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Capítulo 1

Alexandra apertou as mãos em torno da caneca fumegante. Sorveu o líquido negro rapidamente, ingerindo o calor antes que ele se extinguisse. Uma parcela ínfima, mas satisfatória, de alívio pelos segundos em que conseguiu afastar o enregelar dos dedos e de todo o resto do organismo, causado pelo intenso frio.

Quando terminou, suspirou fundo. A fumaça escapou dos lábios, deixando neles um quase sorriso.

Não que fosse o tipo de pessoa amarga, depressiva ou pessimista. Era apenas... Orgulhava-se de ser, na verdade. Realista. Absoluta e totalmente prática.

Do tipo que não se apega – sequer cogita – a coisas que não sejam palpáveis. Uma sobrevivente. Forte, firme e, acima de tudo, racional. Adaptada às intempéries de um tempo em que a escuridão é material, e não apenas subjetiva.

Largou a xícara em cima da mesa com cautela. Aproveitando o restinho de vela – que chegando ao fim trepidava –, aproximou o rosto da janela e, com a ponta do casaco de lã, limpou o vidro embaçado antes de aventurar o olhar no breu. Forçou os olhos a vislumbrarem o pequeno ponto de luz que se erguia solitário acima de todas as janelas da Cidade Alta – sempre o último a se extinguir.

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Sofia não se recordava de haver passado uma ocasião sequer sem insônia. Mesmo ainda muito pequenina, jamais havia conseguido cumprir a quantidade de horas que o senso comum dizia ser necessário dormir.

Se é que, depois de tudo, senso comum ainda fosse algo que merecesse ser ouvido...

Sofia não se lembrava da bola brilhante que costumava arder no céu – nem chegara a conhecê-la. Nunca a tinha visto. Mas os livros... Vários deles diziam que o sol realmente havia existido. Uma época em que o tempo se dividia, repartido entre claro e obscuro. Luz e escuridão. Noite e dia.

Livros proibidos, lógico. Do tipo que Sofia conseguia de forma clandestina, devorava e escondia debaixo das tábuas do assoalho para que os pais não descobrissem.

Letras, palavras e frases que, juntas, pareciam formar nela sentimentos e questionamentos responsáveis, em grande parte, pela falta de sono e isolamento. E que a faziam... Lutar contra si mesma. Os olhos procurando algo no breu lá embaixo, enquanto a chama da vela se extinguia. Os pés descalços, apesar dos dedos ficarem dormentes e os ombros e o pescoço se encolherem debaixo do sobretudo pesado e do cachecol de lã vermelha.

A ponto dos músculos reclamarem, doloridos pela tensão que o toque gélido da madeira produzia. O que procurava? O que desejava? O que realmente queria? Mesmo se tentasse, Sofia não saberia responder. Nem poderia. Era algo totalmente irracional, desprovido de sentido. Mas que a fazia sentir-se viva.

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As badaladas do sino da Casa do Senhor encontraram os olhos de Alexandra já abertos. Fato que, por si só, não fazia diferença. Impossível enxergar um palmo que fosse antes de acender uma vela, um lampião ou um candeeiro. Ela não se importava. Na verdade, estava muito mais do que acostumada. Sequer sabia como era ter luz sem que ela fosse artificialmente produzida.

Continuou deitada durante aqueles últimos segundos restantes enquanto contava mentalmente:

– Uma... Duas... Três... Quatro... Cinco...

Horas. Nunca havia se questionado, muito menos duvidado da veracidade do soar daquelas batidas. O número precisava, ou melhor, instituía o horário que a vila inteira, sem exceção, seguia.

