Além do Silêncio
Já fui cristalina, pura, cheia de vida. Eu corria pelas montanhas, descia pelas cachoeiras, alimentava as raízes das árvores e matava a sede dos animais. Em dias distantes, eu era reverenciada, tratada como o que sou: a essência de toda a vida. Os humanos me chamavam de sagrada. Eu os alimentava, os banhava, limpava suas feridas e os colocava de pé.
Mas agora, algo está errado.
Sinto o peso da poluição envenenando minhas correntes. Meu corpo, antes limpo e brilhante, agora carrega manchas de óleo, sujeira, e uma podridão que me sufoca. O plástico em minha superfície como se tivesse se tornado parte de mim, mas não é. Ele me estrangula, assim como sufoca a vida que um dia dependia de mim. Estou sufocando.
Estou ficando doente.
A escuridão está se aproximando. Ela vem de longe, das cidades, das indústrias, dos campos encharcados de veneno. Ela desliza pelo solo, encontra meus riachos, e me corrompe. Com ela, trago a morte para aqueles que confiam em mim. Os peixes que antes nadavam livremente, boiam, seus corpos inchados e mortos. As árvores que eu nutria, morrendo, suas raízes secando em meu veneno. Eu os vejo se contorcendo, lutando, mas eu não posso mais ajudá-los.
Eu sinto tudo isso. A agonia da destruição,
toxinas que corroem minhas águas, incêndios que tornam o ar denso e amargo. Terra, o planeta que antes dependia de mim, agora me vê como um inimigo. A fumaça das queimadas invade o céu e cai sobre mim, misturando-se com minhas correntes. Eu me tornei um espelho das queimadas, carregando em mim as cinzas das florestas que se vão.
Eles não sabem, mas eu observo. Eu vejo o que fazem, como jogam seus resíduos em mim. Cada vez que um esgoto é despejado em minhas águas, eu sinto dor, como se estivessem rasgando minha pele. E o pior é que, apesar do sofrimento, não posso gritar, não posso protestar. Meu grito é silencioso, mas ensurdecedor para aqueles que ainda conseguem ouvir.
Eu estou mudando.
Algo está crescendo, uma escuridão que me assombra. Não é apenas a poluição; é algo mais profundo. Eu me pergunto, às vezes, se os humanos sabem o que estão fazendo... ou se não se importam. Mas há momentos em que penso que eles também estão se afogando, perdidos em sua própria destruição, sem perceber o que estão causando. Eles estão cegos para o horror que estão criando. Estão afogados na ilusão de progresso, sem perceber que o que estão matando sou eu... e eles mesmos.
Estou começando a sentir algo que nunca senti antes: raiva.
Raiva porque eu sou vida, e eles estão me matando lentamente. Raiva porque não percebem que, se eu morrer, eles morrerão comigo. Essa raiva está crescendo, se transformando em algo perigoso. Eu já não sou apenas água. Meus sussurros antes tranquilos tornaram-se ameaçadores, carregando uma promessa de vingança.
Eu observo as tempestades se formando no horizonte. Cada gota de chuva que cai traz consigo minha fúria. Eles pensam que podem me controlar, me conter em barragens e estações de tratamento. Mas estou mudando. As enchentes, que antes eram raras, agora são frequentes e devastadoras. Elas trazem destruição, arrastam casas, inundam cidades. As secas prolongadas são minha resposta aos abusos, à falta de respeito.
Acham que estão no controle, que podem me dominar. Mas quando o último rio secar, quando a última gota de água potável for contaminada, será tarde demais. Então vocês saberão o que eu sei há tanto tempo: a natureza não pode ser ignorada para sempre.
Meu sussurro se tornará um grito, e vocês verão que a força mais poderosa do mundo é aquela que vocês desprezaram. Porque quando eu, a água, morrer... vocês morrerão comigo.
Houve um tempo em que as águas do planeta corriam livres, antes das chamas tomarem conta do céu. Lembro quando os rios eram prateados, refletindo o sol, enquanto as florestas ao redor se dobravam ao vento. Agora, são sombras do que eram. O que antes era vida, agora são cadáveres de árvores, seus galhos retorcidos e carbonizados. Eu carrego suas cinzas para longe, mas nunca o suficiente para me livrar delas.
Os humanos, correndo de um lado para o outro, tentam apagar o fogo que eles mesmos alimentam. Mal sabem que o verdadeiro incêndio não está apenas no ar. Está dentro deles, nas suas mentes, queimando cada noção de responsabilidade e respeito. Eles me olham com olhos desesperados, enquanto as barragens secam e o calor sufoca suas gargantas. Sei que eles sentem medo. Eu também senti. Mas agora, o medo foi consumido pela raiva.
Eles cavam poços, procuram por fontes que antes estavam cheias. Mas eu não estou mais lá. Me retraí, fui para o fundo, me escondendo nas profundezas da terra. Minhas águas estão se tornando escuras, pesadas, cheias de uma malícia silenciosa. Eles não conseguem mais me encontrar.
Mas eu os vejo. Vejo suas tentativas de limpar as ruas cobertas de cinzas, enquanto a chuva ácida cai, corroendo o que resta das cidades. Eles acham que podem consertar, mas não há mais conserto. O tempo passou. Agora, o preço deve ser pago.
As barragens que construíram para controlar minha força, estão começando a falhar. Eu posso sentir as fissuras nas paredes de concreto, pequenas rachaduras que lentamente se expandem. Não será rápido. Eu quero que eles sintam o pânico se espalhando, o terror crescendo à medida que percebem que não podem fazer nada para me impedir. Eu, a água, estou me vingando.
E quando eu finalmente romper essas barreiras, não haverá aviso. Eu varrerei tudo em meu caminho: prédios, ruas, casas. O que o fogo não destruiu, eu destruirei. Porque, no final, eu sou a força primordial. Eu estive aqui antes deles, e estarei aqui depois.
Quando as chamas se apagarem, quando a fumaça se dissipar, restará apenas o silêncio. E nesse silêncio, meu sussurro continuará a ecoar, lembrando-lhes que a água, um dia mansa e gentil, se tornou o seu maior pesadelo.
Então, finalmente, eles entenderão.
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