
Capítulo 16: Meninos de Deus
*ALERTA DE GATILHOS: RELIGIÃO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, INTOLERÂNCIA RACIAL, EXPOSIÇÃO E CONSUMO DE CONTEÚDO +18.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Fear of the Water - SYML
Franco seguiu plácido até o final da rua sem olhar para trás.
Preenchido pela coragem e esperança, manteve consciência de sua punição ao encarar o portão do internato e jurou que dali para frente tudo se modificaria.
Aceitaria melhorar, se cuidar e nunca se corromper mediante às sentenças da avó. Embora a amasse muito por ter sido a última familiar próxima, ele carregava a dor de sustentar o idêntico sangue percorrer em suas veias.
O sangue que queimava e corroía.
Chutando as pedras soltas pelo caminho de seixos, sem focar a audição no ruído das folhas nas árvores, conforme ouvira bem antes de seu pai falecer, ele sonhou acordado com o sorriso de Gaya.
Aquela garota se apresentava fundamental em sua vida, o apoio dela era também necessário. Ela concedia um pouco da vitalidade que lhe restava. Franco se visualizava equivalente a outra pessoa. Mesmo suportando suas inseguranças, seus problemas, confiaria nela durante toda a eternidade.
1 de Fevereiro de 2009: Um dia antes do Primeiro Quarto Crescente
Numa manhã de domingo, no início do mês de fevereiro, ainda nos tempos de aquário, os pés de Gaya flutuaram ao descer as escadas, pois era seu aniversário. Há tempos que não comemorava com vontade.
Sucedia no dia mais especial das Demdike. A última delas havia crescido mais um pouco e naquele momento se completava os seus dezessete anos, cercada por presentes simples como um bolo de chocolate meio amargo coberto por morangos frescos, o despertar das flores selvagens e o beijo singelo dos ventos.
Qualquer não-bruxo acreditaria que tudo aquilo jamais poderia ocorrer. Era de fato considerado uma magia, no entanto, a natureza sempre se manteve despertada nela, distante do que juramos ser fantasia.
Ela ainda compreendia as flores como nos velhos tempos e logo que subia em seu quarto, topava os pés apressados nos degraus para observar à distância as mais novas do vaso da residência Gregori, mediante à janela, recordava da primeira vez em que o conhecera e seu memorável mostruário de folhas secas.
Da triste papoula, seu coração despedaçava ao ter notado que a melancólica flor havia sucumbido. Se culpava por não ter feito mais que um aviso ao antigo menino. Experienciava as dores de carregar uma habilidade bruxa.
Gaya amadurecia com saudades e heranças familiares.
Ao decorrer das madrugadas, aguardava ansiosa pelo retorno dele, pois até então acreditava que ele fugiria daquele ambiente católico a fim de vê-la conforme lia nos contos de amor e melancolia com páginas amarelas.
Fora as letras de Aretha Franklin dançando ao vento através da vitrola como incenso de jasmim.
Porém, não aconteceu.
À vista disso, se aprofundou nas páginas daquela caderneta preta aveludada, disposta a compor as suas mais sinceras e primeiras letras musicais inspiradas na ausência de alguém que achava estar se apaixonando.
Ao expressar sua saudade, mágoa e resistência, Gaya derramou genuínas lágrimas sobre as folhas, manchou as palavras espalhadas pela tinta da caneta e ali declarou sua profundidade. Além de que uma das que mais sacrificou sua alma, referiu-se a "Borboletas de Cobre":
Não há como considerar que algo decorre
Nem semelhante ao céu que nos contempla afundar
Elas pousaram em meus olhos
Ofuscando a verdade que você admite entregar
Nem sequer as minhas amadas flores
Me permitiram voltar a vislumbrar
E então, ao envolver sua ausência
Transbordar suas dores
As borboletas de cobre ainda me suplicam a perdurar.
Suas referências artísticas eram como ela e a fizeram desejar se tornar uma artista. Apenas registrava amor e vivência como música. Quanto mais existia espaço entre os "rivais", mais folhas eram consumidas e o gosto por tornar suas palavras reconhecidas, brilhava no ínterim da bruxa.