Afastou as cobertas e corajosamente enfrentou o ar frio. O corpo tiritando incontrolavelmente durante muito pouco tempo, porque a primeira coisa que fez ao se levantar foi se vestir. No escuro, como sempre fazia, com a precisão de quem consegue enxergar além do que os olhos podem fazer. Acostumada a ver muito mais pelo gosto, som, tato e cheiro. Capaz de fechar, com as pontas dos dedos, cada botão, zíper ou fecho. Sem entender direito o porquê das pessoas fazerem tanta questão da visão. Os olhos enganavam, enquanto a escuridão parecia trazer... Uma suave sensação de ser, realmente, livre. Como um confortável e seguro abrigo onde podia simplesmente descansar, respirar, esconder-se. De quê? De nada que Alexandra pudesse ou quisesse confessar.

Prendeu os cabelos num rabo de cavalo frouxo, sempre com a peculiar intimidade que tinha com o não ver. Abriu a porta do quarto e atravessou o pequeno corredor com passos firmes e decididos. Na porta da cozinha, antes de entrar, parou por um momento. Fechou os olhos, sorrindo ao saborear melhor as vozes e os aromas tão conhecidos, o som do estômago que, ao despertar, sempre clamava por comida. Aquilo sim fazia sentido. Muito mais do que as sombras projetadas na parede indicando que a família toda já se encontrava ali reunida. Imagens. Alexandra desconfiava delas. Mais do que isso: de alguma forma inexplicável, sentia que para ela significavam... Uma estranha e terrível forma de perigo.

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Quando o sino da Casa do Senhor bateu cinco horas, Sofia ainda não havia conseguido dormir.

Tapou os ouvidos com as mãos inutilmente. Mesmo se não pudesse escutar, poderia senti-lo vibrar perfeitamente. O chão, as paredes e a própria mente reboando a ordem estabelecida que todos deveriam seguir. Óbvio que, àquela altura da vida, Sofia já havia aprendido a simular, ocultar, negar e... Mentir.

Jamais demonstrar o que realmente pensava e sentia. Apesar de, no fundo, saber perfeitamente que não conseguia. Todos, principalmente a própria família, achavam-na...

Estranha. Esquisita. E até um pouco mais do que isso. Notório era o fato de que, se Sofia se mostrasse, fosse como realmente era, ao invés do disfarce nem um pouco convincente... Seria inaceitável. Em poucas palavras: ser quem era por si só já era, no mínimo, um perigo.

Mas quem diabos estabelecia tudo aquilo? Como ter certeza de que eram cinco e não dez, quinze, ou vinte? Que diferença isso tinha? Toda a ideia da contagem de horas, minutos e segundos não passava mesmo de algo convencionado, concebido na vã tentativa de aprisionar o tempo, algo absolutamente relativo... Se o dia não mais existia, e nunca amanhecia, dormir num horário determinado também não fazia o menor sentido. Pensando um pouco... Só mais um pouco... Qual a diferença entre estar acordada e dormir? Em ambos os casos, a impressão que tinha era de estar sempre anestesiada, sonhando, fora de si... Como um zumbi que confunde reflexos mecânicos do próprio corpo com um verdadeiro sopro de vida.

Mais uma vela chegou ao fim, o pavio ameaçando se afogar na cera derretida. Um último e breve aviso da escuridão que vinha. Só de pensar na possibilidade, Sofia estremeceu, um arrepio de pânico subindo pela espinha. Detestava o escuro. Mais do que isso: o temia. Só suportava a ideia dos olhos se tornarem supérfluos enquanto dormia, porque... Por meio deles sentia, entendia, compreendia que o mundo – e não apenas ela, como havia demorado tanto para descobrir – realmente existia.

__


– Por favor, tia Álex...

A decepção fez um brilho úmido surgir nos olhinhos ansiosos da menina.

– Álex, você prometeu!

A frase da prima foi muito mais do que incisiva. Cobrança que continha – Alexandra sabia, e como sabia! – milhares de outras coisas. Situações e conflitos. Mágoas não resolvidas.

– Tudo bem. Pode vir comigo.

