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Capítulo 2

Talita encerrou empolgadíssima:

– E, depois, a amiga da tia Álex me deu uma maçã inteirinha.

Gustavo foi firme, mas gentil:

– Talita, você sabe muito bem que não deve mentir!

Já Nívia puxou a orelha da menina. Talita gritou, entre gemidos:

– Ai! Juro que é verdade! Ai! Ai! Eu não tô mentindo!

Nesse momento, Alexandra entrou na cozinha. Nívia continuou, olhando diretamente para a prima:

– Ninguém sai dando maçãs de graça por aí!

Alexandra foi obrigada a interferir. Incapaz de deixar Talita sofrer por algo que não era absolutamente culpa dela:

– Não foi de graça. Melina tinha uma dívida comigo.

Sentou-se à mesa, tirou uma faca do cinto e começou a afiar as flechas, deixando claro que o assunto estava encerrado.

Gustavo e Nívia se entreolharam. Talita voltou a gemer, para lembrar que ainda continuava presa pela orelha. Depois de um último puxão, Nívia soltou a menina. Assim que se viu livre, a menina correu para bem longe dali.

Aproximando-se da mesa, Nívia perguntou:

– Que tipo de dívida, Álex? Será que eu posso saber?

Aparentemente, não havia nada de mais na pergunta. Apenas o interesse natural que qualquer outro membro da família teria. Entretanto, Alexandra sabia que existia muito mais por trás da curiosidade de Nívia.

Respondeu sem parar o que estava fazendo, de forma bastante agressiva:

– O que você tem a ver com isso?

Nívia contestou num tom acima:

– Coisa boa não é, para você ficar tão na defensiva...

Ainda sem olhar para a prima, Alexandra replicou:

– Meta-se com a sua vida!

Gustavo puxou a esposa pelo braço, evitando que ela continuasse a discussão. Muito a contragosto, Nívia saiu da cozinha com o marido.

Alexandra se deixou ficar com o olhar parado, milhares de lembranças dolorosas, mágoas subcutâneas a distraindo. O momento de ausência lhe custou um corte. Num reflexo, atirou a faca na mesa. Não gemeu, nem emitiu um ruído. Apenas xingou:

– Merda! – Antes de levar o dedo indicador à boca para estancar o sangue do ferimento.

__


Alexandra acordou cedo – sabia pelas quatro badaladas do sino da Casa do Senhor – e, num salto, levantou da cama. Partiu sozinha em direção ao campo Leste. O sangue fervendo, todos os sentidos aguçados e prontos.

Sentada na boleia da carroça, fez o cavalo imprimir um trote rápido durante um bom tempo. Quando parou, amarrou o animal, tirou os sapatos, meias e roupas e se afastou. Inteiramente despida, levando algumas flechas, um embornal e o cantil pendurados nos ombros e nas mãos o arco e o candeeiro.

Caminhou de olhos fechados, usando outro tipo de visão. As narinas a guiando, virando-a lentamente de um lado para o outro, procurando. Ao chegar ao local que os sentidos tinham farejado, colocou o candeeiro e o arco no chão e ajoelhou.

Regou as mãos com a água gelada do cantil e as esfregou na terra, produzindo uma umidade pastosa que passou no cabelo, no rosto e no corpo. Milimetricamente encobrindo a respiração dos poros. Os gestos precisos preenchidos por uma energia ritualística que aumentava conforme a lama arenosa ia lhe tingindo e arranhando a pele, criando a perda de subjetividade que a camuflava ao chão.

Quando terminou, apagou o candeeiro e esperou, com uma flecha pronta no arco. Parada ali imóvel, durante um tempo sem contagem além da própria pulsação, sentiu o silêncio deixar de ser quebrado apenas pelo vento. Com os ouvidos, percebeu os ruídos se aproximarem e, junto com o som, o cheiro de cascos, chifres e pelos. Intuiu o alvo de um jeito além de qualquer tipo de cálculo e compreensão. E, como sempre que atirava, acertou.

Ainda ajoelhada de olhos fechados, Alexandra levantou os braços e deixou escapar um grito satisfeito de comemoração.

