eu botar música?
Seis palavras que quebraram o silêncio depois de frações de horas que pareceram uma eternidade. Nossa eternidade particular. Um espaço onde estavam mergulhadas as lembranças – felizes ou não – e as angústias. Principalmente as angústias.
Estávamos no meu carro, ela e eu, indo para a casa dela. Eu dirigia. Passava das três da manhã. Havíamos nos encontrado depois de um ano e feito amor durante a tarde e a noite. Quase uma dezena de vezes, com aquela voracidade que só se faz presente nos reencontros. Quando cansamos – da cama e também de não ter o que dizer um ao outro –, ela me pediu para levá-la.
Nós nos conhecemos jovens. Ela, mais que eu. E eu era também mais experiente nessas coisas do amor, acredito. Digo coisas porque um amor nunca é igual ao outro, então não faz sentido generalizar assim. Quando nos conhecemos, ela mentiu. Enfileirou em seu currículo amoroso homens que nunca existiram – almas que nunca existiram, a não ser para compensar a falta de um passado real. Tonto, não percebi. Sentia ciúmes até de uma sombra, então tanto fazia se eles existiam ou não. Só a ideia me matava por dentro.
Esse foi um enorme problema. Ela era linda. Essa é uma das minhas poucas certezas. Os cabelos castanhos lhe caiam sobre os ombros como se quisessem acomodar-se em seu colo. Os olhos eram um misto de verde e mel que, quando piscavam, eram como interruptores que acendiam e apagavam a luz do rosto. Não era baixa, mas também não tinha uma altura masculina; seus vestidos valorizavam as coxas, que se não eram grossas como a da maior parte das meninas de hoje em dia, chamavam minha atenção pela maciez. Ultimamente, o corpo dela estava mais bonito que nunca.
Voltando aos ciúmes, lembro como se fosse hoje: era seu aniversário e resolvi lhe fazer uma surpresa; pela primeira vez dormiríamos juntos, aninhados na minha estreita cama de solteiro; pela manhã, levaria morangos e comeríamos, juntos, onde fizéramos amor algumas horas antes. E tudo transcorreu conforme o plano. Pouco depois, ela recebeu uma ligação – devia ser mais uma das tantas que se recebe em aniversários, mas foi diferente. Afastou-se com leveza e atendeu, longe do alcance do meu mal treinado ouvido. Havia de ser especial.
Depois de pressionar, com aquelas técnicas que só funcionam no começo da relação (a essa altura, estávamos a cinco semanas do primeiro beijo), consegui arrancar a resposta que queria e não queria: era um antigo amor. E era real, e não os moinhos contra os quais eu lutava de forma quixotesca. Desde ali, confiança e segurança desapareceram do meu espectro emocional.
– Pode baixar um pouco? – pediu ela.
Fazia mais de um ano que não nos víamos até aquele dia. Provavelmente esqueci o quanto ela se incomodava com o volume em que eu costumava ouvir música. Ela se incomodava com muitas coisas minhas, aliás. E essa foi outra de nossas ruínas. Incomodava-se com meu português correto – correto até demais, queixava-se. Ou com minha preferência por cachoeiras em vez das praias que ela tanto gostava. Coisas banais, que não deveriam incomodar ninguém. Mas não me queixei – havíamos combinado de não reclamar sobre o passado.
Namoramos por quatro anos. Muita coisa aconteceu entre aquele telefonema de aniversário e o dia em que tudo acabou. Coisas que, de verdade, não importam agora. Depois que nos separamos – e foi doloroso para nós dois –, decidimos nos afastar de vez. Nosso amor era daqueles que derretia corações e razões e sempre fazia renascer uma segunda chance. E esse é dos piores. Porque ele pede licença pra te destruir. E o convite é tão tentador que você concorda com sua própria ruína. Acordamos, então, que não iríamos ser nossos próprios algozes. E cumprimos nossa palavra – até aquele dia.
Eu não estava bem nas semanas anteriores. O emprego estava me exigindo mais do que estava disposto a dar (trabalho na bolsa de valores); minha casa, ainda se acostumando a ser o primeiro lar de um solteiro desorganizado, estava me dando mais trabalho que eu estava disposto a ter. Os outros problemas eram da ordem das preocupações de quem já perdeu um amor. Liguei para ela e perguntei quando estaria na cidade (ela havia se mudado depois do término).