Talita saltitou com os bracinhos para cima, numa comemoração infantil muito mais do que efusiva. Nívia a olhou em silêncio. O canto da boca deixando escorrer um esgar amargo que qualquer outra pessoa poderia confundir com um semi sorriso. Não Alexandra. Conhecia bem demais a prima. Muito mais do que gostaria. Se o passado é algo do qual não se pode fugir, a maior prova estava ali. Naquele par de olhos que pareciam nunca deixar de segui-la:

– Termine de comer, Talita! – A garota obedeceu, agarrando a colher e levando o conteúdo da tigela na frente dela à boca de uma forma que era... – Segura essa colher direito! Onde já se viu? – Voltou a corrigir.

O silêncio de Gustavo mostrou que ele estava de acordo com a esposa. Já Alexandra...

Alexandra sorriu. Achando a mãozinha com os dedos desajeitadamente fechados sobre a colher algo divertido, pueril. Talita, obviamente, corrigiu-os. Exatamente como eles queriam, passando a comer conforme os bons modos diziam. Num princípio de supressão da naturalidade infantil, que pouco a pouco seria substituída por regras de conduta, padrões, artifícios... Alexandra conhecia bem aquilo. Convenções do que deveriam e poderiam fazer ou não. Muitas vezes suprimindo a possibilidade ínfima de alguns poucos momentos felizes. Mas quem tinha tempo para pensar nisso? Quando cada segundo perdido poderia significar a diferença entre se ter ou não um prato de comida? Assim era e assim sempre seria. A própria Alexandra não questionava nada, apenas seguia o que lhe era cobrado e exigido.

– Vai para o campo Norte, Álex?

Como resposta, Alexandra sacudiu a cabeça numa afirmativa e completou:

– E depois no Mercado Público.

Sem levantar os olhos do pedaço de pão que mordia. Não precisava olhar. A tensão do tio era perceptível:

– Acha prudente levar a menina?

Alexandra deu de ombros. Precisava trocar as peles dos animais que caçava por outras coisas que necessitavam. Apesar de não ser considerado um lugar exatamente bem visto, somente no Mercado Público isso era possível.

Percebeu quando Tio Dimas enxugou o suor da testa no tecido rústico da camisa antes de trocar um olhar significativo com a esposa. Ainda assim, Álex continuou simulando estar absolutamente interessada na comida.

Foi o calor da mão da tia no rosto dela, numa leve carícia, que a fez levantar os olhos para encarar a preocupação dos dois idosos que a haviam criado como filha:

– Não tem nada de mais. E vocês sabem disso.

A voz de Tia Laila saiu embargada, como se contivesse algo que a impedisse de sair:

– Se pudesse, nunca a deixaria sair daqui...

Virou de costas, uma das mãos no rosto, tapando a boca, a outra na altura da cintura do avental que vestia. Inútil tentativa de disfarçar aquilo que Alexandra podia farejar em forma de arrepio. O ardor dolorido que subia e, em forma de lágrimas, escorria sempre que falavam sobre algo que lembrasse o passado.

Rapidamente, Alexandra se levantou e passou os braços ao redor da tia:

– Fica tranquila. Cuido dela direitinho. Não tem perigo.

Mentira. E todos sabiam. Mas, cotidianamente, Alexandra afastava toda e qualquer forma de receio se recusando a pensar naquilo... No momento fatídico em que...

Tia Laila se virou em desespero para Gustavo, mas ele enfiou ainda mais a cabeça dentro do prato, abstendo-se de interferir. Incrivelmente, foi Nívia quem decidiu:

– Talita vai.

Apesar da mãe protestar:

– Mas, Nívia... Por favor, filha...

Nívia virou-se para Alexandra e, olhando-a nos olhos, pronunciou de forma firme:

– Ninguém cuidaria melhor dela do que você, Álex. – O mesmo sorriso furtivo passou rapidamente pelo rosto das duas antes de Nívia encerrar, com um seco e definitivo: – Não podemos criar uma criança com medo, numa redoma de vidro.