Esperou que a respiração e as batidas do coração estabelecessem o ritmo normal antes de voltar a acender o candeeiro. Iluminou o caminho em direção ao animal abatido. Tirou a faca da cintura e a enfiou no ventre do bicho. A sensação de pele, músculos e carne rasgando sob as mãos dela despertando um prazer gutural e primitivo que afastou. Retirou as entranhas da caça para fora e atirou-as – ainda quentes e pingando – para distrair os predadores que por acaso se aproximassem antes que ela terminasse, atraídos pelo forte cheiro de sangue.

Tudo, menos o coração. Este ela ficou segurando, até sentir o calor e as pulsações se extinguirem na mão. Vida que aos poucos se aquietou, como se soubesse que aquilo não era um fim, mas um novo existir na sobrevivência de outros. Respeitosamente, Alexandra guardou o órgão adormecido no alforje que trazia junto ao peito. Quando mais tarde o consumisse, deixaria de estar totalmente morto.

Depois, com movimentos rápidos e ágeis, retirou a pele do animal, e a enrolou. Cortou a carne em pedaços grandes que imediatamente salgou e deixou a carcaça já repleta de moscas.

Depositou tudo na parte de trás da carroça, lavou-se, vestiu-se toda, jogou no chão o resto de água que sobrou no balde e então... Ouviu um barulho não muito longe. Invasor do local ermo e distante.

Nada natural. Assustador, destruidor e estranho. Ruídos que alertavam para a presença do mais perigoso de todos os animais: o homem.

O primeiro impulso que teve foi partir na direção contrária, mas não era o tipo de pessoa capaz de negar ajuda, muito menos omitir socorro quando alguém estava precisando.

Com o candeeiro em uma das mãos e o arco na outra, correu guiada apenas pela audição.

__


Dualidade.

Sofia começava a entender a palavra em seu verdadeiro sentido.

Alternando entre pesar e felicidade extremos.

O balanço da carruagem fazendo com que a perna dela sem querer esbarrasse na de Alícia. Sem decifrar o que o olhar da mulher sentada ao seu lado realmente continha.

Alícia havia aceitado a proposta de servi-la na nova casa de imediato. Isso a mãe havia garantido. Mas, desde que tinham saído – e já estavam há mais de quatro horas na estrada –, não havia pronunciado uma palavra sequer.

Não que Alícia fosse de falar muito. Mesmo na infância, quando ainda eram íntimas, tinha uma economia de palavras tímida. Mas Sofia esperava que, por estarem novamente sozinhas e juntas, em direção a um lugar desconhecido...

Deixou escapar um suspiro audível. Alícia perguntou:

– Algum problema, senhorita? Deseja alguma coisa?

Envergonhada, Sofia fez que não com a cabeça.

Precisava aproveitar. Dizer alguma coisa. Diversas vezes tomou coragem. Molhou os lábios, chegou a abri-los, mas o nervosismo impossibilitou a emissão de som.

Quando finalmente juntou forças e certezas suficientes para conseguir, ouviu o cocheiro gritar, estalando o chicote, acelerando a ponto de lançá-las com força contra o banco.

Alícia perguntou, parecendo sinceramente preocupada:

– A senhorita está bem? Não se machucou?

Antes que Sofia pudesse dar a resposta, um dos homens que cavalgavam escoltando-as gritou pela janela:

– Fiquem abaixadas!

Com a ajuda de Alícia, Sofia obedeceu. E então, uma grande confusão. Ruídos que ela não conseguiu reconhecer. Sentiu o corpo de Alícia muito próximo, o hálito dela no rosto, sussurrando a materialização de um sonho:

– Dispa-se!

Sem conseguir acreditar, achando que não havia escutado direito, perguntou atônita:

– O quê?

Alícia explicou a real intenção:

– Vamos trocar de roupa. Para que não reconheçam a senhorita caso nos alcancem.

Sem esperar resposta, ajudou Sofia a livrar-se do que estava vestindo e a colocar o uniforme de criada. Só então se vestiu.

Sofia estranhou a aspereza do tecido. Em nada parecida com a leveza e maciez dos que estava acostumada a usar. Mal teve tempo de aspirar o aroma da outra, inebriada por tê-lo contra o corpo, e a porta se abriu. Dois homens estranhos – um de bigode e o outro com uma cicatriz assustadora no rosto – iluminaram o interior da carruagem.