Era também somente uma jovem que até lá falhava em administrar seus sentimentos prematuros, vivenciando numa atmosfera sombria de maldição e fascinação.
Para Gaya, naquele período sua mente estava barulhenta, inquieta para reviver o dia em que nascera. Mas suas mães recordavam cada segundo precioso vivenciado no momento que a jovem Demdike abriu os olhos para o mundo.
Dos primeiros passos na grama, as quedas macias amortecidas pelos pequenos pés redondos e as palavras ainda inéditas que aqueceram o coração das Demdike.
As bochechas sujas com papa de maçã, os cachos minúsculos e crespos a pular de sua cabeça ao pentear, os dedinhos a tocar o rosto do casal que chorava por tanto amor àquela criança...
Gaya havia crescido muito rápido para uma vida inteira de quase eternidade e aos olhos da família.
Anya queria guardá-la de volta em sua barriga. Temia que a menina se afastasse tanto de sua presença. Mas ainda torcia para ela seguir bem.
Delphine era mais analítica e compreendia o crescimento da filha. Havia partido de casa muito jovem, sabia que ao ficar, não seria a mesma pessoa daquele momento. Cuidava, porém, entendia: Gaya precisava criar autonomia como ela fizera tempos passados.
Excesso de proteção sempre alimenta monstros.
Já Anika desejava que sua neta viajasse o mundo, que vivesse os tempos atuais, continuasse os estudos, encontrasse pessoas além do Franco. Gaya poderia viver mais e sozinha, sem precisar de ninguém. Entendia bem sua neta.
Ela despertou entre os cabelos bagunçados e afundados no travesseiro, esfregou os olhos pesados. Há dias que dormia mal no mesmo pijama azul-céu.
Fora acordada pelo cheiro específico de bolo saído do forno que instigou sua barriga que resmungou faminta.
"Bolo de vó Anika", pensou na hora. Da última vez que tentara fazer um bolo junto à Anya, era mais papa que massa fofa e quentinha.
Anika dizia que para se fazer um bom bolo, era necessário acordar de bom humor. Em dias anteriores, Gaya faltou chutar todas as pedras do caminho após quebrar a cabeça com cálculos atrasados e que faltavam ser entregues na aula daquela manhã — por empurrar algumas coisas com a barriga.
E Anya não recebera o mesmo beijo matinal de sua esposa assim que despertaram juntas entre as cobertas. Delphine estava apressada para abrir a floricultura e disparou para adiantar a organização da vitrine. Era quase obrigatório se beijarem para começar o dia bem.
E ao descer comedida pela escada, em busca de entender o que via naquele dia especial, Gaya se deparou com a matriarca sustentando um pequeno bolo nas duas mãos enrugadas, ladeada pela filha e nora que se mostrou apreensiva ao olhar para o canto da porta de entrada
Nos anos anteriores, Gaya sempre questionava a família acerca do que ganharia no seu aniversário. Isso ocorria dias antes da data.
Entretanto, detestava receber presentes exorbitantes. Aceitava abraços, um passeio em família, conhecer museus, fotografar jardins de toda a Inglaterra... prezava por recordações através dos lugares ou lembranças simples que pudesse carregar numa mochila ou apoiar por cima da mesa de cabeceira. Um souvenir.
Também não recusava roupas — de preferência vermelhas —, contudo, esperava que fossem mais baratas que batatas. Não era boba de rejeitar presentes.
— Neste mesmo dia, você abriu seus olhos para o mundo — Anya choramingou e abraçou apertado a jovem bruxa. — Como cresceu, minha flor do sol.
— Ah, mãe... — fora espremida, contudo, amava receber amor de sua família — ... não chore.
— Mas...
— Por favor, mãe — sentiu dó de Anya em pleno aniversário.
Mal sabia que Anya já se preparava para vê-la seguir longe da família.
Pássaros filhotes aprendem a voar um dia.
— Não, não posso mesmo. Vou ter enxaqueca mais tarde — fungou com a voz estremecida e esfregou o nariz.