Depois de um último gole de café, e ainda sob o impacto das palavras que Nívia havia proferido, Alexandra partiu com a pequena Talita saltitando atrás dela.

Não se deixou contagiar pela felicidade explícita da menina. Ainda não sabia se aquela era uma forma de expurgar ou aumentar os fantasmas que a perseguiam.

__


Somente o frágil raio de luz da lanterna da bicicleta rasgava a escuridão da estrada de terra cheia de pequenas pedrinhas que pareciam brilhar aos olhos de Sofia.

Estendeu as mãos, num desejo quase febril de tocá-las, mas logo desistiu, porque... A carta de baralho presa à roda produzia um estranho e sinistro som de roleta que a fazia se encolher em arrepios. Batidas simétricas que dolorosamente se repetiam. O barulho aumentou, como se penetrasse na mente de Sofia. Ela se debateu, tentando em vão manter o sonho que fugia. Sentiu que caía. Tentou se agarrar a... A quê? Não conseguiu distinguir... Ouviu alguém gritar, sem perceber que era ela mesma. Sentiu o corpo saltar. Convulsões do organismo que voltava a si.

E, então, com profundo pesar, soube que havia acordado.

Não abriu os olhos de imediato. Não havia motivo. Nada para ver na escuridão total.

Ficou imóvel, deitada sob o peso das grossas camadas de cobertores que usava para dormir, tentando se lembrar do que estava sonhando, mas, como sempre depois que despertava, não conseguiu.

Nenhuma imagem. Nada. Apenas a estranha sensação que sempre persistia. De algo familiar que Sofia não sabia dizer o que era. Angústia traduzida pelo suor frio que a percorria.

– Dá licença, senhorita Sofia?

A voz suave, profundamente doce, soou tímida do outro lado da porta, depois de três leves batidas.

– Alícia... – Sofia sussurrou baixinho. Os anos não conseguindo extinguir o calor que aquelas sílabas produziam... – Entra.

Falou tentando manter um tom firme. Disfarçando a impressão amargurada, triste, nostálgica por aquilo que nunca havia acontecido. Bobagem pensar. Na verdade, jamais teria coragem de confessar para a companheira de brincadeiras de infância o que sentia. Como poderia? Todo e qualquer resquício da intimidade passada havia sido engolido pela realidade que agora as envolvia.

Alícia, filha da cozinheira e, depois que ficara órfã, também parte da criadagem. E Sofia... Sofia sequer tinha palavras para se definir.

Olhou para a mulher parada no vão da porta, segurando o lampião na altura do rosto, o reflexo das chamas fazendo com que a beleza dela luzisse, absolutamente inatingível... Esqueceu o que ia dizer. Na verdade, perdeu-se na imensidão que olhar para Alícia sempre produzia.

– Sua mãe mandou avisar que o almoço está servido e que estão todos esperando a senhorita na sala.

A distância na voz dela... De uma formalidade indiferente, quase maquinal... Ardeu no peito de Sofia. Não um ardor de calor e fogo, como gostaria. E sim... Um gélido queimar de frio.

– Diga que já estou indo.

Respondeu com a voz tremida, mas, provavelmente, Alícia não percebeu. Sequer ouviu, porque... A voz de Sofia foi abafada pelas badaladas das horas tocadas pelo sino.

Doze ao todo. Um tempo em suspenso, em que as duas permaneceram paradas, sem se fitarem diretamente, numa espécie de limbo.

Assim que o silêncio retornou, Alícia se retirou, fechando rapidamente a porta atrás de si, como se evitasse ficar um instante a mais do que o necessário ali. Imersa novamente no escuro absoluto, Sofia deixou escapar um longo e amargurado suspiro.

__


Talita não precisou de ajuda para deixar a segurança da carroça. Chegou ao chão sozinha, de uma forma tão rápida e ágil que Alexandra se surpreendeu. Independência, coragem e iniciativa. Excelentes qualidades para sobreviver ali.