Sofia viu com espanto Alícia empunhar uma faca e ameaçar os invasores:

– Nos deixem em paz!

Depois de uma gargalhada rouca, o bigodudo exclamou:

– Ora, ora... A riquinha é brava, Armando!

Alícia não se intimidou:

– Eu não estou brincando!

Foi tudo muito rápido. Muitas e muitas vezes depois, Sofia tentou descobrir o que poderia ter feito para mudar o que se seguiu, sem nunca chegar a uma conclusão.

Alícia saltou sobre o homem da cicatriz, brandindo a faca no ar. O outro gritou, enquanto um tiro o derrubava. Com um movimento rápido, o da cicatriz segurou o pulso de Alícia e enfiou a lâmina no peito dela, que caiu de costas no chão. Depois falou para Sofia:

– Diga para o pai da riquinha que isso é apenas um aviso. Com os cumprimentos de Bevilhaqua.

Gritou em direção ao breu que os circundava:

– Está feito. Vamos!

Depois que o homem se afastou, desaparecendo na escuridão, Sofia saiu da imobilidade em que estava. De joelhos, tateando, aproximou-se de Alícia. Suspendeu a cabeça dela e a pousou no seu colo. Colocou a mão sobre os lábios macios, o ar quente confirmando que ela ainda respirava. Às cegas, o peito ardendo como se fosse nele a facada, só percebeu que as lágrimas caíam dos olhos molhando o rosto de Alícia quando ela sussurrou, com muito esforço, a voz assustadoramente fraca:

– Não chora... Por favor...

Entre os soluços que lhe tomaram a garganta, a única coisa que Sofia conseguiu balbuciar foi:

– Alícia... Alícia...

O silêncio que se seguiu foi quebrado pelo facho de luz que a ofuscou. Forçando a vista para vencer a cegueira que a claridade repentina causou, Sofia conseguiu enxergar os olhos abertos de Alícia parados. Reflexos vazios do nada. Um desespero insuportável a dominou. Sequer reparou a mulher que, do lado de fora, segurando um candeeiro numa das mãos e um arco na outra, testemunhou o primitivo, animalesco urro de dor que soltou.

__


No primeiro instante, Alexandra ficou estática, o olhar perdido na mulher ajoelhada que gritava, apertando com força um corpo inerte contra o peito, as lágrimas escorrendo profusamente pelo rosto voltado para cima, alheia a tudo que não fosse o próprio desespero.

Estremeceu, milhares de recordações a dominando...

Alexandra sabia bem como era aquilo. A amputação, a perda sem retorno. Amarga percepção de nunca mais poder ser realmente feliz de novo.

Logo depois, voltou à razão. Farejou ao redor, o olfato apurado informando que era perigoso permanecer ali. Ouviu passos à esquerda, colocou o candeeiro no chão e apontou a flecha armada no arco para o rapaz que surgiu das trevas arrastando uma sela com dificuldade.

Ele tentou levantar os braços, mas, depois de um gemido de dor, juntou-os ao corpo de novo. Uma ou mais costelas quebradas, provavelmente. Ainda assim, Alexandra ordenou:

– Fique onde está. Não se aproxime.

O rapaz obedeceu sem questionar. Explicou:

– Fomos atacados, todos os outros morreram. Preciso saber se a moça que escoltávamos sobreviveu.

Alexandra saiu da frente dele, oferecendo uma boa visão da cena dentro da carruagem. O rapaz olhou com pesar. Como se expressasse alto um pensamento, deixou Alexandra perceber que o motivo da reação dele não era o que ela pensava e sim algo muito diferente:

– Que azar! Viva valeria muito.

Apesar de se revoltar com a frieza dele, Alexandra não alterou o tom de voz ao dizer:

– A outra está bem. Leve com você.

Com um riso jocoso, o rapaz retrucou:

– A criada? Não tem importância nenhuma. Cuide dela você.

Virou e caminhou em direção aos cavalos. Desatrelou um deles da carruagem e o selou, mas quando colocou o pé no estribo para montar, Alexandra o interrompeu:

– E os corpos?

