Ὕπνος Θάνατος
I
Meus olhos se abriram junto ao corpo que procurava oxigênio para se manter vivo. Meus pulsos cerraram e foram de encontro à madeira que me rodeava. Quanto mais eu esmurrava, mais farelos de terra caiam sobre mim, deixando o doce cheiro do barro molhado adentrar o cubÃculo. Onde eu estava? Meu Deus, por quê?! Não sei de onde eu encontrei forças. Eu só soube bater meus pés e braços contra a tampa, que já dava sinais de fraqueza pelas cicatrizes que surgiam nela, e empurrei.
Gemi, erguendo a cabeça em busca de ar fresco. Esfreguei os olhos com as mãos sujas e vi que meu corpo estava coberto de sangue seco.
Onde eu estive nas últimas horas? Quem eu era?
O QUE ERA AQUELE LOCAL?!
Ainda dentro do caixão, eu vislumbrava uma sala feita de paralelepÃpedos ornados com desenhos complexos feitos de sangue, no mesmo tempo em que corpos pútridos de mulheres nuas tinham fixadas em seus pescoços não cabeças humanas, mas cabeças de bodes com adagas inficadas no meio dos olhos. Meu corpo tremeu. Eu, mesmo sendo uma bruxa, nunca passei por tal ocasião. Tentava me lembrar para quê eu tinha ido até ali, mas só quando ouvi passos vindos do lado de fora, foi que tive coragem de recordar os motivos pelos quais eu visitei aquele ambiente.
â Sandra... â uma voz grave chamou da direção da porta á direita, e então um homem negro de túnica preta surgiu, segurando em sua mão direita uma espada, e na esquerda, a cabeça escalpelada do meu assistente, Roberto.
II
12 de outubro de 2017, 4º Distrito Policial â Consolação
Sandra Ãlvares Miller, 27 anos, investigadora criminal do Instituto de PerÃcia Civil da Cidade de São Paulo (IPCSP). Há pouco tempo tive o prazer de provar as responsabilidades deste cargo e desde então trabalho com a minha equipe sob o senso de justiça provindo não de meus superiores, mas de mim mesma, pois eu não teria misericórdia com pessoas que infringiam o código penal, sabendo que o paÃs está corrompido por tudo o que há de pior.
Minha sala cinzenta deixava-me serena para analisar um caso mais do que anormal, arquivado por documentos extensos sobre a minha mesa. Abri a pasta vermelha e visualizei com nojo as fotos, retiradas no Cemitério da Consolação, de corpos violados desde a madrugada do dia 01/05/2017, cujos rostos tinham rastros de esperma assim como nos órgãos sexuais. Homens, mulheres, crianças e idosos. Nenhum biótipo, gênero ou idade foram poupados. Há algum tempo, cadáveres estavam sendo retirados de seus jazigos e caixões para serem profanados por alguém, que sequer as câmeras do cemitério conseguiam captar.
Mais um caso absurdo para uma cidade movimentada como São Paulo. Por mais que o local fosse aclamado como o cemitério mais belo e equipado com câmeras de vigilância de alta tecnologia, além de seguranças zelando pelas esculturas de ferro e bronze; por algum passe de mágica, corpos recém-sepultados voltavam a surgir do lado de fora, como se o agressor desejasse que todos vissem suas obras. Gradualmente, um caso de necrofilia evoluiu com a progressão do modus operandi do dito cujo insidioso, que passou a escrever com o fio de navalhas frases na pele dos mortos.