Afastando os pensamentos que a distraíam, Alexandra deixou o único lampião aceso com a menina encolhida no casaquinho grosso. Precisava se manter alerta, naquele momento mais do que nunca, porque... Não era só a vida dela que dependia da prontidão com que pudesse antecipar qualquer tipo de perigo. E, definitivamente, o que menos precisava era ter mais uma culpa somada às muitas que já carregava consigo.

Amarrou o velho cavalo sem se incomodar com os dedos estarem gélidos. Nunca, jamais usava luvas. O tato era um sentido importante demais para ser perdido.

Esfregou as mãos antes de pegar o lampião de volta, e o manteve erguido na frente delas, iluminando o caminho.

– Tia Álex...

Sem se virar, Alexandra a interrompeu:

– Quieta!

Ordem ríspida, grave, brusca. Sussurrada para ser ouvida apenas pela menina. Talita a seguiu bem de perto. Encolheu-se mais ainda, enfiou as mãos nos bolsos, num silêncio que era... Um visível sacrifício. Obviamente, estava ansiosa, querendo fazer milhares de perguntas. Ainda assim, continuou completamente muda.

Fazendo Alexandra sorrir. Controle. Equilíbrio. Disciplina. Talita precisava compreender que eram coisas imprescindíveis.

Pararam em frente a um grande portão de ferro, onde uma janelinha minúscula se abriu.

Os dois olhos que surgiram imediatamente perderam o ar desconfiado e sorriram:

– Ora, ora... Álex! Que bons ventos te trazem aqui? E trazendo companhia?

O portão se abriu para que entrassem. O par de olhos se materializando na figura de um homem muito sorridente, da altura de Talita.

A menina o fitou, absolutamente surpresa. Nunca havia visto um adulto tão pequeno, sequer cogitava a ideia de existir um assim.

– Algum problema, menininha?

Talita abaixou os olhos, envergonhada por estar encarando o que, para ela, era um homem em miniatura, e pediu, quase num sussurro:

– Desculpa...

Alexandra interferiu:

– É a primeira vez que ela sai da vila.

A justificativa surtiu o efeito desejado. O homenzinho voltou a sorrir. Talita retribuiu e Alexandra os apresentou:

– Victor, essa é Talita. Talita, Victor.

Só depois que os dois apertaram as mãos com uma seriedade que chegava a ser engraçada, Alexandra completou:

– Vou dar uma volta com ela, mostrar que a vida é mais do que aquele buraco onde vive.

A resposta de Victor foi um animado:

– Ah, sim, sim. Bem vindas ao Mercado Público! – E, num aparte para Talita, completou: – E ao mundo!

Alexandra estremeceu com a afirmação e seus milhares de sentidos. Afastou os pensamentos negativos apagando o lampião num sopro e o estendeu para Talita.

Antes de prosseguir, orientou:

– Fique sempre perto de mim. É muito fácil se perder aqui.

Com os olhos muito arregalados, a menina fez que sim. E só então começou a reparar no lugar que era... Completamente diferente de tudo que já havia visto.

Uma grande estufa onde se poderia obter absolutamente tudo: de objetos a seres humanos – assim Alexandra o definiria se fosse o tipo de pessoa que perde tempo divagando em busca de definições para as coisas. Para a pequena Talita, era como... Uma maravilhosa e fantástica casa de vidro gigante.

Pela primeira vez na vida, não sentia o corpo tiritando de frio. Mais incrível ainda: nunca havia visto tanta claridade junta.

Archotes, lampiões, fogueiras, velas maiores que ela... Toda espécie de luz. Algumas que sequer conhecia.

Uma curiosa diversidade de pessoas transitava no vai e vem frenético entre as incontáveis barraquinhas. Cheiros conhecidos a envolviam: alho, óleos aromatizantes, animais, frutas, pães... Outros cujos nomes não sabia...

Parou ao lado da tia com todos os sentidos num movimento incessante, tentando absorver o maior número de informações possível.