Já em cima do cavalo, o rapaz gritou a resposta com displicência:

– Ninguém vai vir buscá-los nesse fim de mundo mesmo...

Partiu apressado, deixando apenas o som do trote ecoando, cada vez mais baixo e distante, até desaparecer completamente. Fazendo com que Alexandra pensasse consigo mesma:

– Bem feito, Álex! Quem mandou você se intrometer? Agora o problema é todo seu!

Virou-se para a tal criada, que continuava embalando o cadáver da patroa, exatamente como antes. Gritou, de uma forma longe de ser delicada:

– Moça... Ei!

A outra não respondeu. Continuou como se não tivesse escutado, sem olhar, nem responder.

Alexandra suspirou exasperada antes de subir na carruagem. Tentou se comunicar, sem nenhuma gentileza novamente:

– Olha... Precisamos ir.

Dessa vez, a outra virou a cabeça bruscamente, lançando um olhar nada amigável na direção de Alexandra, como um bicho acuado e ferido que se defende como pode. Se emitisse um som, provavelmente seria um rosnado.

Mas Alexandra não se intimidou. Ajoelhou ao lado da mulher, que se afastou um pouco. Instintivamente, a caçadora suavizou a voz:

– Aqui não é seguro. Vamos.

Como resposta, a mulher se agarrou irracionalmente à companheira morta. Estendendo a mão com cuidado, lentamente para não assustá-la, Alexandra insistiu:

– Vem comigo. Vem.

Nem a isso a outra atendeu.

Alexandra refletiu, analisando as opções que tinha antes de decidir o que fazer. Não podia deixar a mulher ali, entregue à própria sorte. A desconhecida estava fora de si. Tão capaz de raciocinar, fazer escolhas e dialogar quanto um animal selvagem. Poderia arrastá-la à força, mas isso causaria resistência, machucados e lesões desnecessárias em ambas. Pura perda de tempo. Só restava uma coisa a fazer. Sem vestígio de culpa, Alexandra a fez, porque... Era uma situação limite, uma questão de vida ou morte. E, nesse caso, os fins justificavam os meios. Fechou o punho e o acertou em cheio no queixo da outra, que apagou imediatamente.

__


Depois que a desconhecida desmaiou, Alexandra foi correndo buscar a carroça.

Soltar os cavalos foi a primeira coisa que fez quando voltou. Qualquer outra pessoa os teria levado, mas não Alexandra. Para ela seria o mesmo que... Roubo. Incitou-os a irem embora. De volta para o verdadeiro dono.

Procurou e encontrou a bagagem. Abriu cada um dos muitos baús, em busca das roupas da moça. Os com coisas finas deixou de lado, porque... Provavelmente pertenciam à patroa morta. Verificou então os últimos dois.

O primeiro continha objetos retangulares que Alexandra nunca havia visto. Com muita curiosidade, examinou-os. Empoeirados, envelhecidos. Tamanhos e cores diferentes. Por fora duros, e por dentro... Abriam para um material mole, amarelado, fino. Cheio de pingos pretos. Milhares deles, enfileirados. Como... Pequenos e incompreensíveis desenhos.

Hesitou, sem saber se deveria levá-los ou não. Fossem o que fossem, não pareciam ter valor. Talvez pertencessem à criada. Ou não.

Sem tempo para mais divagações, Alexandra fechou o baú e, com dificuldade, guardou-o atrás da carroça. Descobriria o que eram e de quem eram as tais coisinhas estranhas depois. Arrombou o último baú e finalmente encontrou roupas simples, que condiziam mais com a condição da moça. Colocou ao lado do outro e só então se encaminhou para o interior da carruagem.

Ela continuava desmaiada, deitada imóvel no chão. Era pequena, bem menor do que Alexandra, mas nem por isso foi fácil levá-la para dentro da carroça. Não por causa do peso. O maior esforço era o de sempre: controlar o próprio corpo e os pensamentos.

Quando finalmente conseguiu depositar a mulher ao lado dos pedaços de carne, ficou durante um momento parada, respiração e pulsação já alteradas somente por estar tão perto dela.