As sentenças eram carregadas de metáforas, frases desconexas e orações góticas; beirando à loucura de quem não compreendia suas próprias palavras. Contudo, depois de algum tempo, ao combinar tudo o que foi deixado, cheguei à transcrição de um texto conciso de clamor deixado pelo autor:
Sono e morte andam juntos, nasceram juntos e permanecerão juntos. Do alto, provieram almas cativas, errantes e selvagens para adentrar os corpos e contemplar o Ãnfimo fio da existência de expiação, à procura de um alento capaz de libertá-las do estigma de erro deixado pelo Criador. Quando elas se vão, dois cadáveres são deixados. O fÃsico permanece em nossos túmulos, o astral prende-se à s obras das mãos humanas e na alma dos vivos sob a forma de larvas rastejantes. Porém, oh morte e sono, estas não representam nada sem vossas graças. O tempo longÃnquo de outrora vos sepultou, mas eis o momento do retorno. Sessenta e seis almas serão retiradas, outras, infectadas por vossas dádivas, somente para que tragam a este mundo o nome que lhes foi dado: a morte e o sono, o sono e a morte: ...
A última parte ainda não tinha sido revelada, mas uma coisa era certa: sessenta e cinco corpos (almas) tinham sido profanados no decorrer dos meses. O caso tornou-se mais um tesouro para a mÃdia famigerada, e ninguém ousou caminhar próximo do cemitério â temendo o pior. Policiais vigiavam por 24 horas o interior da planta, entretanto, em nenhuma circunstância, conseguiram sequer pistas de que havia alguém naquela merda.
Irritada com a situação, eu não deixaria que mais uma pessoa fosse assassinada. Por isso, me levantei, coloquei os papéis dentro da bolsa e olhei o relógio: 18h00.
Em breve, a viatura me levaria junto com meus assistentes, Bruno e Roberto, para uma investigação de campo, dessa vez, durante a madrugada inteira. Sai da sala e encontrei os rapazes sentados de frente para a televisão, a qual mostrava mais um caso de homicÃdio na Zona Leste de São Paulo.
Ergui o peito e desliguei o aparelho, espalmando a mão na direção de Bruno.
â As armas e a munição â ordenei.
Ele me olhou debochadamente e coçou a têmpora. Depois se levantou sorrindo e pegou uma bolsa preta embaixo da mesa. Enfim, abriu o zÃper e mostrou o recheio mais desejado por mim: armas calibre 38, pentes de balas, dentre outros brinquedinhos utilizados para minhas "caçadas" noturnas.
Assenti com a cabeça e sai de lá para fumar um cigarro.
Na escadaria do instituto, sentei sobre a mureta da lateral, retirei um derby suave da bolsa e o acendi, sugando-o em uma tragada nervosa para afagar minha ansiedade. Do outro lado da rua, pessoas passavam como formigas. No meio delas, uma mulher vestida de vermelho acenava para mim e eu sorria, baforando no ar a neblina suave do possÃvel câncer que eu teria em minha velhice. Joguei o cigarro no chão e pisei com o salto sobre ele. Fechei os olhos, segurei a pedra de turmalina preta do meu pingente e pensei "venha ao meu encontro e me proteja". Olhei do outro lado da rua, mas a mulher já não estava lá. Olhei para o lado, lá estava ela preparada para me proteger.
â Chefe, o carro chegou. Vamos logo â Roberto me chamou ao lado de Bruno.
Segurei minha bolsa e os acompanhei.
â Como eu tinha dito, não tenham misericórdia. Vocês sabem como a lei é... Caso não tiver jeito, apaguem o infeliz!
Eles fizeram que sim com a cabeça. A porta do Civic preto se abriu e eu entrei, olhando, talvez, pela última vez, o céu alaranjado perdendo força para a escuridão que lhe imperava.
Do meu lado, a mulher tombava a cabeça em meu ombro enquanto falava comigo:
â Ore para Deus e ele te ajudará. Sandra, você é querida. Não se engane pelos homens e pelos mortos. Sua vontade é soberana enquanto eu estiver aqui.
III
O carro entrou pelo arco e um grupo de policiais já aguardava minha chegada. Admirei as artes sepulcrais, regadas a Ãdolos divinos dentre tantos outros. Por um segundo, lembrei do meu pai, do meu maldito pai que se encontrava, graças aos céus, morto e enterrado para nunca mais me fazer sofrer. Pigarreei tentando retirar o ódio de minha garganta e sai pela porta aberta por Roberto.