Enquanto isso, Alexandra tirou as peles do alforje que carregava, e trocou por algumas coisas que precisava, ato que se repetiu em diversos estandes.

No último, onde um sem número de frutas coloridas eram exibidas em profusão, quase pôde sentir a boca de Talita se enchendo de água. Por um momento, desejou satisfazer a vontade evidente da menina, mas não. "É preciso entender desde cedo que não podemos nos dar a certos luxos", afirmou mentalmente, como se tentasse convencer a si mesma.

Hesitou – coisa rara, inexistente na vida dela –, tentada a dar uma das frutas para a criança. Acabou chamando Talita num tom impaciente e irritado de frustração:

– Vamos!

Caminharam mais um pouco. Os passos de Alexandra agora tão rápidos que, para acompanhá-la, Talita precisou correr.

Ao perceber o esforço da pequenina, parou em frente a um homem suado e sem camisa que martelava um pedaço de ferro incandescente. Quando ele mergulhou o ferro em brasa na terrina de água ao lado, a fumaça chiada fez a menina deixar escapar uma exclamação de deleite.

– Dando uma de babá, Álex?

Alexandra não precisou se virar para saber quem era a autora da frase. A única que ousaria falar assim tão próximo ao ouvido dela. Uma voz muito mais do que conhecida. Portadora de incontáveis, inegáveis, inevitáveis perigos.

– Melina...

Talita fitou com curiosidade a morena que sorria com o corpo quase grudado no da tia.

– Posso te ajudar, caçadora?

O tom malicioso e provocante fez Alexandra rir. E se virar, exatamente como Melina queria. Olharam juntas para Talita, que ainda as observava. Melina abaixou, até ficar com os olhos na altura dos da menina, e perguntou:

– Quer uma?

Talita fitou as maçãs na cesta que a morena carregava com cobiça. Mas, antes de responder, olhou pedindo permissão para a tia. Quando Alexandra assentiu, murmurou um ansioso:

– Sim, por favor.

Melina sorriu ao ver o prazer com que a maçã foi mordida. E, então, com a menina devidamente distraída, pousou a mão no ombro de Alexandra e sussurrou:

– E você? Também quer... Uma maçã?

Imediata e bruscamente, Alexandra a afastou:

– Está louca? – Mais do que desconforto, havia receio na voz dela. Melina olhou em volta, tentando ver se alguém as observava, só então parecendo temer o ato impensado e suas consequências. Reação que fez Alexandra murmurar de forma bem mais amena: – Tudo bem. Ninguém percebeu.

Roçou a mão de leve, disfarçadamente na dela:

– Seja mais discreta.

Apesar da sutileza do toque, que ilustrava bem o que Alexandra estava dizendo, Melina se derreteu:

– Difícil quando estou perto de você, mas... Vou ser.

A morena então voltou a sorrir e sussurrou baixinho, com o mesmo tom malicioso de antes:

– E então? Vai querer... Ou não?

Alexandra pesou os prós e os contras. Uma olhada para Talita, mordendo a maçã com o mais puro e ingênuo entusiasmo infantil, fez com que mudasse de ideia. Não ia arriscar a inocência da criança:

– Hoje não.

Determinada a mudar a negativa para um sim, Melina retrucou:

– Volta depois... Sozinha... E eu te dou...

Deixou a frase propositalmente em suspenso. Alexandra não aguentou. Correspondeu com um riso tão rouco e provocante quanto a forma com que falou:

– O quê?

A morena não respondeu. Avaliou Alexandra de cima a baixo, com um sorriso insinuante. Passou a língua nos lábios antes de sussurrar:

– Tudo que você quiser, meu amor.