Não soube dizer quanto tempo ficou daquele jeito. Olhando, e olhando, e olhando... Decorando cada traço, cada linha, cada contorno... Enquanto ardia inteira, como se nas veias corressem brasas ao invés de sangue. Até que... Lembrou-se que precisava vencer a fraqueza que insistia em subjugá-la, pior de todos os horrores que tinha, responsável pela maior dor que...

Refreou os pensamentos. Aquilo não era importante. Real e vital, naquele momento, era queimar os corpos e voltar sã e salva para casa, levando a moça e a comida.

Respirou fundo, caminhou com passos firmes, arrastou os corpos que encontrou para debaixo da carruagem, e os incendiou.

Subiu na boleia da carroça e, antes de partir, admirou as labaredas crescendo cada vez mais. As chamas retorcendo, dissolvendo, fundindo objetos e pessoas em seu calor, tornando-as uma única e mesma coisa. Breve segundo que transformou o mundo num lindo clarão de fogo. Cinzas que, subindo, espalharam-se ao vento, anunciando o fim, e um novo começo.

__


A primeira coisa que Sofia sentiu quando voltou a si foi um sacolejar. Depois um cheiro de... Não sabia definir, só sabia que era... Asqueroso. Por fim, uma dor insistente no maxilar. Ainda sem abrir os olhos, tocou-o. Milhares de pontadas fazendo-a soltar um gemido involuntário. Atrás dela, uma voz feminina desconhecida falou:

– Você acordou.

Sem conseguir compreender o tom e o que as palavras da outra realmente significavam, Sofia abriu os olhos, tentando entender onde estava. Depois de alguns instantes identificou: na parte de trás de uma carroça. Ao lado dela, algo pegajoso. Os dedos tatearam, afundando na maciez viscosa até compreender do que se tratava. Deixou escapar uma interjeição de asco enquanto se afastava do pedaço de carne.

Foi quando... Finalmente se lembrou...

Alícia...

O corpo todo estremeceu, o peito se desesperou, afogado pelas lágrimas que subiram molhando-lhe o rosto novamente. A respiração se tornou difícil. Mexer-se, mais ainda. Desejou poder apenas fechar os olhos e voltar para a inconsciência, ou talvez... Não mais existir. Infelizmente, não era uma questão de escolha.

A carroça parou, e a outra, então, falou:

– Chegamos.

Mentalmente, Sofia ainda se perguntou "onde?", mas nada falou.

Outras vozes surgiram:

– Álex, o que houve?

– Quem é essa?

– Você está bem?

– Tia Álex, você se machucou?

E, então, a voz que Sofia tinha escutado antes se materializou. Na figura de uma mulher diferente de todas que já havia conhecido. A primeira impressão que Sofia teve foi de que a outra parecia... Intimidante era a palavra mais precisa.

Em qualquer outra situação, encolheria de pavor. Mas não o fez, porque... Medo é um sentimento que só os que possuem algo sentem. E, naquele momento, Sofia estava dolorosamente consciente de que já não tinha mais nada a perder.

__


Alexandra acalmou a família. Explicou rapidamente, sem detalhes, o que havia acontecido. Pediu que se afastassem para não assustar a garota. Difícil convencê-los, estavam todos curiosos a respeito da estranha. Por fim, caminhou sozinha até a parte de trás da carroça, para conferir como estava a desconhecida. Mais controlada, esperava. Civilizada, no mínimo.

Encontrou a mulher sentada, massageando o queixo.

No momento preciso em que ela levantou os olhos e fitou Alexandra, ouviram um badalar de sino.

Em princípio aquilo tudo pareceu fruto da imaginação. Fantasias, desejos, vontades que Álex sequer sabia que tinha.

Durante o breve instante em que se fitaram, chegou a parecer que compartilhavam o mesmo estranhamento.

Porém, não durou muito tempo. Apenas o suficiente para que as dezoito badaladas marcassem o mesmo número de horas, e a realidade novamente a atingisse.

Álex aproximou-se para tentar ajudar a mulher a descer, mas a outra a rejeitou violentamente:

– Não me toque! Fique longe de mim!

__


Indignação, revolta, pavor.

Sentimentos inusitados, entre outros que a estranha mulher fazia Sofia sentir.

