14 | ʟᴀᴍᴇɴᴛᴏs
M E E R A
Ainda era uma sensação estranha estar envolvida nesse paralelo.
Em 21 anos de vida, nunca me senti normal. No fundo, sempre desconfiei que havia algo de errado comigo, não era comum tantas tragédias acontecerem sucessivamente a uma garota que sequer conhecia o mundo.
Durante minha vida estive presa numa montanha-russa, alguns momentos eram rápidos demais e outros lentos, quase imóveis. Todas as vezes que estava feliz ou bem comigo mesma, o destino tinha satisfação em desfazer qualquer felicidade. Agora, definitivamente, minha vida virou do avesso com a notícia que pertenço a uma linhagem de bruxas.
É realmente frustrante; uma tortura psicológica sem igual. Meus pensamentos me fazem sentir pavor e culpa. Não suporto à ideia de ter minha irmã presa aqueles monstros. Quando alguém morre, temos a confirmação que ela partiu, mas quando alguém desaparece, não temos noção do que se passa. Nossa mente é perversa e nos faz visualizar os piores cenários.
Estava em completo desespero, sem forças para raciocinar e me sentindo tão horrível que poderia nadar em minha tristeza.
Com as mãos, joguei à água fria sobre o meu rosto, espalhando-o sobre minha pele pálida e limpando às impurezas.
Acordei hoje na confortável cama de Jordan, ou como prefere ser chamado, O Soberano. Aparentemente ele sentia algo parecido com empatia comigo, por mais que fosse incapaz de compreender minhas feridas. Ele me ouviu e me reconfortou. Ele não mentiu. Não inventou desculpas. Ele só foi sincero.
Talvez sejam paranoias e inseguranças minhas, porém prefiro não pôr expectativas. Não quero me desapontar. Apesar de qualquer coisa boa que saia de sua boca, ele jamais deixará de ser um vampiro, está em sua alma ser cruel e repugnante. Tenho medo de conhecer o lado dele que se assemelha aos homens que capturaram minha irmã.
Deduzo que seja por volta das nove da manhã, não tinha um aparelho eletrônico aqui. Esse castelo aparenta ser até um abandonado que vi em filmes de terror. Um casarão de mortos. Jordan me disse que suas criadas iriam me fornecer tudo que fosse pedido, inclusive alimentação e vestimentas. Por muito tempo as responsabilidades respingaram nos meus ombros, então é estranho ter alguém pra me servir quando quiser.
Antes de sair de seus aposentos arrumei primeiramente a cama que repousei. Seria capaz de passar o dia deitada sobre ela, era tão macia quanto algodão. Guardei as cobertas e me guiei até a grande porta de saída, trancando-a após minha retirada.
Descia os degraus de pedra da grandiosa escadaria; conseguia até mesmo ouvir o eco que as paredes vazias reproduziam com os meus passos. Para se tornar uma verdadeira filmografia de Hollywood era preciso só morcegos e cruzes invertidas.
- Meera? - A pronuncia repentina de meu nome ocasionou um espanto instantâneo, especialmente por eu não conhecer aquela voz.
Orientei o meu campo de visão para saber quem me chamava. Me deparei com uma sentinela e Guardiã de Sangue de Jordan, e também um rapaz a centímetros de distância dela.
- S-sim? - Respondi, engolindo em seco, visivelmente constrangida.
- Ah droga, eu devo ter causado uma péssima primeira impressão considerando o susto que você levou. - Se desculpou, franzindo o cenho. - Não nos conhecemos muito bem, eu sou Nathyfa. - Se apresentou formalmente, com uma curva nos lábios. Sua pele preta reluzia com a pouca luz solar; suas írises negras se destacavam em seus cabelos escuros e sedosos que emolduram a sua face.
- E eu sou Gregory, moça, Gregory Ahari. - Me cumprimentou, de maneira gentil.
Desci os degraus e fomos caminhando devagar lado a lado sentido ao pátio, localizado há poucos metros dali.