Imponente como eu era conhecida, fui rodeada pelos rapazes. Retirei alguns papéis de minha bolsa e entreguei um a cada um, enquanto lhes deixava as orientações:
â Hoje será um dia único. Quero que tenham força e não tenham misericórdia. Vasculhem toda a área, iluminem o local e foquem onde os corpos foram encontrados; de acordo com as ruas indicadas no mapa. Eu, por minha vez, â virei de costas â ficarei com Bruno e Roberto vasculhando a área central.
Quiçá fossem homens de verdade para me questionar! Como cachorros que eram, aceitaram minhas ordens e dissiparam-se como fumaça. Naquele instante, apesar da sede de justiça, minha libido estava aguçada ao ver as barbas encorpadas nas faces dos meus assistentes. Como de costume, mordisquei os lábios e eles me seguiram para a casa da administração do cemitério â vazia conforme o acordado para que eu pudesse me instalar.
A noite caiu como uma bigorna, o frio acometeu o ambiente e a lua foi sobreposta pelas nuvens carregadas de água. Dentro da casa, fui conduzida por Bruno, o trintão caucasiano, e Roberto, o moreno de olhos castanhos. Segundos depois, minhas unhas arranhavam a madeira da mesa com foracidade, sentindo o branquinho dentro de mim enquanto o moreno me beijava. Porém...
Três batidas na porta.
â Que merda! â ralhei, vestindo-me como uma louca.
Por sorte, os rapazes estavam vestidos adequadamente. Bastou fechar os zÃperes...
Pronto!
Com raiva, eu abri a porta, porém, só encontrei o vento gélido acariciando meu rosto.
As luzes outrora acesas pelos policiais tinham desaparecido. Foi assim que entendi que algo estava errado.
Chamei meus garotos com a mão e pedi que eles dessem uma volta.
â Vão logo. Levem as armas â ordenei, já com o meu calibre 38 empunhado.
Eles se foram com cautela.
Já eu, fechei a porta e dei de costas para pegar mais um cigarro na mesa ao lado. Ouvi uma respiração atrás de mim, minha espinha estremeceu, e, quando virei, vi três homens encapuzados à frente gargalhando, à medida que o punho de um deles acertava minha cabeça até que eu perdesse a consciência.
IV
â Quem é você, maldito?! â perguntei, chorando copiosamente enquanto via os olhos esbranquiçados na cabeça de Roberto.
A mulher de vermelho estava ao meu lado de olhos arregalados como eu nunca tinha visto na vida.
â Mate-o, Sandra! Mate-o agora! â ela pediu.
O homem ergueu os olhos e então apontou na direção dela. Eu segurei a pedra em meu pescoço e resfoleguei de pavor. Ninguém além de mim deveria vê-la.
â Acha que eu não consigo ver sua amiga, Sandra? Sua pomba-gira é fraca contra mim! â ele gritou e apontou a espada na direção dela, que se materializou no ar e urrou de dor, sentindo sua pele ser lacerada por lacraias gigantes que a perfuraram pelos olhos para depois queimá-la.
Agora, em minha mente, tentando lembrar-se de tudo o que eu já tinha estudado sobre espÃritos e magia, tentei entender que tipo de mago teria o poder capaz de sobrepujar um guardião daquela maneira. Minha pulsação aumentou, meu coração descompassou e meu estado de vigÃlia explodiu quando eu avancei no homem, chutando a cabeça de Roberto para o lado, a fim de, logo em seguida, retirar a espada das mãos do desgraçado à frente.
Ele me atacou com seus punhos grandes. Eu desviei.
â Outra vez não! â alertei, chutando o saco do infeliz para depois acertá-lo no rosto com uma cotovelada.
Ele me chamou de vadia e se contorceu de dor. Foi nessa deixa que tive a oportunidade de pegar a espada caÃda no chão e perfurá-lo na garganta, girando-a como uma chave para que eu tivesse a certeza de que ele estava morto!