— E... — Delphine correu para a sala de entrada enquanto a esposa distraía sua filha — ... hoje também completamos dezessete anos de casamento interrompido pelo nascimento do nosso maior e melhor presente que a Mãe Terra nos concedeu — brincou e trouxe consigo uma bicicleta nova enrolada num laço vermelho.
— Minha nossa, me senti culpada — sibilou e riu.
— Aquele momento foi doloroso, querida. Nem me recorde. Só fiquei satisfeita quando ela chorou e olhou para nós — Anya soltou a filha que disparou e agarrou a bicicleta.
— Me perdoe por lhe lembrar disso, amor — Delphine se aproximou da amada, beijou a bochecha carinhosamente e recebeu um selinho como resposta ao pedido de desculpas.
A bicicleta se tratava de um presente em nome de todas. Além do segundo presente nas mãos da idosa.
— Mãe, lhe agradeço imensamente — beijou a bochecha da segunda mãe, que corou emocionada.
— É um presente em nome de todas, filha — as demais concordaram rápido.
— Os jovens de hoje são bem materialistas, hein... — Anika segurava o bolo nas resistentes mãos.
— Vovó, não diga isso — a garota buscou se retratar, sem recordar que Anika brincava e fingiu lamentações. — Deixe-me segurar.
Apanhou o bolo nas mãos e cravou um forte beijo e cheiro na testa da matriarca que acariciou os ombros da neta.
— Sabem que não mereço tudo isso — as três contornaram a jovem bruxa que equilibrava o último presente. — Não mereço mesmo — sustentou o semblante acanhado e olhos reluzentes como gato a pedir por comida ou aconchego.
— Ela finge modéstia na nossa frente. Não posso crer.
— Anya, sustente a situação, querida — resmungou entre os dentes.
— Mas... — Anya detestava vê-la se divertir com isso, porém, fora silenciada pela esposa que via como uma brincadeira.
— Estou sendo sincera, mães.
As escleras saltaram, intimidaram as mães e provocou risos na idosa que tomou o bolo e pôs sobre a mesa, enfiando uma pequena vela guardada no centro da cobertura.
— Se adiantarmos as velas, ainda pegarei manjericão e alho para o jantar. Então, caso respeitem os idosos ansiosos, sigamos agora com o "parabéns", se não for o bastante.
— Penso o mesmo — Delphine correu para buscar o fósforo na gaveta da cozinha.
Anika estava faminta e aguardava comer o bolo na companhia de um chá quentinho antes de partir para a feira, seu passatempo, fora jogar sinuca e cultivar o jardim.
— Desisto! Desisto de tudo! — Gaya largou o livro ao seu lado da cama. — É mais fácil decorar rituais lunares que fórmulas matemáticas. Desisto!
Apenas um abajur de iluminação amarela aceso na companhia de um incenso de jasmim fumaçando o quarto bagunçado por livros e papéis amassados, pudera tranquilizar a Demdike que também ouvia passos apressados e abafados pelo corredor dos quartos.
No instante em que reclamou alto, ouviu-se dois toques na porta que abriu após a permissão da jovem que bufou, lançou o corpo no colchão e se deitou de costas.
— Está tudo bem?
— Estava até o momento que abri o livro — arrancou um repentino sorriso de Anya.
— Vim aqui porque eu e sua mãe sairemos para comemorar o casamento no LaRocca. Deseja que eu traga algum prato? — encostada na porta, Anya se portou carinhosa num vestido médio de flores amarelas e fundo branco com mangas longas.
— Acho que batatas gratinadas com molho verde — respondeu e encarou o teto. — Bastante molho verde — reforçou.
— E orégano?
Ao fundo, Delphine correu apressada para encontrar uma presilha em formato de folha com pedrinhas coloridas
brilhantes
Só se ouviu saltos bater no chão.
— E orégano — notou a mãe arrumada e quase caiu de volta na cama quando se levantou para aproximar-se. — Mãe! Vo-você está...
— Linda? — segurou as pontas do vestido e rodopiou sorrindo.