Claro que nunca, em toda a vida anterior dela, Sofia tinha se sentido tão viva. Como se o conteúdo dos livros, de tudo o que havia lido até então, tomasse corpo.

A mulher assustadora a havia esmurrado. Conseguia ter uma vaga lembrança entre a espessa neblina do choque causado pela perda de Alícia.

Alícia...

Pensar no nome dela fez Sofia sentir de novo. A dor tão fina e incisiva que parecia rasgar a pele, os nervos, a carne toda.

Porém, não era só isso que a fazia tremer como se uma estranha febre lhe queimasse o corpo. Subindo como um nó pelas entranhas, falta de ar que puxava o vômito. Havia mais. Muito mais nas conturbadas emoções que a faziam desejar fugir. Talvez a impressão viesse do pedaço de animal sangrando ao lado dela ou do cheiro semelhante que aquela mulher, ainda acocorada e a fitando, produzia. Fosse o que fosse, era algo que fez Sofia a repelir novamente, com todas as forças:

– Não se aproxime!

Alexandra deu de ombros:

– Como quiser, moça.

Atrás delas, uma vozinha fina gritou:

– Você devia ser mais grata, sabia? A tia Álex te salvou!

Alexandra se virou a tempo de ver Talita correndo para longe. Com um riso divertido, disse baixinho, quase para si mesma:

– Crianças...

Depois, voltou a olhar para a mulher no fundo da carroça, que agora a olhava com menos desconfiança. Algo nela mexendo com Alexandra a ponto de levá-la a não agir com a reserva habitual:

– Não começamos muito bem, mas... Vamos tentar de novo: Alexandra.

Limpou a mão nas calças e estendeu para que a outra a apertasse.

Sofia olhou para Alexandra com surpresa. Aquele tipo de suavidade amigável era o que menos esperava dela. Hesitou, mas acabou estendendo a mão.

Firme, caloroso, intenso. Foi o aperto que recebeu. Tão forte que não pareceu ser apenas na mão. Reagiu involuntariamente. Retraindo o corpo inteiro, a começar pelos dedos.

Alexandra percebeu:

– Desculpe. Te machuquei?

Sofia sorriu timidamente e fez que não com um gesto rápido de cabeça. Depois parou, ficou imóvel, estranhamente em suspenso. Sem saber o que responder quando Alexandra perguntou:

– Qual o seu nome?

__


Para Sofia, aquele instante conteve milhares de mundos. Opções, escolhas, caminhos. Portas diversas para atravessar. Bastava decidir qual delas abrir.

Dizer a verdade seria o mesmo que, com as próprias mãos, fechar os grilhões de novo. Isso não faria. Preferia arriscar-se no desconhecido.

Se antes possuía uma existência de mão única, masmorra desprovida de saídas, a partir daquele momento poderia conduzir ao invés de obedecer e seguir. Provar, buscar, descobrir. Só dependia de Sofia. A resposta, uma única palavra. Pequena e simples. Capaz de, num piscar de olhos, mudar toda uma vida:

– Alícia.

__


Alexandra repetiu:

– Alícia.

Como que provando, saboreando, aprovando as sílabas. Sem querer, sorrindo. Logo depois, como se percebesse que havia cometido um erro ou se arrependesse, ficou séria. Falou de uma forma seca, quase ríspida:

– Precisamos avisar a sua família que você está viva.

Com tanta rapidez que chegou a se questionar se não estava agindo de forma suspeita, Sofia disse:

– Sou sozinha.

Foi olhando para os próprios sapatos, fazendo um enorme esforço para não voltar a admirar a beleza que o efeito das sombras conferia ao rosto da outra, que Alexandra perguntou:

– Então... Não tem para onde ir?

Talvez por culpa, remorso ou por estar mentindo. Talvez pelo fato de Sofia estar deixando para trás vida, família e o mundo que conhecia. Ou pelo simples medo que toda pessoa tem de não ter mais a quem culpar ao se tornar a única responsável por si. O fato é que a voz dela tremeu um pouco ao murmurar baixinho:

– Não.

Uma breve pausa – que pareceu uma eternidade para Sofia – pontuou o tempo que levou para Alexandra fazer algo totalmente fora do seu normal. Ela própria não saberia entender, muito menos explicar o porquê... De falar exatamente o que jamais diria:

– Se quiser... Pode ficar um tempo aqui.

E de alguma forma inexplicável, Sofia intuiu a importância de aquela frase ter sido dita. Gaguejou:

– Eu... Eu...

Mas, antes de conseguir completar, foi interrompida:

– Já não temos muitas bocas para alimentar?

As duas levantaram os olhos para a porta da casa, onde, na contraluz, via-se a silhueta de...

– Nívia...

Explícita na voz de Alexandra estava a animosidade entre ela e a prima. Sofia observou, sem poder interferir. Espectadora imóvel e muda do que se seguiu.

Alexandra se aproximou de Nívia, numa tentativa inútil de não serem escutadas:

– Ela não tem para onde ir.

Porém, a prima quis, fez questão que Sofia e todos os outros ouvissem:

– E daí?

Alexandra não se deixou alterar pela desumanidade acintosa.

– Acha certo deixá-la na rua?

Nívia finalmente tirou as mãos da cintura. Gritou, muito mais do que falou:

– Certo? Pouco me importa o que é ou não é certo. Desde que você não tire da sua família para dar a uma desconhecida!

Apesar das palavras saírem fortes e firmes, o tom de Alexandra não mudou:

– Não vai faltar nada. Eu me responsabilizo.

Nívia chegou tão perto de Alexandra que os seus olhares ficaram a menos de um palmo um do outro. A proximidade não a fez abaixar o volume da voz:

– Sei muito bem o que você está querendo. Você não me engana, Álex. Posso ver em seus olhos o que você realmente deseja. – Respirou fundo, como se tomasse ar para cuspir as palavras com mais desprezo, revolta e nojo do que antes: – Deveria se envergonhar! Não aprendeu nada? Mais uma...

Alexandra poderia tolerar tudo, menos tocar naquele assunto. Ferida que, apesar dos anos, continuava em carne viva, sem nunca virar cicatriz. Perdeu o controle completamente. Quase saltou sobre Nívia. Com o punho cerrado em riste e a respiração descompassada e trêmula, como todo o resto do corpo, ordenou:

– Cala a boca!

Nívia não se deixou intimidar. Pelo contrário, foi como se a reação ameaçadora de Álex lhe desse ainda mais força:

– Faça o que quiser, eu não me calo! Nem agora, nem nunca! Jamais permitirei que você nos faça passar por aquele horror de novo! Você esqueceu, Álex? Não foi suficiente? Quer repetir?

As palavras finais de Nívia fizeram com que Alexandra abaixasse os punhos e a cabeça. Como poderia revidar, se a prima estava... Absolutamente certa.

Inegável era que Alexandra tinha decidido nunca mais fazer a família sofrer. Mesmo se, para isso, precisasse engolir a própria essência. Negando, controlando, castrando vontades, necessidades, desejos. Vivendo pela metade, uma vida tão sufocada que era quase inexistente.

Olhou para a mulher que continuava sentada dentro da carroça – a aparência de fragilidade ainda mais acentuada enquanto assistia a tudo calada, encolhida e visivelmente sem jeito – e desejou poder protegê-la sem que pensassem... Sem que questionassem, comentassem, nem disseminassem pragas capazes de destruir tudo em questão de segundos.

A angústia de Alexandra foi interrompida pelo tio:

– Chega, Nívia! O passado está morto e enterrado, não quero ninguém aqui falando sobre isso. Não se esqueçam de que essa casa é minha, e, enquanto morarem aqui, vão fazer o que eu disser. – Fez uma breve pausa antes de completar: – A garota fica.

Nívia abaixou a cabeça, sem coragem para desafiar o pai, apesar de nitidamente enfurecida. Alexandra não deixou transparecer nenhuma emoção. De volta à habitual expressão impassível, sem reações visíveis. E Sofia... Continuou no fundo da carroça, um pouco assustada com o que havia visto, sem saber direito se deveria mesmo ficar ali.

Foi Talita quem a acudiu:

– Vai ficar sentada aí para sempre? Vem comigo.

Talita puxou Sofia pela mão para dentro da casa, num ambiente que ela reconheceu como sendo a cozinha.

A primeira coisa que conseguiu vislumbrar no cômodo úmido e sombrio – iluminado e aquecido apenas pelo único archote aceso numa das paredes – foi uma senhora mexendo um panelão com uma colher de pau, produzindo um cheiro delicioso de comida que não conseguiu definir.

Forçou os olhos para identificar o máximo de coisas possíveis: uma bancada de pedra ao lado de onde a senhora cozinhava, alguns utensílios pendurados no teto, incompreensíveis. Prateleiras em todas as paredes, repletas de coisas que Sofia também desconhecia. No centro, uma mesa grande de madeira rústica que continha dois bancos compridos – um de cada lado – e duas cadeiras, também de madeira antiga, com encosto alto – uma em cada cabeceira.

Num dos bancos havia um homem sentado, fitando-a com curiosidade. Tão intensamente que, por alguns momentos, Sofia pensou que ele poderia atravessá-la com os olhos. Mas, depois de alguns segundos de avaliação silenciosa, ao invés de desmascará-la, expondo a mentira sobre a sua identidade, o homem pareceu satisfeito. Abaixou a cabeça e voltou para o que estava fazendo: consertando algo. Sofia tentou ver o que era, sem resultado.

A senhora se virou para ela, limpando as mãos em um pano limpo, porém muito surrado:

– Senta, menina. Deve estar faminta. Como você se chama?

Sofia apenas respondeu baixinho:

– Alícia.

Ainda sentindo uma profunda estranheza ao pronunciar aquele nome.

– Eu sou Laila, esse é o meu genro Gustavo, e essa espevitada do seu lado é a minha neta Talita.

Talita se sentou no meio do banco oposto ao do homem e, batendo com a mão direita na madeira, chamou:

– Vem, Alícia. Senta aqui do meu lado.

Sofia fez o que a menina queria, ainda se sentindo tão completamente perdida que sequer se importou por estar tiritando de frio.

__


Quando Alexandra entrou, seguida de Nívia e do tio, a primeira coisa que fez foi lançar um olhar de soslaio para a mulher sentada ao lado de Talita.

Teve medo, muito medo. De sentir o que estava sentindo. Depois de anos pensando que nunca mais seria assim, era obrigada a novamente se deparar com a incontrolável sensação de estar perdida. Precisava lutar, e vencer. Sabia disso. Derrotar a si mesma. Ninguém compreendia mais do que Alexandra o quanto aquilo era necessário, e também difícil. Ter a própria necessidade de ser quem era como maior inimiga. Ainda assim, não estava arrependida de ter salvo e acolhido a estranha que parecia... Diferente de tudo que já havia conhecido. Talvez isso pudesse ser bom. Talvez estivesse ali para que definitivamente conseguisse deixar de... A quem estava tentando enganar?

Alícia.

A simples lembrança do nome dela já produzia...

Desviou os pensamentos, voltando à realidade daquele momento. Percebeu que a tia a observava atentamente, sentada ao lado do marido, e que Tio Dimas também a fitava, do lugar dele numa das cabeceiras. Abaixou a cabeça, como uma criança surpreendida em flagrante. Ciente de que tinha que se controlar, afastar-se da beira do precipício. Como? Era só o que precisava descobrir...

Tia Laila colocou a panela fumegante em cima da mesa, e olhou em direção à sobrinha, que parecia... O quê? Não conseguia definir. Intimidada? Álex não era disso. Incomodada, talvez. Inexplicavelmente, continuava de pé perto da porta. Normalmente era rápida, a primeira a sentar. Como Laila gostava de implicar, parecia sempre... Faminta.

Mas não naquela refeição. Teve que chamar:

– Vem comer, Álex. A comida vai esfriar.

Para que, finalmente, Alexandra sentasse no lugar dela, com Talita entre ela e a tal de Alícia, e se servisse.

Tia Laila ergueu os olhos para cima e suspirou, numa prece silenciosa para que o passado não se repetisse. Tudo, menos aquilo. Mas, no fundo, era inegável. Já sentia.

O sino da Casa do Senhor soou dezenove horas, como se entoasse para todos a dolorosa percepção do que estava acontecendo. Como se ele estivesse vendo, ouvindo e provando de novo... O suave tom do abismo.


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