â MATOU O MEU AMADO! SEU DESGRAÃADO! QUEIME NO FOGO DO INFERNO! â gritei, vertendo lágrimas, sentindo minha aura pulsar enquanto o sangue do homem esguichava sobre mim.
Não obstante o golpe, porém, ele ainda sorria. E disse pela última vez, com a voz afogada no próprio sangue:
â O sono e a morte estão chegando.
Retirei a espada, ergui-a com ira e a baixei, cortando de vez a cabeça do infeliz.
No fim, respirando profundamente, sai da sala segurando a espada, pensando em qual tipo de loucura eu tinha me metido. Do lado de fora, havia um corredor comprido de pedras rústicas iluminado por tochas de madeira. Minha mente não estava preparada para aquilo. O que era aquele homem de fato? Evitei fazer barulho e apalpei minha perna, à procura da minha arma escondida. Por sorte, dentro da minha bota, ela estava segura, pronta para ser utilizada. Pequena e eficaz, como eu dizia para o descompensado Bruno em nossas noites de prazer.
Pensei nele e no Roberto. Mas não havia tempo para lamentar. A vontade de viver gritava mais alta, e, seco como meu coração era, preferi seguir, percebendo que o corredor tratava-se de um grande labirinto vazio, onde somente as gotas do teto faziam barulho. "Que merda está acontecendo aqui? Magia negra?" Virei à direita, depois à esquerda. Tateei as paredes em busca de algum orifÃcio para visualizar o interior de algumas salas trancadas. Até que encontrei uma porta diferente, com um pentagrama em seu interior, levemente aberta e iluminada por velas pretas.
Entrei com cautela, verificando se havia ou não alguém ali, e fechei a porta.
Parei, respirei, segurei minha cabeça e abri os olhos de novo só para ter certeza de que o que eu estava vendo era verdade. Uma tábua de pedra do tamanho de uma maca tinha o corpo de Bruno desmaiado sobre ela, ainda corado de rosa como suas bochechas ficavam quando estava com tesão. Ele estava nu, com sua barriga estufada e suas mãos contorcidas, a despeito de ter um sorriso sarcástico no rosto. A sala era simplória e tinha sobre as mesas de madeira alguns livros antigos amarelados pelo tempo.
â Bruno, acorda... â cochichei ao balançar o corpo dele.
Coloquei a mão sobre o coração. Ainda havia pulsação. Fiquei feliz por encontrá-lo vivo, mas me espantei quando vi os sÃmbolos á½ÏÎ½Î¿Ï ÎάναÏÎ¿Ï serem talhados em seu peito por uma energia invisÃvel. Não sabia de qual alfabeto aqueles ideogramas faziam parte, e mesmo que soubesse, não saberia traduzi-los.
Vendo que sangue escorria, rasguei um pedaço da minha blusa e a coloquei sobre a escrita, tentando estancar os cortes.
As velas tremeluziram e um sopro passou pelos meus ouvidos. "Sono...", ouvi de um lado. Virei o pescoço com medo e do outro lado ouvi "Morte...". A terra tremeu, eu larguei o tecido e segurei a pedra do meu pingente, lembrando-me de uma magia de proteção contra os espÃritos das trevas. Tirei a turmalina de dentro do invólucro de tecido e a segurei com força. "Grande Deusa, permita-me a graça de ter o poder para enfrentar os espÃritos das trevas que aqui habitam. Protejei sua serva e traga-me a glória do Criador e do Arquiteto para que o mal jamais me sobrepuja", invoquei, apertando o objeto contra minha mão até que ela sangrasse.
As primeiras gotas caÃram no chão. Molhei o dedo indicador e médio na ferida e desenhei alguns sÃmbolos sobre os meus antebraços. As velas pararam de tremer, mas, quando eu pensei que tudo estava bem, os livros envelhecidos se abriram de uma vez só, convidando-me a lê-los. Não titubeei, dirigi-me ao mais imponente arquivo e me deparei com imagens rebuscadas coladas contra uma folha antiga. Em uma delas, havia a um ser escuro sobreposto por um homem nu, na segunda, somente duas pessoas dormindo em seus aposentos.