Uma resposta e algum tempo depois, e lá estava ela na porta do meu prédio. Preferiu mandar uma mensagem no celular a tocar o interfone, adiando em alguns minutos minha ansiedade de ouvir sua voz mais uma vez. Nove andares e ela chegou à porta do apartamento. Eu já a esperava colado ao olho mágico; mas segurei a respiração para ela não notar minha presença. Ela tocou a campainha. Ia contar até quinze. No dez, abri. O abraço foi muito mais demorado e carinhoso que eu esperava; afinal, o tempo distante era grande o suficiente para congelar qualquer afeto. Não o nosso, descobri.
Sentamos na sala, cada um em um sofá, e cumprimos aquele protocolo. "Como vai a vida?", "E o trabalho?". Ridículo. Queríamos mesmo era perguntar "por que foi que acabou mesmo?". Mas não, é claro. Sabíamos muito bem aonde aquela pergunta levava. Continuamos o papo de elevador.
– No que você está pensando?
Perguntou ela, duas vezes no mesmo dia. Primeiro no sofá da minha casa, depois de alguns minutos de silêncio constrangedor. Depois, mais tarde, no carro, enquanto eu dirigia olhando pelo para-brisas, mas sem encarar a pista como deveria. Respondi a mesma coisa as duas vezes: "na gente".
Da primeira vez, lá em casa, ela me disse:
– Então fala. Fala o que quiser falar, meu bem.
E eu falei. Disse que sentia saudade e que lamentava muito ter acabado. Admiti que sentia ciúmes do que acontecera nesse ano de hiato – ao que parece, aquele currículo imaginário tinha se materializado, finalmente. Ela negou ter tido ciúmes de qualquer uma das moças com quem me enrosquei nesse tempo. Disse que torcia por mim, o que obviamente me machucou. Preferia o ciúme.
O assunto morreu de novo. Via os olhos dela percorrendo a casa nova, tentando reconhecer ali o lar que a gente construiu e dividiu por um ano e meio. Não dava. Faltava, é claro, tudo o que era ela e o que ela fazia. Antes, ela estava pendurada nas paredes, jogada sobre a cama e enfeitando a cozinha. Tudo era do gosto dela e tinha o gosto dela.
Ao contrario do que fiz nos últimos dias da nossa relação, resolvi agir. Mudei de sofá. Lembrou nosso primeiro beijo.
Era uma noite chuvosa, nos conhecíamos havia dois meses por um amigo em comum. Nesses sessenta dias, já éramos amantes, mesmo sem sê-los. Quando eu chegava em casa, cansado das coisas da bolsa de valores, era ela quem eu procurava para me queixar da rotina. E ela fazia o mesmo, queixando-se sempre da família e das amigas. Quanto mais ela se distanciava deles, mais perto de mim ficava.
Então fomos a um restaurante. Tínhamos conversado um dia antes sobre a "minha quedinha por ela" (foi assim que ela definiu). Ficamos pouco tempo lá, conversando sobre assuntos que não nos interessavam. Os amigos perceberam – e sorriram. Parecia que todos eles torciam por nós. Na primeira brecha, arrumei uma desculpa e saímos. Fomos para a minha casa. Na sala, sentamos cada um em um sofá. Conversamos sobre amenidades, até o silêncio chegar e se instalar. Escolhi agir (dois meses era tempo suficiente). Mudei de sofá.
E aí aconteceu. Era daqueles beijos como quem quer, com a boca, absorver tudo o que o outro é. Das duas vezes foi assim.
Depois daquele primeiro beijo, desenvolvemos da forma mais rápida possível a nossa relação. Na verdade, ela já estava desenvolvida – faltava a consumação. Pouco depois, começamos a namorar; foi naquele dia do aniversario dela, com os morangos, os ciúmes e tudo mais.
Foi tudo muito intenso. Vez em quando eu me pegava em casa, sozinho, apreciando a simples ideia de tê-la. Ela era interessante demais. Libertava-se de qualquer conceito para olhar pro que lhe era mais precioso: o poder da escolha. Ela era poesia. Errante sob alguns aspectos, como um poema que não rima, mas bela em sua essência. Lia Tolstói, Cortázar e Neruda, meus autores preferidos. Mas tinha uma leitura diferente da minha. Eu era literatura, ela era alma. Eu era admiração, ela era aprendizado. E assim a gente se completava. Nos livros, na música, na cozinha ou na cama.
