I
Vovô abriu a porta do quarto e colocou a cabeça para dentro, para observar o que eu fazia por ali. Ele sorriu enquanto alisava seu bigode basto e branco, que por aqueles tempos cultivava com certo esmero vaidoso. O bigode dava um charme especial para o seu rosto, deixando com um aspecto misterioso. Os cabelos brancos, fluidos e levemente ondulados, cintilavam, refletindo o brilho amarelado das chamas das velas em candelabros e castiçais.
— Pituquinha, o horário de adormecer já chegou. — Ele passava por ali todos os dias antes de se recolher, para analisar como estava a minha adaptação, visto que eu não dormia mais no quarto do meu pai.
Eu já estava crescida o suficiente para conseguir pedir socorro, então passei a usar o meu próprio quarto.
Era lindo. Tinha uma enorme cama de madeira em tom avermelhado, com dossel. Tecidos leves, esvoaçantes, com bordados de flores silvestres coloridas, feitos à mão, enfeitavam a estrutura. Tudo adornado com fitas de cetim e rendas em tons de verde claro e lilás, que lembravam a chegada da primavera. O colchão era grosso, de brocado, com enchimento de plumas macias. Estava sempre coberto com colchas lindas que vovô comprava das habilidosas artesãs da vila. Havia janela com alpendre e pesadas cortinas, além de janelas menores. O quarto permitia a entrada de iluminação, que deixava tudo com um aspecto especial. O chão de pedra era forrado com carpetes, havia aparadores, uma sala de banho, uma mesa com cadeira, um espelho grande e uma mesa com um espelho pequeno menor onde ficavam meus adornos e cosméticos. Havia muitos travesseiros e almofadas para todo lado.
Às vezes eu sentia muito medo do escuro, mas ficava calada sobre isso porque me convenci de que precisava enfrentar os desafios para ficar mais forte e valente. Eu era corajosa, um mero escuro não poderia me deter.
— Sim, vovô Barakj. — Anuí enquanto agarrava a boneca que estava na cama comigo.
O meu bisavô entrou no quarto, discretamente conferindo todos os cantos com o olhar, como sempre fazia. Caminhou até a cama com as mãos atrás das costas, contando passos. Quando parou ao meu lado, me deu um beijo na testa e arrumou meus cabelos dentro da touca de tecido. Ele me cobriu.
— Que seus sonhos alcancem os lugares que apenas pessoas como você podem alcançar. — Desejou e sorriu. — Durma bem, Pituquinha.
Fechei os olhos. Senti o cheiro das velas apagadas e ouvi quando ele fechou a porta. Relaxei o corpo, amolecendo sobre o colchão enquanto deslizava para outro lugar, além da consciência.
Vagarosamente levantei as pálpebras, me deparando com um lugar bem iluminado. A luz exuberante fazia folhas e flores cintilarem sob um céu de azul puríssimo, com nuvens brancas graciosas em seu balé lento de passagem, movendo-se em aventuras pacientes. Um vento suave passou pela minha pele, fazendo cócegas na bochecha. Senti pelo tato das palmas das mãos que não estava mais sobre um colchão e nem tinha a minha boneca. Em lugar dessa sensação, senti o leve pinicar da relva macia. Pulei assustada, pondo-me em pé, completamente consciente de que não estava no meu mundo.
Apesar de assombrada com aquela realidade desconhecida, não havia mais temor em mim do que no olhar da bela e airosa elfa de pele um pouco escura, que me fitava com seus grandes e expressivos olhos castanhos de íris brilhantes. Ela tinha rosto estreito, com nariz mediano, levemente arrebitado e gracioso. Os lábios, médios, eram cheios e rosados. As sobrancelhas, retas e finas, traziam à sua expressão um ar naturalmente decidido. Os cabelos longos, escuros, levemente ondulados, com suaves cachos nas pontas, se levantavam com o vento em movimento rebelde momentâneo. Apesar de cheios, não escondiam as orelhas pontudas. Ela trazia sobre a cabeça uma coroa de flores roxas, frescas, que não murchavam. Flores miúdas, de pétalas quase indistinguíveis entre si, misturadas ao verde de folhas de trevo.
Ela usava um vestido simples, com alças finas, que parecia ser feito de folhas compridas e largas. Era vermelho, com pequenas flores campainha penduradas, que balançavam quando ela se movia. Nas mãos, segurava um papel desgastado e amarelado, com aparência de papiro muito antigo, maltratado pelo tempo.
Movi meus pés, sentindo as folhas da relva entrarem entre os meus dedos. Percebi que sobre ela estava a copa de uma grande árvore, de tronco largo. A relva acabava em uma faixa de areia branca, que se estendia alguns metros até um riacho calmo, de águas muito cristalinas, que corriam suavemente e brilhavam sob o sol. Às margens do riacho havia algumas pedras grandes e no fundo dele pedras pequenas, lisas e coloridas.
Notei que eu ainda usava camisola e touca.
Olhei para o lado e vi um ser diferente. Uma criatura humanóide, de corpo esguio, orelhas e focinho de felino, chifres no topo da cabeça e olhos heterocromáticos. Ostentava uma bela cor púrpura e longos cabelos ruivos, grossos e pesados. Usava um vestido preto, ricamente adornado com detalhes cor-de-rosa, cheio de babados e laços. Para arremate da composição de seu estilo, usava meias ¾, pretas, e sapatilhas pretas com laços roxos.
Ela se levantou também, exibindo um esgar de lábios que mostrou as pontas de presas protuberantes. Ela me inquiriu com seus olhos de cores diferentes, como se eu tivesse alguma resposta. Percebi que ela estava dentro de um círculo de pedras com uma estrela de cinco pontas feita com pó dourado no centro dele. Eu estava sobre um igual.
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