Virei a página e, à tinta azul, li as orientações deixadas ali, escritas por uma letra que me parecia familiar e estranha ao mesmo tempo:
Organize a ordem pelos frigorÃficos de modo a espalhar a essência da morte sobre todos. Tal ato é essencial para que o ritual tenha cadência. Vibrio vulnificus.
Desde as mais nobres quanto as de segunda mão devem receber a dose exata de ácido ascórbico juntamente á mistura de Lavior di Nirus, a bebida sagrada do sono.
Supervisione a distribuição, deixe com que os olhos de Trianor vejam os escolhidos. Quando prontos, busquem suas famÃlias e aguarde o nascimento dos filhos da noite.
Ao final, traga até aqui o receptáculo, onde o espÃrito do sono jaz para aqueles que têm medo do fim.
Ass.: Sandra Ãlvares Miller
Afastei-me abafando um grito de pavor assim que vi meu nome assinado com a minha própria letra.
Uma mão forte agarrou meu braço, e eu me virei, gritando em seguida:
â SAIA!
Mas quem me segurava era Bruno, olhando-me com seus olhos piedosos.
Eu o beijei em seguida, sentindo seu calor em meu corpo. Afastei dele e o segurei pelo rosto, contemplando seu semblante angelical.
â O que aconteceu conosco? â perguntei.
â Esqueça tudo o que aconteceu, Sandra. Venha. Vou te guiar até onde o lÃder está.
â Que lÃder, Bruno? Está ficando louco?
Ele me largou, abriu a porta e se foi. Com medo de perdê-lo, o segui após pegar a espada de cima da tábua de mármore, acompanhando-o pelo corredor comprido; que terminava em uma porta dourada a qual eu não me lembrava de estar ali na última vez que olhei o labirinto.
â Bruno, Bruno, vamos sair daqui! â eu pedia, porém, era ignorada.
Segui adiante, ele virou-se e sorriu, fazendo que sim para que eu entrasse quando ele afastou com dificuldade as duas bandas de porta feitas do que parecia ouro, tendo talhadas em sua superfÃcie os mesmos sÃmbolos de seu peito: á½ÏÎ½Î¿Ï ÎάναÏοÏ. Quando terminou, um salão limpo com pilastras que iam do chão ao teto com linhas verticais desenhadas em sua extensão, eram acompanhadas de estátuas de querubins, velas brancas e, sobretudo, de um mausoléu de mais de cinco metros de altura formado por pequenas estátuas de bronze, dispostas como se contassem uma história.
No topo, a lua estava acima das estrelas e dela caiam pingos compridos que se transformavam em um mar de corpos, de onde dois homens idênticos levantavam-se sobre cavalos sem cabeça. Abaixo, eles eram glorificados por pessoas ajoelhadas, recebendo a benção de suas mãos. Porém, quanto mais a imagem descia, pior a história ficava. Do lado direito, mulheres tinham lanças introduzidas em suas vaginas e do outro, jovens tinham seus anus violados por imagens confusas análogas a feras. No final, â onde as portas do mausoléu estavam â imagens de alto relevo de ferro mostravam que os homens glorificados tinham sido mortos pelas próprias pessoas as quais tinham impelido o sofrimento e a morte.
No rodapé do portão, havia a única frase em português que eu tinha visto: "A magia é o produto infinito dos nossos desejos mais profundos". Minha espinha arrepiou, e Bruno afastou o portão, entrando na escuridão de uma escadaria de pedras.
Recuei e não o segui, nem tentei impedi-lo. O que estava acontecendo transcendia minha capacidade intelectual e mesmo espiritual. Por isso, uni minhas mãos e orei mais uma vez à Deusa e a Deus, para que eles me guiassem por aquele caminho tortuoso. Ouvi gritos de pavor saÃrem de dentro do Mausoléu e lamentei por Bruno, pensando no que ele estaria passando.