Alexandra respirou fundo. Sabendo perfeitamente que nunca, jamais conseguiria resistir ao que a morena oferecia. Não lamentava, mas também não se orgulhava disso. Durante anos havia conseguido evitar, sufocar o que o corpo pedia. Até Melina surgir, proporcionando... Uma vergonhosa forma de alívio. Breve, fugaz e fugidia. Reprovável, mas, ainda assim, um alívio. Forte o bastante para afastar a culpa de Alexandra durante os momentos em que se permitia ceder aos instintos. Apesar de errado, precisava daquilo. Foi esquiva:

– Vou tentar. Mas não prometo.

Melina suspirou, sem esconder a decepção. Não era, nem de longe, a resposta que esperava. Porém, conhecia Alexandra o suficiente para saber quando parar de insistir.

Alexandra a beijou no rosto, agradeceu a fruta e, sem olhar para trás, afastou-se, seguida de perto por Talita, que, alheia a todo o resto, roía prazerosamente o talo da maçã.

__


Sofia respirou fundo antes de entrar na sala de jantar. Como quem toma coragem para o ritual diário. Não era à toa que, desde criança, adorava ficar doente. Única forma de obter permissão para fazer as refeições no quarto. Não que o ambiente fosse desconfortável. Pelo contrário. O cômodo aquecido, ampla e ricamente iluminado e decorado – regalia de alguns poucos privilegiados –, e as criadas servindo a comida muito mais do que farta eram a ostentação daquilo que a maioria das pessoas almejava.

E exatamente o que Sofia mais abominava.

Não compreendia como os pais e a irmã mais nova conseguiam usufruir de tudo aquilo com uma indiferença quase fatigada enquanto na Cidade Baixa...

Sofia não sabia ao certo, nunca havia estado lá, mas podia imaginar pelo pouco que conseguira juntar das conversas que furtivamente escutava da criadagem.

Algo dentro dela rejeitava intensamente todo e qualquer tipo de desigualdade. Sentia-se desconfortável, quase envergonhada de ficar ali sentada à mesa enquanto as criadas de olhos baixos a serviam, sem dar uma palavra.

Se pudessem – por um único momento – abandonar a mudez que a suposta inferioridade lhes impunha, o que diriam? O que teriam para reivindicar, questionar, acrescentar? Ou realmente seriam como o pai costumava constantemente declarar:

– Quase irracionais.

No fundo, por mais que Sofia se esforçasse em afastar qualquer forma de pensamento elitista, separatista ou preconceituoso, era muito difícil se livrar das rígidas estruturas moldadas em seu inconsciente desde a infância. Para ela, a ideia de alguém que nunca houvesse aberto um livro era... Uma grande tristeza. Um imenso infortúnio.

Apesar de estar cansada de saber que as empregadas, assim como todos os outros moradores da Cidade Baixa, sequer sabiam ler.

Lembrava-se da reação de Alícia, anos antes, quando havia se oferecido para ensiná-la.

Misto de desprezo, indignação e raiva.

Como se tivesse proposto algo...

Imoral.

Leis que Sofia simplesmente não entendia, nem conseguia aceitar.

Como alguém poderia decidir quem tinha permissão para aprender a ler ou não?

Mais absurdo ainda era o fato de os poucos que podiam ler terem o tipo de leitura regulado de acordo com a família, posição social e função. Por que proibir qualquer tipo de leitura que não fosse didática ou científica?

Sofia não sabia.

Não havia explicação.

Uma única vez tivera coragem de perguntar.

Jamais esqueceria o horror causado pelo questionamento, muito menos a resposta quase gritada do pai, depois de tê-la calado com uma bofetada no rosto forte o suficiente para que dos olhos, ainda pequenos, brotassem lágrimas:

– Nunca mais fale ou pense sobre isso! Entendeu, Sofia?

A mãe, em meio ao quase desmaio que sempre a acometia quando algo a aborrecia, sussurrando para o marido com a falta de ar dramática:

– O que eu fiz de errado, Marcus? A culpa é minha?

O pai correndo, pegando a mulher nos braços e a acalmando:

– Calma, Elisa. Custe o que custar, eu corrijo essa menina!