Mas acabou, por razões que não valem a pena mencionar – cumpro nosso pacto de não falar nisso até em meus próprios pensamentos. E, na verdade, nem foi nada de muito especial. Acabou pelo desgaste que termina as relações em que um desiste de compreender o outro.
E, pela segunda vez (a primeira foi uma troca assustada e indecisa de olhares num bar da nossa velha cidade), estávamos frente a frente desde que acabou. Nos beijando no sofá, como na primeira vez. A diferença é que aquele primeiro beijo foi emendado com um segundo. E esse beijo, o do reencontro, nos levou direto à cama. Ela nunca gostou, mas meu romantismo piegas sempre levava meus braços a suspendê-la e carregá-la no colo até o quarto. Lá, as roupas dela escorregaram para o chão com a suavidade de quem quer avidamente se entregar. E novamente estávamos entrelaçados, e nos sentíamos unidos uma vez mais. A respiração dela no meu ouvido, intermitente – de um jeito que era só dela e pela qual sempre esperei nas outras moças que por ali passaram –, me fazia lembrar o começo. Da vontade que era quase desespero. Como se precisássemos matar a sede ou morrer. E no fim, de qualquer jeito, morríamos. Em transe em uma cama banhada de suor, mas lavada de paixão. Foi assim naquele dia; quase uma dezena de vezes, como mencionei.
– Sabe, eu acho que isso pode não dar certo. Foi ótimo tudo o que a gente teve hoje, e eu realmente estava morrendo de saudade de você. Mas acho que se hoje foi um recomeço, então os mesmos problemas vão voltar lá na frente. Talvez o amor seja isso: a satisfação da vontade no afeto pelo outro.
Finalmente ela havia me respondido, no carro. E com a perspicácia e a poesia que são só dela. E ela pode ter razão. Acho que um coração não pode ser quebrado pela mesma pessoa duas vezes. Mas lá estava eu, juntando os cacos, cheio de esperança, esperando passivamente eles serem destroçados de novo. Já estávamos na avenida que dava acesso à rua dela. Meu tempo de salvar alguma coisa – o quê, não sei – estava se esvaindo. Concordei com ela, mas mantive a porta aberta:
– Não vamos forçar nada. Se tiver que ser, vai ser.
Que idiota. Mais clichê impossível. Já estávamos na rua dela. Ela não falou nada. Sorriu e concordou com a cabeça. Consultou o relógio. A visita durou muito mais que ela imaginara. Não só à minha casa, mas a mim. Ela revirou minha alma de novo, depois de tanto tempo. Ouviu meu coração, quando fez ninho no meu peito, lá pela quinta ou sexta vez.
Finalmente chegamos à casa dela. Parei o carro. Puxei o freio de mão, esperando uma discussão sobre o que iria ser a partir dali. Mas ela só beijou minha boca demoradamente e depois minha bochecha. Essa ordem foi a minha resposta. Havia sido aquilo: horas de amor e reencontros. E pronto. A partir dali, nosso futuro se reencontraria com nosso passado recente – apenas estranhos amigos.
E ali nossa pequena jornada acabou. No universo disforme dos meus pensamentos, aquele era um amor grande demais pra ter durado apenas quatro anos – e mais o dia de hoje. Mas ela era tão encantadora que me emburrecia até em relação ao tamanho do tempo. Como pode, naquela viagem de dez minutos da minha casa até a dela, ter cabido quatro anos? Ter cabido tanto amor. Ter cabido um milhão de dúvidas. Como se o relógio alongasse o espaço entre os marcadores para cada lembrança que tempera minha alma com a mesma doçura do olhar dela. O que houve com o tempo, que se expandiu durante o nosso pequeno passeio, mas agora, ali em frente à casa dela, havia se contornado em um assustador tic-tac, sussurrando em meu ouvido que ele não iria parar pra eu fazer alguma coisa? Era agora ou nunca. E eu escolhi o nunca. Porque o tempo me mostrou o suficiente pra saber que ele é grande o bastante pra caber o que vale a pena. Mas que nós não somos mais. E o tempo não é mais pra nós. Afinal, nosso amor acabou. E arrastou o tempo junto com ele.
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