Ergui minhas mãos, ainda com os sÃmbolos de sangue desenhados em meus antebraços e resgatei as lembranças mais obscuras do meu passado.
Sentimentos geram sensações, sensações geram desejos, desejos, o próprio feitiço.
Espalmei minhas mãos contra as portas do mausoléu e entoei a melodia das florestas, buscando selar o que havia ali dentro. Minha pele ardeu como brasas, as velas se apagaram, emergindo meu corpo na escuridão; e então olhos vermelhos romperam na penumbra, onde o rosto demonÃaco de um homem cadavérico, de cabelos longos que iam até a altura dos calcanhares, surgiu, sendo sobreposto por uma sombra maior na forma de duas asas angelicais.
â Sua magia é fraca, bruxa. Não tem como me enfrentar...
â E o que você é? â perguntei.
Ele bateu palmas e as luzes retornaram, revelando seu corpo trajado de túnica negra com detalhes dourados, embora as asas já não fossem mais visÃveis. Ao lado dele, Bruno estava esquartejado, mas ainda respirava, apesar de ambos os olhos estarem fora das órbitas.
O ser se afastou e apontou seu dedo para as imagens do portão.
Elas ferveram como ferro fundido e se reagruparam, revelando os malditos ideogramas mais uma vez: á½ÏÎ½Î¿Ï ÎάναÏοÏ.
â Você ainda não compreende, criança, mas o corpo que a tua alma habita não lhe pertence.
â Cale-se! â asseverei, sentindo a energia borbulhante sair de minha mão e encontrá-lo. â Quem é você?!
â Veja os sÃmbolos â ele respondeu.
As palavras se embaralharam, trocando os ideogramas por letras, Ã medida que o ser sorria.
á½ÏÎ½Î¿Ï H. I. P. N. O. S. ÎάναÏÎ¿Ï T. H. A. N. A. T. O. S.
â Nem um demônio, alma, muito menos um espÃrito â ele comentou, tirando de suas costas uma foice. â Eu sou um Deus! E agora você dará seu corpo para que o meu irmão retorne!
Não suportei a pressão, retirei a turmalina do meu bolso e a joguei contra ele. A pedra explodiu no ar como fumaça, e o monstro avançou contra mim. Por um momento, vi minha pomba-gira surgir atrás dele com um grupo de homens de cartola, segurando-o para me proteger.
â Corra, Sandra! Nós iremos impedi-lo enquanto for possÃvel! â ela disse.
Meus pés foram tocados por Bruno, que disse "eu também te amo", deixando a vida para trás. Chorei por não poder salvá-lo e corri em direção à saÃda. Ao passo que eu fazia força contra as portas douradas, as velas tremeluziam e um som agudo de águia se espalhou pelo salão. Olhei de esguelha para trás. O Deus estava sendo segurado pelos espÃritos, contudo, sua aura negra cresceu como uma bomba de gás e os transformou em pó. Pé a pé, ele veio na minha direção enquanto contava sua história pessoal:
â Eu sou Thanatos, Deus da Morte e de todas as mazelas que existem neste planeta. No inÃcio, eu e meu irmão nascemos de uma bruxa chamada Nix, que foi glorificada na Grécia durante seus últimos anos de vida. Eu e ele, como ela, evoluÃmos na magia e fomos tidos como entidades do fim. Porém, nossos seguidores mais leais nos mataram, trancando nossa alma neste mausoléu, que foi trazido para cá muito antes do cemitério ser construÃdo. Agora, você será o corpo do meu irmão!
â Por quê?! â perguntei, pressionando minhas costas contra as portas de ouro.
â Você é seca, podre, sábia e humilde ao mesmo tempo. Mas o que lhe faz ser tão atraente para o meu irmão é a capacidade de adormecer a vontade dos outros em razão dos seus desejos! Mulher forte que domina os homens, hoje você será o receptáculo do sono encarnado! Hipnos, meu irmão, venha!