— Magnífica — completou e apanhou as mãos da mãe. — Parabéns pelo dia de vocês, mamãe.
Gaya percebia que as mães mal comemoravam momentos entre elas. Após seu nascimento, parecia que tudo girava em torno da jovem e o relacionamento entrava em segundo plano.
Às vezes era isso que ocorria.
Porém, ambas se amavam e se respeitavam tanto, que era impossível interromper uma vida inteira juntas.
— Estou maquiada, não me faça chorar. Sua mãe fez esse delineado em mim com tanto cuidado, que não quero borrar — tocou as pontas dos dedos e secou as extremidades dos olhos. — Se eu pudesse e não sentisse dor, tatuaria o delineado nas pálpebras.
— E a senhora... — Gaya sabia o quanto Anya insistia para que a esposa lhe maquiasse.
— Não. Eu não pedi para que ela o fizesse. Foi por livre e espontânea vontade — falou a verdade.
— Sei... — a filha ainda desconfiou.
— Não quer mesmo ir conosco? É o seu dia, filha.
— Agradeço. Realmente não quero ir. Preciso estudar, fazer companhia à vovó, e até prometi que jogaríamos cartas — a mãe escutou concordando com a cabeça. — Não sabem quando terão mais um momento como esse, mãe. Foi você quem me disse que oportunidades só escapam se quisermos ou se houver imprevistos.
De repente, surgiu Delphine com a presilha no cabelo, agarrou a cintura da esposa e entregou um cheiro na lateral do pescoço da amada.
Há tempos que Anya não sentia um arrepio feito aquele, de arrancar os lábios e vestes num único beijo.
— Encontrei a presilha entre as aberturas do sofá — Anya olhou desconfiada para Delphine que prometeu guardar segredo. — Err... quase escapou.
— Delphine... — buscou sigilo e reclamou entre os dentes cerrados.
Havia caído quando tudo se esquentou enquanto estavam deitadas no estofado, degustando de algumas fitas perdidas de vinil.
— Enfim, temos que ir para não perdermos a reserva — cada uma entregou um beijo na testa da filha. — Veja se não bagunça meus incensos — Anya alertou.
— Está certo, está certo — reclamou. — Só quero pegar o de erva-doce.
— E há tempos que queremos reservar a mesa do terraço no LaRocca. Você nem imagina como lá é esplêndido. Fica bem de frente para a lua, possui uma claraboia contornada por samambaias e tiraremos uma foto para preencher a moldura vazia do nosso quarto.
Os olhos de Delphine brilharam como as estrelas daquela noite especial ao descrever o restaurante.
— Finalmente conseguimos aquela mesa. Há tempos que não dedicamos um momento para nós — uniram as testas.
— Um breve tempo calmo para nós.
13 de Março de 2009: Dois dias depois da Lua Cheia
Em março, na qual Rye ainda se preocupava com a ausência da frequente neve que perdurava do mês de dezembro até o atual, Gaya ainda aguardava ansiosa pelo regresso e telefonemas de Franco, enquanto ele comemorava seu aniversário de dezessete anos promovido pelo Reverendo Gaspar.
Ele estava bem melhor que antes.
Surpreendente, caso a bruxa o visse novamente.
O respectivo padre que ele acreditava detestar, se portava como o único que o incentivava a seguir os saudáveis caminhos idealizados por ele.
O Reverendo Gaspar costumava carregar uma feição abatida, quase semelhante aos dos santos de pedra presentes na capela localizada ao lado da estufa do internato.
Também resultava no único dali que o compreendia referente aos seus problemas relacionados à avó. Além de reforçar apoio emocional ao Franco que reprimia sentimentos pelo que passara.
Alimentando um monstro que consumia seu âmago.
E num ato sincero e caridoso, o Reverendo Gaspar uniu todos os estudantes no jardim, na intenção de celebrar uma festa surpresa preparada pela menor parte dos padres, apropriada ao adolescente e com imenso festejo.
Normalmente planejava o mesmo para todos os alunos, todavia, o Franco nunca recebera uma celebração daquelas.
O menino que não era mais a mesma criança de antes, otimamente vestido em seu uniforme, enquanto caminhava pela grama tépida do entardecer, direcionou seus pés às mesas de variados doces, bolinhos de legumes com carne e unido às amizades que acabara de fazer.
Se mostrava satisfeito pelo seu dia, na companhia de novos amigos, do acolhimento que recebeu e por fim, afastado na presença dos outros garotos, formou sua individualidade.
Embora aquela ocasião se mostrasse confortante, Franco Gregori guardava entre chaves e cadeados por dentro de si as saudades de seu pai.
— O menino parece bem melhor que antes.
O Reverendo encostou a mão enrugada no ombro de um dos padres que o acompanhava numa mesa com queijos, pães e sucos.
— Repararam também? — seu tom era animador.
— O Gregori? — o padre ao seu lado perguntou e em silêncio o Reverendo confirmou.
Falara avistando o Gregori se juntar com outros garotos que embaralhavam cartas numa mesa afastada.
— Percebo com os dias, Vosso Reverendíssimo — um dos clérigos concordava com qualquer pensamento e ação do Reverendo.
Era um bom bajulador.
— Apesar do Gregori ser insuportável, noto o mesmo — Mohr respondeu de nariz quase tocando as nuvens, bem pedante.
— Esperavam o quê? Deus está curando nossos jovens do pecado. Notem que resultou em apenas um afastamento das bruxas, que ele retomou toda a vida.
Riu, debochou dos garotos e levou a taça aos lábios finos. Se tratava de um dos sacerdotes que zelavam pelo internato.
— Chega o ruivo de seus cabelos estão vívidos. Sua vitalidade fora sugada — Gordon completou após se distanciar do cálice.
Mas zelar pelo internato se tratava das estruturas. Nada, além disso. Nem mesmos os internos.
— O que disse? — naquela mesa todos se calaram, embora o barulho dos jovens servisse como contraste. — Suas palavras são vergonha para Deus, Padre Gordon — levantou-se da cadeira e intimidou o padre vinte anos mais novo, que abaixou a cabeça. — Todos aqui sabem perfeitamente que aquelas mulheres inspiram mais bondade que nós, mesmo vestidos nestes trajes e vivendo em oração — seu sermão se dirigia a todos. — Não sejamos hipócritas. Pelo Pai que nos observa.
— Me perdoe, Reverendo. Não falei por mal — aparentou ser sincero, contudo, ainda sobrevoaram dúvidas sobre a mesa — Apenas brinquei com algo que todos aqui devem pensar.
— De onde tirou que todos pensam assim? — Padre Mohr interveio. — Não gostar desses garotos, não significa que eu pense dessa maneira, Padre Gordon. Não desrespeite os votos.
Gaspar se mostrou impaciente e torceu para cessar aquela situação.
— Se não falou por mal, seus lábios não iriam proferir tamanha besteira, Gordon. Se manteria calado, quieto em conversa com nosso Pai — sentiu-se exausto em ter que alertar um sacerdote já formado. — Atente-se ao que emite e reforme seus pensamentos, fora as atitudes — voltou a atenção para os demais. — E se todos pensam como o Padre Gordon, espero que se desculpem com Deus. Porque não aguardo que sejam leais ao que prometeram quando selaram os votos. Muito menos a mim e a instituição.
— Me desculpe mais uma vez, Reverendo.
— Deve desculpas a Deus e aos internos — repetiu incisivo e tomou suas forças que pouco restavam por conta da idade. — Pois o próximo assunto ou gracejos repudiantes pode se referir a você sem que perceba, Padre Gordon.
— Tal atitude não se repetirá, Reverendíssimo.
O reverendo dirigiu a atenção para os estudantes que se divertiam ao lado do aniversariante que o notou distante e meigo, acenou levemente com a mão, agradeceu por toda a festa e reverenciou o momento.
Seus olhos transmitiram tudo.
— Palavras são tão poderosas quanto os céus. Capazes de destruir um único indivíduo, uma massa, e em simultâneo, reconstruir ou saciar o ego — falou enquanto se alegrava pela felicidade do amaldiçoado e esqueceu de toda a irritação. — Corrijam os pensamentos antes de emitirem o que se passa na cabeça. Ninguém chega ao céu julgando.
Na tarde do domingo de março, do intervalo entre as disciplinas de matemática e literatura inglesa, exausto por ter que cumprir faltas num fim de semana, Franco seguiu escondido, junto aos seus quatro colegas de sala, a fim de conversarem por um longo tempo.
Ultrapassando as horas no banheiro, no intuito de escaparem das cansadas e deprimentes aulas.
O Gregori adorava arriscar. Apreciava alimentar sua adrenalina para se sentir existindo.
Aqueles jovens ainda se encontravam na fase das descobertas. Bem distante de colecionar folhas ou coisas semelhantes.
Entraram na fase das paixões, onde o físico despertava curiosidade e desse modo, um deles carregou consigo algo inusitado no interesse de compartilhar com os demais.
O Gregori nunca se aproximava de assuntos ou conteúdo para além de sua idade. Inclusive se sentia tímido ao escutar dos meninos sobre como treinar beijos no espelho e recordar do teste falho com o reflexo lambuzado.
Nem sabia como se aproximar. Muito menos beijar.
Em algumas situações pensava invejar Gaya tendo seu primeiro beijo com algum garoto mais corajoso, enquanto ele mal podia encostar numa garota que não fosse ela.
Se Franco pudesse escolher a pessoa que lhe tocaria os lábios e mãos, sem dúvidas seria a garota.
Eles formaram um pequeno círculo ao se sentarem no chão, observaram se haveria algum movimento no extenso corredor e começaram a distribuir entre si um objeto incomum.
— Olhem o que eu trouxe — as palavras pareceram cantadas.
Um jovem de cabelos ruivos e pele cheia de sardas sacou da mochila uma revista estranha e empolgou os jovens garotos.
— Durante nossas férias, peguei escondido no quarto do meu pai, considerei interessante mostrar para vocês. Creio que ele nem sentirá falta — riu perverso e intrigou os demais.
— Simon, do que se trata? — outro garoto o indagou e se inclinou de modo a ver no exato instante em que o ruivo escondeu a capa com uma das mãos.
— Eu também quero ver — um dos quatro insistiu e se esforçou para tomar das mãos de Simon.
— Calma lá! — levou o folheto para o alto, longe do alcance deles.
Franco arqueou as sobrancelhas, desconfiado sobre o que seu amigo pretendia exibir. Dentre os outros, era o que não havia se corrompido.
Simon repassou a revista após provocar uma breve apreensão, exibiu a capa que revelou uma moça de cabelos loiros, bastante padronizada para a época, em poses sensuais expondo explicitamente seus seios e pernas cruzadas que provocaram a curiosidade dos cinco.
— Já presenciou uma mulher dessa maneira, Gregori? Creio que seja o único aqui que jamais apreciou, estou certo? — o jovem negou com a cabeça sem mover palavras, até recebê-la em mãos, à medida que os demais riram e se entreolharam. — O ideal é folhear com cautela cada página para aproveitar as imagens. Aprecie enquanto há tempo.
— Ele é um cordeirinho, Simon. Aposto que nunca beijou — um deles brincou.
Atendendo ao pedido do ruivo, Franco conservou seu olhar vidrado na capa, transitou cauteloso pelas páginas iniciais que enalteceram propagandas atrativas de bebidas alcoólicas, marca de cigarros, até se deparar com a mesma modelo da capa em posições eróticas.
Nem seu pai aceitaria tal ação do filho que perdeu toda concentração
Ele entreabriu os lábios secos, passeou a língua acerca deles e focou na imagem, em estado de transe, motivando gargalhadas constrangedoras nas amizades.
Nunca havia reparado que sua imaginação desejou passear até a última folha. Era de fato uma novidade.
— Já sabemos quem se tornará padre entre nós — Simon deu um leve empurrão num dos garotos.
As más influências perambulavam no internato ao contrário do quarto da Demdike como a avó acusava.