- Perdão pela expressão, não foi intencional. Acho que já estou traumatizada com vampiros estranhos tentando me sequestrar. - Falei, suspirando e recebendo um olhar solidário.
- Sua experiência com a nossa espécie não é a mais amigável, convenhamos. Passou por muita coisa, você é muito forte, sabia? - Suas palavras fizeram meus olhos marejarem, então desviei as órbitas e contive as lágrimas.
Pensei que já tinha virado essa página e que não choraria hoje, todavia, meu alicerce está mais frágil do que imaginava.
- Faz bastante tempo que sequer senti o cheiro desses alimentos, então, não tinha um bom conhecimento sobre o que poderia agradar o seu paladar. Comprei o que a maioria dos americanos gostam de comer pela manhã: café do Starbucks e Donutts recheados, também deve ter ovos e bacon. - Disse, entregando em minhas mãos uma sacola de papel. Constatei o calor aquecer meus dedos.
- Não precisava, sei me virar com o básico. De qualquer forma, obrigado. - Agradeci, com um sorrisinho estreito no canto da boca.
- Não tem de quê, Meera. Sente-se e aproveite sua refeição. - Demandou, de um jeito simpático.
Segui o que ela solicitou, me acomodando numa das cadeiras do pátio. As nuvens cinzentas acobertavam um clima úmido e melancólico. O vento que soprava por ali era gélido, talvez em razão da floresta que cercava o território.
- Sei que está sendo péssimo lidar com tudo isso, navegar pelas vielas do submundo é árduo e desafiador. - Nathyfa quebrou o silêncio instaurado. O que me fez suspirar e marejar mais uma vez. - O que estou tentando dizer é que você não está sozinha nessa. Quando estamos tristes, todas as coisas ao redor ficam cinza e melancólicas, mas, independente disso, não pense que iremos te deixar desamparada. As buscas pelo Clã Vecilius estão sendo intensas, todos os vampiros dos Estados Unidos procuram por eles. Eu e o meu camarada, Gregory, estamos aqui para a sua proteção. Ídris, Mina, Stefano e os outros, estão por Detroit e todo o Estado de Michigan atrás desses malditos. O que eles fizeram a você não sairá impune, nós acharemos a Carol.
- Me perdoe, é só que palavras não são suficientes para me fazer crê nisso. Cresci escutando que um dia as coisas mudariam, que era impossível viver apenas o lado ruim da vida. Sonhei com o dia que acordaria e não seria infeliz. Cansei de acreditar em promessas vazias. - Revelei, com o líquido quente escorrendo por minha bochecha.
O destino já me deu vários tapas na cara. Só que dessa vez ele quebrou algo além dos meus sentimentos, ele destruiu todos os sonhos e metas que tracei.
- Nem o vampirismo curou meus traumas, Meera. Te compreendo mais do que gostaria. - Exprimiu, apoiando sua cabeça sobre o pilar de mármore.
- Minha irmã é uma pessoa doce, ingênua, inocente. Acredita no lado bom das pessoas; tenho medo do que eles podem fazer com ela. - Declarei, sem olhá-la.
- Talvez hoje não pareça, porém a descrição de sua irmã se encaixava perfeitamente em mim. Eu tinha expectativas com a vida, sabe? Queria ser mãe, ser rodeada por pessoas que me amam, também queria envelhecer, ser avó, ter netinhos para contar minhas histórias. A imortalidade me roubou isso. Não odeio ser parte do submundo, aprendi a gostar, com o tempo vai fazer o mesmo - Alegou, com um timbre suave e emocional.
Ela estava sendo dura consigo mesma. Mulheres reconhecem as dores umas das outras, e à dela é algo que eu podia constatar. Ninguém quer ter uma vida amargurada e, no momento, penso que é isso que se resume à minha.
- Não é algo que gosto de lembrar e nem de falar, entretanto estamos de frente uma a outra e acho que precisa de testemunhos para continuar a ser forte. Sou filha de pais escravizados, vivi uma parte da minha infância em uma senzala, recordo de ver as marcas de açoites nas costas dos meus pais e me perguntar por qual razão eles sofriam tanto. Éramos instrumentos, apenas mão de obra, nossos sonhos não tinham valor algum.
- Sinto muito, não consigo imaginar a dor que isso te traz.
- Olhando daqui, agora me vejo em ti. Você também é doce, Meera. Não esqueça da sua luz. Jamais.
- Minha lâmpada queimou, não tive de trocá-la, estive ocupada demais consertando coisas que estão fora do meu alcance. Talvez seja como você disse, a vida é cruel. A essa altura do campeonato, o que me resta é confiar em vocês.
- Não poderia estar mais certa! - Elogiou, acariciando minha mão com um sorriso largo.
Continuei me alimentando, não fazia ideia do quanto precisava comer de verdade.
- Passei um tempo pensando sobre os clãs de vampiros, pode me explicar como funciona? - Questionei.
- Clãs de vampiros são um tanto confusos, pois, na concepção humana, um clã é formado por pessoas de mesma etnia ou com laços sanguíneos.
- Vampiros em si são confusos. No entanto, não é necessário ter laços parentais para se juntar a um clã, basta passar no ritual de aceitação.
- E como funciona esse ritual? - Indaguei, curiosa e entusiasmada.
- Acontece na lua sangrenta, um dos eventos mais sagrados na nossa espécie. O vampiro que irá passar pelo rito fica no centro na Estrela de Davi, rodeado por 6 humanos que ele matará e o ancião o banhará com o sangue. Se ele for digno, beberá o sangue de todos sem vomitar, mas caso ele coloque tudo pra fora, será executado.
- Por que executado? - Questionei, incrédula com sua última frase.
- Isso significa que ele não será um bom saldado e não tem as qualidades necessárias.
- Isso é injusto, muito injusto. Mas e caso o vampiro deseje ser solitário?
- Não é algo muito recomendável, os vampiros são problemáticos e precisam de alguém superior que responda por seus eventuais crimes. Em suma, é quase como uma necessidade interior seguir ordens, alguns de nós teme a liberdade mais que a prisão.
- Isso foi profundo, apesar de ser um costume extremamente sanguinário e machucar uns três direitos humanos.
- Esse mundo e essa gente são bizarros, mas com o tempo você se habitua e começa a normalizar esse tipo de barbaridade. Não é muito diferente dos humanos, independente da espécie, todos nós almejamos o poder.
- Como já dizia o filósofo consagrado: a vida é uma plástica que não deu certo.
- Falando em filósofos, você sabia que eu já conheci o Karl Marx?
Nathyfa compartilhou comigo momentos icônicos de sua trajetória. As batalhas que lutou, as pessoas importantes que já conheceu como: Martin Luther King e a Rainha Elizabeth II. Foi interessante e reconfortante me distrair dos meus demônios internos, mesmo que apesar de distantes, eles estavam acorrentados em mim.
Captei barulhos de passadas um pouquinho longe de nós. Através do viés do olhar, contemplei não muito afastado, uma estatura masculina e minuciosamente esculpida. Era o temível Soberano, que trajava um terno negro que caia impecavelmente em seu corpo. Seus fios de cabelo dourados se contrastavam com o tom verde esmeralda de suas írises. Ele havia saído no meio da madrugada, e, antes mesmo do meio-dia, já havia regressado.
Ele então se aproximou de mim, em passos lentos. Nathyfa se reverenciou ao seu líder, porém, eu permaneci estática, afinal, ele não é meu líder.
- É bom te ver, Meera. - Falou, ficando ao meu lado. - Nós precisamos conversar.
Por seu semblante já era possível deduzir que o assunto da conversa não era bom, no entanto, vivi coisas ruins demais para permitir que palavras sejam capaz de me fazer sentir dor.
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