O templo ficou sereno como se a paz ali habitasse. As paredes expeliram cachoeiras de sangue e as estátuas dos querubins tomaram vida, entoando uma canção aguda como se evocassem algo. Tanathos abriu os braços e um pilar de luz o iluminou. Detrás dele, um homem igual, mas dourado, saiu segurando em seus braços uma harpa. Ele lambeu os lábios e cochichou algo nos ouvidos da outra entidade.
Eu fechei os olhos e vasculhei minha mente, procurando tudo o que eu sabia sobre os gêmeos da mitologia grega, que até então eram somente mitos, vivos diante de mim. Segundo as escrituras, eles não eram malignos, porém, o que demonstravam aqui se devia a um fato inerente a somente uma espécie deste planeta, capaz de sobrepujar os outros em razão do desejo pessoal. Estes eram os humanos, e, se de fato já foram pessoas no passado, ainda havia esperança para destruÃ-los.
"A magia é o produto infinito dos nossos desejos mais profundos"
Inspirei, pensei no universo tomando conta de mim e desejei do fundo do meu coração que eles desaparecessem. Abri os olhos preenchidos por algo sobre-humano e apontei minhas mãos na direção dos deuses. Hipnos e Thanatos urraram, suas bocas se rasgaram e seus braços expuseram os ossos para fora. Suas peles apodreceram e então seus corpos foram queimados como papéis em uma fogueira. No entanto, a realidade se distorceu e eu já não estava mais ali. Meu corpo agora estava deitado sobre um jazigo de mármore preto, rodeado por centenas de estátuas de bronze ajoelhadas.
Olhei minhas mãos sujas de sangue e os cadáveres de Bruno e de Roberto ao meu lado, cortados, frios e pálidos. Olhei para mim, estava nua. Vi o que o meu pênis continuava ereto, ainda sujo de sangue e esperma.
Segurei minha cabeça, acometida por uma dor lancinante. E lembrei de todo o meu caminho até ali e de como eu tinha feito meus crimes inconscientes.
Minha visão turvou e a imagem de Hipnos se fez.
"Eu sempre desejei um corpo masculino, assim como eu nasci. Mas quando te descobri, a desejei de um jeito que jamais imaginei. Onde já se viu um macho travestido de mulher, com uma personalidade tão forte e bruta capaz de sobrepujar mesmo os homens?! Sandra, ou melhor, Rafael, você é um tesouro em vida, atormentado pelo estupro causado por seu pai. Mas, apesar disso, viveu com bravura e será por isso que se tornará o meu corpo. Agora, veja o que você fez durante todos esses meses!"
NÃO! Eu só queria ser feliz como todos são! Eu só desejava a minha liberdade e não a destruição dos outros, apesar deles merecerem o pior! Eu vi tudo acontecer! A morte de todas aquelas pessoas e, por fim, a dos meus amados. Eu não aguentava mais, aquele deus profano dominava meu corpo enquanto eu dormia, e transava com os corpos como um animal selvagem. Eu...
Cale-se, Rafael!
Agora eu estou aqui para cumprir minha missão com meu irmão Thanatos!
Levantei do jazigo.
As estátuas se moveram, retornando para seus locais de origem.
Meu corpo sujo foi limpo pela minha aura dourada e minhas vestes de linho branco materializaram-se ao meu redor, acompanhadas de um elmo dourado colocado em minha cabeça. Meu irmão veio ao meu lado e segurou minha mão. Não demorou muito para que dez viaturas invadissem o local, despejando policiais armados até os dentes para nos matar.
Rajadas de fuzis passaram por nossos corpos quando eles viram a situação dos cadáveres de Bruno e Roberto. Claro que eles não deveriam atirar a esmo, mas essa era uma ordem do meu eu antigo, Sandra, a qual não foi reconhecida, já que eu delineei seu semblante masculino, deixando para trás as cirurgias realizadas na face.
Os tiros cessaram, eu olhei para os olhos verdes do meu irmão e apontei minha mão na direção dos policiais. Podres almas que nunca descansam! Meu poder os sobrepujou, fazendo deles animais indefesos quando o sono profundo os acometeu.