Fizeram com que Sofia se arrependesse e aprendesse a não expor o que realmente tinha por dentro. A partir daquele momento, passou a simular, camuflar, esconder todo e qualquer questionamento.

No entanto, não se rendeu.

Recusando-se a seguir – mesmo que em segredo – as regras estabelecidas.

Os livros clandestinos debaixo do assoalho do quarto eram a única forma de alívio que conhecia.

Era relativamente fácil consegui-los. Por sorte, o velho barbado de roupas muito surradas que cuidava da estufa de flores da mãe os trocava por coisas que Sofia surrupiava – e que para ela pareciam sem valor e triviais: roupas, comida, sapatos, cobertores, utensílios de casa. Para o velho, objetos inestimáveis. Essenciais.

Ainda assim, evidente era o pesar com que ele se separava dos livros. Acariciando as capas surradas com um olhar nostálgico e perdido, sempre repetindo:

– Eram do meu pai.

Os pensamentos de Sofia foram interrompidos pela entrada de Alícia carregando uma bandeja com quatro taças. O encanto que a simples presença dela surtia a impedindo de perceber que não era comum tomarem champanhe no almoço.

Quando deu por si, o pai estava sorrindo para ela, a taça erguida:

– Um brinde!

Não precisou pronunciar uma palavra para que a mãe percebesse que não havia entendido:

– Sofia! Não ouviu nada do que seu pai disse?

Sofia continuou em silêncio.

A irmã deixou escapar uma risada alta, imediatamente inibida pelo olhar de reprovação do pai, segundos antes de voltar a atenção para a filha mais velha:

– Sofia... Às vezes chego a me perguntar se você não é autista. Será possível que...

– Marcus!

A esposa o cortou. Não para defender a filha, e sim... Para resolver logo aquilo. Já estava começando a sofrer com as primeiras pontadas da enxaqueca crônica.

O pai então pronunciou as palavras que Sofia mais temia. Piores do que uma sentença de morte:

– Seu casamento está acertado. Em menos de quarenta e oito horas você será a senhora Filipe Grimberg. Parabéns, filha!

Pela primeira vez na vida, Sofia sentiu um forte ímpeto de reagir. Difícil, quase impossível, sufocá-lo como estava tão habituada a fazer.

Mas conseguiu.

Perfeitamente ciente de que não havia outra opção.

Nada além de aceitar o que os pais tinham decidido: Filipe Grimberg, filho do homem mais poderoso da cidade vizinha. Casamento combinado desde que Sofia havia nascido.

Percebeu que, no fundo, nutria a esperança de...

De quê? Desfazer um acordo de casamento era algo que nunca, jamais havia acontecido.

– Um brinde! À prosperidade, felicidade e sucesso de nossa família!

A união indesejada significava para ela algo totalmente contrário. O fim do pouco que apreciava e possuía. Privacidade, livros e a perda mais profunda de todas: Alícia.

Completamente desestruturada com a notícia, a mão trêmula que estendeu para pegar a taça foi a mesma que a derrubou.

Alícia se aproximou e limpou a toalha de mesa com uma prontidão incrível. Por um breve momento, os olhos cruzaram com os de Sofia, deixando entrever um brilho... Levemente triste.

Seria possível? Ou estaria interpretando errado, vendo o que gostaria?

Antes que Sofia pudesse chegar a uma conclusão, Alícia pegou o último caco de vidro e desapareceu com a mesma rapidez com que havia surgido.

– E então? Está feliz?

Respondeu à pergunta do pai da melhor forma possível. Com um curto e seco:

– Sim.

Foi a mãe quem pronunciou as palavras que tornaram verdadeira a afirmativa:

– Pode escolher uma das criadas para levar com você, filha.

Com um sorriso que deixou os pais muito mais do que satisfeitos – afinal, nem imaginavam o motivo verdadeiro – não hesitou, saboreou quando disse:

– Alícia. 


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