Suas mãos revestidas por luvas transitaram acima do contorno do corpo ilusório da modelo e situou-se hipnotizado pela foto. Até se retirar do magnetismo.
Ali se formou a mente construída pelo apreço ao proibido.
— Ei, Gregori! Se demorar mais um pouco nessa página, começará a salivar — riu ao retomar a atenção do menino e concedeu uma leve cotovelada num dos outros garotos. — Pode ultrapassar para as demais porque todas as folhas lhe surpreenderão.
Atendendo ao que ele falou, Franco folheou as seguintes páginas que lhe empolgaram muito mais.
Tornou-se ofegante e tímido ao desvendar tudo o que seria considerado vergonha pelos conservadores e atrativo entre quatro paredes. Até não conseguir passar a próxima.
Logo percebera que as folhas estavam unidas, grudadas por algo. Chegou a ser repugnante aos demais colegas.
— O que é isso? — o amaldiçoado se esforçou para descolar.
— É... Me devolva a revista, Gregori. Suponho que já viu além da conta.
Resgatou o objeto numa rapidez e brutalidade, assustando-o, porém, não manteve contato físico.
— Talvez o meu pai tenha colado as páginas para evitar que alguém pudesse presenciar alguma foto ainda mais imprópria. Não é? — num sorriso amarelo, se esforçou em disfarçar o constrangimento.
— Mais imprópria que as anteriores? Pensei que as de antes fossem o extremo de tudo — a curiosidade de Franco o consumiu.
— Muito impróprias. Você não faz ideia do quanto.
— Seu pai ou foi você quem "colou" as páginas, Simon? — dois deles zombaram.
— Cale a boca, Gael! — o ruivo quase partiu na direção dele.
— Se não acredita em mim, pode se retirar.
— Como assim? — ingênuo, Franco o questionou.
— Não é nada, Gregori. Chegará o momento na qual descobrirá o segundo sentido dessa palavra — o respondeu tímido.
De repente, em meio aos ruídos abafados do jardim, suportando um escasso odor de urina, acomodados no piso fresco e distraídos com o garoto que insistia em oferecer explicações referente às páginas grudadas, todos eles foram apanhados por ninguém menos que...
— Qual palavra, rapazes? Posso saber o motivo por encontrá-los neste ambiente e sozinhos? — Padre Mohr apareceu conforme um fantasma, bem na entrada do banheiro e sem emitir barulhos.
Com seus braços transpassados e semblante intimidador, o padre bateu inquieto um dos pés no chão e aguardou pela resposta.
— Estou aguardando — Mohr transpirou impaciência.
— Viemos conversar com Deus. Não foi o senhor quem alegou que ele é onipresente? Estou correto, Padre Mohr?
Franco tornou-se desafiador, tomou partido e cerrou seus olhos azuis, no mesmo segundo que Simon se empenhou em guardar a revista de volta na mochila e encarou o sacerdote.
— Que tremendo atrevido, não é, Sr. Gregori?!
Nessa ocasião, Padre Mohr notou que Simon guardou algo ligeiramente na mochila e quase avançou para cima do menino, a fim de capturar o material.
— O que escondem de mim, rapazes?! Façam-me o favor de se explicarem. Simon me entregue o que armazenou, imediatamente! Ou serei obrigado a vasculhar sua mochila.
— Mas padre, nã-não guardei na-nada.
Envergonhado, Simon trocou olhares apreensivos com Franco, os outros engoliram seco e a revista fora entregue ao sacerdote.
— Mas que tremendo absurdo é esse, rapazes?! Quem trouxe esta revista para o internato? — todos se entreolharam assim que ele elevou a revista enrolada ao ar e aguardou pela resposta. — Foi você ou você? — apontou para dois dos outros garotos. — Tratem de se explicar agora! Vamos!
Descaradamente, Franco reagiu apanhado pela surpresa com o ruivo lhe apontando o dedo. Jamais imaginaria que seu "amigo" lhe acusaria por algo que nem lhe pertencia.
— Mas o quê?! Simon mente sem pudores, Padre Mohr! — partiu revoltado para cima do colega, sem ligar para os seus receios, mas em busca de justiça. Contudo, fora afastado por Mohr.
— Eu?! Nunca que mentiria, porque isso é errado, o Diabo é o pai da mentira e posso afirmar que Franco Gregori trouxe a revista do pai escondida para nos mostrar — empenhou-se em se safar diante do professor.
— Padre, isso é um absurdo! Eu nem tenho mais o meu pai comigo! — Simon sentiu que havia mexido em assuntos delicados até demais. — Mereço respeito pelo que Simon me acusou!
— Não devo nada. Você escondia a revista em sua casa,
Gregori.
— De onde você tirou essa mentira? Só pode ter tirado do seu... — Franco se defendeu.
— Encerrem a briga de uma vez! — Mohr interveio.
— Encerrar? Onde que eu guardaria essa revista se em minha casa a minha avó observa cada passo meu? Como que conseguiria guardar com alguém de olho em cada ato meu? — por infelicidade, sua voz trêmula lhe acusou. — Se ela me pegasse com isso, minha pele viraria tapete e ainda sobraria para o abajur — os colegas riram preocupados.
— Se ela desconfia de você, é porque guardaria uma revista como essa, Gregori.
— Cala essa maldita boca, Simon! — ficou vermelho de ódio, seus punhos nas luvas se comprimiram e imaginou dar um belo soco naquele garoto.
— Silêncio! — o padre pôs um ponto na discussão. — Em virtude de seu comportamento, Sr. Gregori, mantenho os meus incontáveis motivos para desconfiar de você.
Ergueu o nariz, enrolou a revista com as duas mãos e mesmo assim concordou com o acusador.
— Por isso que fará novamente companhia ao Reverendo Gaspar. Entregarei essa promiscuidade nas mãos dele e aguardarei pelo castigo dos restantes que compactuaram junto a essa barbaridade.
Sabendo que preservava uma afável relação com o Reverendo, Franco se tranquilizou. Detestaria se fosse ordenado a regar solitário as tulipas e as outras plantas da estufa.
— E aos demais, além da punição, permanecerei de olho. Deus é onipresente, porém não é obrigado a presenciar de seu trono celestial essa perversidade que cometem sozinhos. Ouviram bem?! — consentiram cabisbaixos, exceto ele, que enfrentou o sacerdote numa expressão debochada.
Carregando sua inseparável mochila nas costas, Franco passou na frente e desafiou o Padre Mohr até se encaminhar para a sala do Reverendo Gaspar.
No percurso, ao mirar o chão, lembrou das frequentes imagens da revista que lhe inquietaram. Inclusive memorizou a explicação de um dos padres justificando que os espíritos diabólicos se manifestavam em forma de tentações.
Apesar de crescido, ele ainda não havia se deparado com um corpo despido em sua frente e nunca ouvira falar, dado que foi criado resguardado em sua casa, numa redoma invisível.
Doutrinado a ser casto.
Errado seria ultrapassar limites nessa idade, mas como qualquer um sabia, os desejos descontrolados ou reprimidos, no futuro tornam-se impulsivos.
— Boa tarde, Reverendo. Vim aqui lhe perturbar um pouco.
Ao abrir a porta da dependência do Reverendo, esbanjou um sorriso estampado no rosto, sucedeu ignorado pelo idoso, diferente das aprazíveis saudações habituais.
O senhor acomodado na enorme cadeira moldada em madeira de mogno¹, transpassou seu olhar sensibilizado entre os óculos de grau do jovem e Franco notara que algum conhecido seu falava ao telefone. No entanto, a notícia se distanciava do agradável.
Os traços animados no interior de seus lábios desapareceram, entretanto, a ansiedade consumiu gradualmente o seu físico imóvel posicionado em meio à entrada.
Algo estranho e preocupante aconteceu.
¹Mogno: É uma madeira encontrada em muitos com acabamento fino e de alta durabilidade. Por isso, o mogno é muito usado como elemento decorativo em ambientes internos. Fica bem em móveis, adornos e detalhes.
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