No entanto, eu era misericordioso demais...
â Isso é pouco para eles, irmão... â Thanatos disse, baixou-se sobre o solo e o tocou com as duas mãos, entoando a antiga canção ensinada pela minha mãe Nix.
Os portões dos mausoléus mais próximos foram apodrecidos pela influência de Thanatos. Agora que todos os sessenta e seis corpos estavam profanados, e as pessoas que tinham comido a carne contaminada por nós, sacrificadas, a energia de seus espÃritos jamais retornariam para o céu, como deveria ser, e se tornariam a fonte do nosso poder divino.
Na porta de cada mausoléu, saiu um irmão ou irmã da prole da noite, aqueles que nasceram junto comigo e Thanatos. Seus nomes eram Ãter, o senhor do céu, Aspérides, deusa da tarde, Filotes, deus da amizade, Geras, o ancião da velhice, Momo, deus da alegria, Oizus, deus da miséria, Nêmesis, deusa da vingança, Quer, deusa do destino, e Moros, o senhor do pagamento.
Juntos, poderÃamos trazer nossa mãe de volta. Mas já me sentia feliz, pois ao meu lado, Morfeu, Ãcelo, Fântaso e Fantasia, meus amados filhos e filhas, estavam prontos para dar um fim a este paÃs e, por fim, no mundo.
A nova era dos deuses tinha chegado!
V
A televisão de Daniel estava ligada no canal 5, como de costume, quando a chamada de urgência foi acionada durante a apresentação do programa Mais Você. Um jornalista magro, com olheiras salientes, segurava seu microfone com as mãos trêmulas, dizendo:
â Urgente. Hoje, todas as pessoas do bairro da consolação amanheceram mortas em suas casas e nas ruas. As autoridades ainda não sabem do que se trata, porém...
A cabeça do repórter foi cortada e detrás dele surgiram os rostos de Hipnos e Thanatos seguidos de seus irmãos, bem como de uma massa negra sobre suas cabeças, retirando o alvo azul do céu para que a noite imperasse para sempre.
"A magia é o produto infinito dos nossos desejos mais profundos"
***
GOSTOU? DEIXE SEU VOTO E COMENTÃRIOS, COMPARTILHE COM SEUS AMIGOS.Â
CONHEÃA TAMBÃM A DAMA DE BRANCO
https://www.wattpad.com/story/106109117-a-dama-de-branco
Em um tempo distante do arquipélago de Fernando de Noronha, Pedro se vê perdido em pensamos negativos. A rotina seguia seu rumo, o jantar foi servido em sua humilde casa. Sua mãe aguardava o marido junto com seus irmãos. Contudo... "aterrorizado por saber que meu pai estaria debaixo daqueles trapos, fiquei paralisado, vendo a vida tão vazia se tornar o caos." Agora, depois de saber que seu progenitor foi assassinado dentro de uma caverna, salpicado de terços e imagens santificadas quebradas, as dúvidas se assomariam ao luto e Pedro teria de encontrar a razão da fatalidade para acalmar sua alma. Só assim ele veria a verdade... E você, se desejar, também aprenderá que há desejos que não devem ser evocados! Siga o autor nas Redes Sociais:Â
Facebook: https://www.facebook.com/danilo.almeidasp
Página D.A. Potens: https://www.facebook.com/DAPOTENS/Instagram: dapotens2017
Skoob: https://www.skoob.com.br/autor/18412-da-potens
Conheça outras obras:A Rainha da Morte:Â
https://www.amazon.com.br/RAINHA-MORTE-Contos-Mortais-Livro-ebook/dp/B06XKVTP6B/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1492271406&sr=8-1&keywords=a+rainha+da+morte
O Menino do Metrô:Â
https://www.amazon.com.br/MENINO-DO-METR%C3%94-D-Potens-ebook/dp/B06ZXQYQFT/ref=sr_1_1?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1492271435&sr=1-1&keywords=o+menino+do+metr%C3%B4
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro